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Podia ter havido em Portugal uma
república diferente?
RUI RAMOS
OBSERVADOR, 1/4/2022
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A República Portuguesa
não foi igual à III República Francesa, nem às outras repúblicas que
surgiram na Europa depois da Primeira Guerra Mundial, como a II República
Espanhola de 1931. Esses
regimes também enfrentaram contestação, também passaram por confrontos
violentos. A República Espanhola acabou numa guerra civil. Mas duas coisas os distinguiram da
república portuguesa: o sufrágio universal e, em repúblicas como a
francesa, a alemã ou a espanhola, a alternância no poder por via
eleitoral. Estas
diferenças tiveram sobretudo a ver com o projecto do Partido Republicano
Português (PRP) de ruptura cultural e monopólio do Estado, dificilmente
compatível com uma verdadeira democracia e até com as liberdades.
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A questão é saber se esta
é a única república que poderia ter existido em Portugal em 1910. Houve
quem dissesse que sim: o PRP
desejou modernizar Portugal, mas a sociedade, analfabeta e supersticiosa,
teria resistido e obrigado o PRP a ser violento.
É um argumento que esconde o modo como o próprio PRP negou a
modernidade, ao recusar, por exemplo, o sufrágio universal, que era na
Europa da época o maior sinal da modernização política.
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Esconde ainda outra
coisa: que houve republicanos para quem aquela não era a única república
possível. Por exemplo, o
maior escritor republicano, Abílio Guerra Junqueiro;
o principal orador, António José de Almeida; o principal
jornalista, Manuel Brito Camacho; e o próprio “fundador da república”,
Machado Santos. Era
também a opinião das centenas de maçons que em 1914 abandonaram a
principal federação de lojas maçónicas, o Grande Oriente Lusitano, devido
à sua submissão ao PRP.
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O que podia ser uma
república alternativa ficou esboçado em Fevereiro de 1914, quando, sob
pressão da direita republicana, o governo de “concentração” de Bernardino
Machado ensaiou uma “obra de apaziguamento”, com amnistia para os presos
políticos e para os bispos desterrados. A prometida revisão da Lei da Separação, porém, não avançou,
devido à influência que o PRP mantinha no governo. Em
1915, o governo de Pimenta de Castro deu liberdade aos monárquicos,
sossegou os católicos com alterações à Lei da Separação, e dispôs-se a
fazer eleições abertas. Não
conseguiu, perante a insurreição radical de 14 de Maio. Era óbvio que uma
outra república requeria a liquidação do poder do PRP.
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Em 1917, tudo se conjugou para
isso: as dificuldades de abastecimento do país, a irritação dos
lavradores por causa do tabelamento de preços, e o descontentamento do
exército com a intervenção na guerra (o esforço militar, com o envio de
cem mil soldados para África e França, foi equivalente ao das campanhas
africanas da década de 1960). Foi nesse ambiente que Sidónio
Pais, antigo
ministro e embaixador, juntou 1500 soldados na Rotunda, na noite de 5
para 6 de Dezembro de 1917, e fez o governo baquear após alguns dias de
combates. Falou-se em 300 mortos, três vezes mais do que em 1910.
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Sidónio anunciou a restauração
da “república
generosamente proclamada em 5 de Outubro e miseravelmente atraiçoada por
uma casta política”. Ao seu lado, como prova do “regresso ao 5 de
Outubro”, estavam Machado Santos e José Carlos da Maia. Com
Sidónio, a república passou a assentar no sufrágio universal masculino,
que o PRP recusara, e no governo de um presidente à americana.
Sidónio reviu a Lei de
Separação, reatou relações com o Vaticano, e assistiu até a uma missa na
Sé de Lisboa. Chamou muitos oficiais monárquicos para os comandos
militares. Apareceu na rua, no meio do povo de Lisboa e de outras cidades.
Durante as epidemias de tifo e de gripe, que em 1918 mataram 120 mil
pessoas, andou pelos hospitais a visitar doentes.
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Era de facto uma
“república nova”, como Sidónio lhe chamou. Sidónio excluiu do poder o PRP
e, ao longo do ano de 1918, também os outros partidos da república, e
procurou colaboração e apoio fora do campo republicano.
A uma república só para republicanos, seguiu-se, com Sidónio,
“uma república sem republicanos”. Como não podia deixar de ser, o PRP
interpretou o novo regime como mais “uma traição”. Mas Sidónio Pais, tão
maçon e ateu como Afonso Costa, demonstrou uma coisa importante: que a
república podia ser um regime conservador, e por isso apoiado na “enorme
maioria do país”.
