sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Sempre na barafunda

 


E na complicação, também pela falta de instrução, como prova o bom trabalho de Rui Ramos. Mas saudemos Portugal, como o faz o Dr. Salles, no dia em que se comemora a Restauração da Independência de Portugal, nessa altura uma monarquia, subjugada que fora, durante sessenta anos, mas que teve sempre, afinal, forças defensoras da sua continuidade.

Podia ter havido em Portugal uma república diferente?

RUI RAMOS

OBSERVADOR, 1/4/2022

A República Portuguesa não foi igual à III República Francesa, nem às outras repúblicas que surgiram na Europa depois da Primeira Guerra Mundial, como a II República Espanhola de 1931. Esses regimes também enfrentaram contestação, também passaram por confrontos violentos. A República Espanhola acabou numa guerra civil. Mas duas coisas os distinguiram da república portuguesa: o sufrágio universal e, em repúblicas como a francesa, a alemã ou a espanhola, a alternância no poder por via eleitoral. Estas diferenças tiveram sobretudo a ver com o projecto do Partido Republicano Português (PRP) de ruptura cultural e monopólio do Estado, dificilmente compatível com uma verdadeira democracia e até com as liberdades.

A questão é saber se esta é a única república que poderia ter existido em Portugal em 1910. Houve quem dissesse que sim: o PRP desejou modernizar Portugal, mas a sociedade, analfabeta e supersticiosa, teria resistido e obrigado o PRP a ser violento. É um argumento que esconde o modo como o próprio PRP negou a modernidade, ao recusar, por exemplo, o sufrágio universal, que era na Europa da época o maior sinal da modernização política.

Esconde ainda outra coisa: que houve republicanos para quem aquela não era a única república possível. Por exemplo, o maior escritor republicano, Abílio Guerra Junqueiro; o principal orador, António José de Almeida; o principal jornalista, Manuel Brito Camacho; e o próprio “fundador da república”, Machado Santos. Era também a opinião das centenas de maçons que em 1914 abandonaram a principal federação de lojas maçónicas, o Grande Oriente Lusitano, devido à sua submissão ao PRP.

O que podia ser uma república alternativa ficou esboçado em Fevereiro de 1914, quando, sob pressão da direita republicana, o governo de “concentração” de Bernardino Machado ensaiou uma “obra de apaziguamento”, com amnistia para os presos políticos e para os bispos desterrados. A prometida revisão da Lei da Separação, porém, não avançou, devido à influência que o PRP mantinha no governo. Em 1915, o governo de Pimenta de Castro deu liberdade aos monárquicos, sossegou os católicos com alterações à Lei da Separação, e dispôs-se a fazer eleições abertas. Não conseguiu, perante a insurreição radical de 14 de Maio. Era óbvio que uma outra república requeria a liquidação do poder do PRP.

Em 1917, tudo se conjugou para isso: as dificuldades de abastecimento do país, a irritação dos lavradores por causa do tabelamento de preços, e o descontentamento do exército com a intervenção na guerra (o esforço militar, com o envio de cem mil soldados para África e França, foi equivalente ao das campanhas africanas da década de 1960). Foi nesse ambiente que Sidónio Pais, antigo ministro e embaixador, juntou 1500 soldados na Rotunda, na noite de 5 para 6 de Dezembro de 1917, e fez o governo baquear após alguns dias de combates. Falou-se em 300 mortos, três vezes mais do que em 1910.

Sidónio anunciou a restauração da “república generosamente proclamada em 5 de Outubro e miseravelmente atraiçoada por uma casta política”. Ao seu lado, como prova do “regresso ao 5 de Outubro”, estavam Machado Santos e José Carlos da Maia. Com Sidónio, a república passou a assentar no sufrágio universal masculino, que o PRP recusara, e no governo de um presidente à americana. Sidónio reviu a Lei de Separação, reatou relações com o Vaticano, e assistiu até a uma missa na Sé de Lisboa. Chamou muitos oficiais monárquicos para os comandos militares. Apareceu na rua, no meio do povo de Lisboa e de outras cidades. Durante as epidemias de tifo e de gripe, que em 1918 mataram 120 mil pessoas, andou pelos hospitais a visitar doentes.

Era de facto uma “república nova”, como Sidónio lhe chamou. Sidónio excluiu do poder o PRP e, ao longo do ano de 1918, também os outros partidos da república, e procurou colaboração e apoio fora do campo republicano. A uma república só para republicanos, seguiu-se, com Sidónio, “uma república sem republicanos”. Como não podia deixar de ser, o PRP interpretou o novo regime como mais “uma traição”. Mas Sidónio Pais, tão maçon e ateu como Afonso Costa, demonstrou uma coisa importante: que a república podia ser um regime conservador, e por isso apoiado na “enorme maioria do país”.

É preciso dizer que a república de Sidónio Pais não foi mais branda do que a de Afonso Costa. No fim de 1918, Portugal vivia em estado de sítio (desde 12 de Outubro). Havia, como no tempo do PRP, centenas de presos políticos. Desde Abril que voltara a funcionar a censura à imprensa. O novo regime recorreu também, como antes o PRP, a bandos de voluntários armados para intimidar críticos e inimigos. A 16 de Outubro, em Lisboa, uma transferência de 140 presos políticos acabou num tiroteio, com três mortos – foi a célebre “leva da morte”.

O pior ainda estava para vir. Durante a guerra, o estado interviera em toda a vida económica – não se podia exportar ou importar sem licença, a produção e a distribuição dos produtos eram controladas – e gastara à larga, recorrendo a linhas de crédito em Inglaterra e à emissão de notas do Banco de Portugal, alargada por um novo contrato entre o governo e o banco em 1918.

Com a paz, receou-se a chegada da factura, agora sem a assistência financeira inglesa. Para se precaver, o governo sujeitou os “lucros excepcionais derivados da guerra” a impostos especiais, começou a exigir que metade das taxas alfandegárias sobre a importação fossem pagas em divisas (mostrando assim a sua falta de confiança na moeda nacional), e restringiu os movimentos de capital, proibindo operações cambiais sem fins comerciais. Mas em 1917, Egas Moniz já calculara que os juros da dívida depois da guerra podiam absorver 80% das receitas, apesar do aumento da tributação em 25%. Seria a ruína.

A queda de Sidónio, no entanto, não parecia provável. A 11 de Novembro de 1918, a guerra na Europa terminou subitamente: até ao Verão, a Alemanha parecera em vantagem; agora, sob pressão na frente ocidental e depois de os seus aliados austríacos entrarem em colapso, pedia um armistício, quase ao mesmo tempo que o regime imperial ruía.

Nesse momento, Portugal já só tinha cerca de trinta mil homens em França, quase todos ocupados como meros auxiliares na retaguarda. A 12, Sidónio teve uma grande manifestação em frente do palácio de Belém. Em Lisboa, os sindicatos anarquistas tentaram lançar uma “greve geral” a 18 de Novembro. Fracassou, como os próprios organizadores confessaram depois, perante a “quase absoluta indiferença” dos trabalhadores. Serviu apenas para o governo agitar o espantalho do “bolchevismo”. Um negociante de jóias russo chegou a estar preso como agente de Moscovo. Para mostrar força, Sidónio organizou mais uma parada da guarnição militar no dia 20, na Avenida da Liberdade, e convidou a população a aderir, aparecendo com fitas verdes nas lapelas e chapéus. Foi um êxito.

Era a probabilidade de um atentado contra o Presidente que mais inquietava os seus colaboradores. Seria possível manter o sidonismo sem Sidónio? O facto é que a coesão do novo regime dependia do presidente. Acabou, por isso, com o seu assassinato, a 14 de Dezembro de 1918. Poucos meses depois, o PRP estava de volta ao poder.

O sidonismo foi uma improvisação a que Sidónio se viu forçado para preencher o vazio político criado pelo colapso do poder de Afonso Costa e em que recorreu a não poucas ideias de que ele próprio tinha sido um crítico (como o presidencialismo). Foi, enquanto durou, mais uma situação do que propriamente um regime. Não se fundou no bom funcionamento das instituições representativas, nem no respeito pela lei, mas num poder pessoal sustentado pelo oficiais que Sidónio colocou à frente do exército. O que poderia ter sido a sua “República Nova”, se ele não tem sido assassinado, é algo que nunca saberemos.

Anos depois da sua morte, houve quem se convencesse de que o governo de Sidónio Pais antecipara o tipo de liderança carismática e a organização corporativa do fascismo italiano. É uma interpretação abusiva. O fascismo e o corporativismo foram fenómenos doutrinários, e não apenas situações de facto. Só por si, um caudilho carismático, como tinha havido muitos nas repúblicas da América do sul durante o século XIX, não faz o fascismo, tal como a representação de interesses organizados não faz o corporativismo (em 1917, já o governo da União Sagrada chamara as “forças vivas da Nação” a colaborar num Conselho Económico Nacional).

Também a Ditadura Militar e o Estado Novo, depois de 1926, adoptaram Sidónio como “precursor”. Alguns sidonistas, instalados no salazarismo, subscreveram essa apropriação. Houve até quem tivesse lembrado de que em Agosto de 1918, o nome do professor Salazar, seu colega em Coimbra, tinha sido sugerido a Sidónio como possível ministro das finanças. Talvez seja verdade, mas Salazar nunca foi convidado.

A redução de Sidónio a um prenúncio do salazarismo é uma mistificação histórica, que serviu tanto à esquerda republicana como ao Estado Novo para se afirmarem como únicas opções disponíveis. Ora, Sidónio, que era um republicano e um maçon, representou precisamente a possibilidade de a alternativa à “ditadura parlamentar” do PRP ter sido outro regime que não o Estado Novo de um conservador católico como Salazar.

Na última edição do programa E o Resto É História, conversei com o João Miguel Tavares sobre o Estado Novo brasileiro e a forma como o mito do sebastianismo é comum ao caso português. Ouça aqui o podcast.

Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo].

 

E

1º DE DEZEMBRO DE 1640

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO01.12.22

VIVA PORTUGAL!!!

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história

 

COMENTÁRIOS

Francisco G. de Amorim 01.12.2022  10:37: Em que

 valentes guerreiros nos deram livre a nação!



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