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É preciso dizer que a república de Sidónio Pais não foi mais
branda do que a de Afonso Costa. No fim de 1918, Portugal vivia em estado
de sítio (desde 12 de Outubro). Havia, como no tempo do PRP, centenas de
presos políticos. Desde Abril que voltara a funcionar a censura à
imprensa. O novo regime recorreu também, como antes o PRP, a bandos de
voluntários armados para intimidar críticos e inimigos. A 16 de Outubro,
em Lisboa, uma transferência de 140 presos políticos acabou num tiroteio,
com três mortos – foi a célebre “leva da morte”.
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O pior ainda estava para vir.
Durante a guerra, o estado interviera em toda a vida económica – não
se podia exportar ou importar sem licença, a produção e a distribuição
dos produtos eram controladas – e gastara à larga, recorrendo a linhas de
crédito em Inglaterra e à emissão de notas do Banco de Portugal, alargada
por um novo contrato entre o governo e o banco em 1918.
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Com a paz, receou-se a chegada da
factura, agora sem a assistência financeira inglesa.
Para se precaver, o governo sujeitou os “lucros excepcionais
derivados da guerra” a impostos especiais, começou a exigir que metade
das taxas alfandegárias sobre a importação fossem pagas em divisas
(mostrando assim a sua falta de confiança na moeda nacional), e
restringiu os movimentos de capital, proibindo operações cambiais sem
fins comerciais. Mas em 1917, Egas Moniz já calculara que os juros da dívida depois da guerra podiam
absorver 80% das receitas, apesar do aumento da tributação em 25%. Seria
a ruína.
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A queda de Sidónio, no
entanto, não parecia provável. A 11 de Novembro de 1918, a guerra na
Europa terminou subitamente: até ao Verão, a Alemanha parecera em
vantagem; agora, sob pressão na frente ocidental e depois de os seus
aliados austríacos entrarem em colapso, pedia um armistício, quase ao
mesmo tempo que o regime imperial ruía.
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Nesse momento, Portugal já só
tinha cerca de trinta mil homens em França, quase todos ocupados como
meros auxiliares na retaguarda. A 12, Sidónio teve
uma grande manifestação em frente do palácio de Belém. Em Lisboa, os
sindicatos anarquistas tentaram lançar uma “greve geral” a 18 de
Novembro. Fracassou, como os próprios organizadores confessaram depois,
perante a “quase absoluta
indiferença” dos trabalhadores. Serviu apenas para o governo
agitar o espantalho do “bolchevismo”. Um negociante de jóias
russo chegou a estar preso como agente de Moscovo. Para mostrar força,
Sidónio organizou mais uma parada da guarnição militar no dia 20, na Avenida da Liberdade, e convidou a população a
aderir, aparecendo com fitas verdes nas lapelas e chapéus. Foi um êxito.
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Era a probabilidade de um atentado
contra o Presidente que mais inquietava os seus colaboradores. Seria
possível manter o sidonismo sem Sidónio? O facto é que a coesão do novo
regime dependia do presidente. Acabou, por isso, com o seu assassinato, a
14 de Dezembro de 1918. Poucos meses depois, o PRP estava de volta ao
poder.
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O sidonismo foi uma improvisação a que Sidónio se viu forçado para
preencher o vazio político criado pelo colapso do poder de Afonso Costa e
em que recorreu a não poucas ideias de que ele próprio tinha sido um
crítico (como o presidencialismo).
Foi, enquanto durou, mais uma
situação do que propriamente um regime. Não se fundou no bom
funcionamento das instituições representativas, nem no respeito pela lei,
mas num poder pessoal sustentado pelo oficiais que Sidónio colocou à
frente do exército. O que poderia ter sido a sua “República Nova”, se ele
não tem sido assassinado, é algo que nunca saberemos.
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Anos depois da sua
morte, houve quem se convencesse de que o governo de Sidónio Pais
antecipara o tipo de liderança carismática e a organização corporativa do
fascismo italiano. É uma interpretação abusiva. O fascismo e o
corporativismo foram fenómenos doutrinários, e não apenas situações de
facto. Só por si, um caudilho carismático, como tinha havido muitos nas
repúblicas da América do sul durante o século XIX, não faz o fascismo, tal como a representação de interesses
organizados não faz o corporativismo (em 1917, já o governo da União
Sagrada chamara as “forças vivas da Nação” a colaborar num Conselho
Económico Nacional).
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Também a Ditadura Militar e o
Estado Novo, depois de 1926, adoptaram Sidónio como “precursor”. Alguns
sidonistas, instalados no salazarismo, subscreveram essa apropriação.
Houve até quem tivesse lembrado
de que em Agosto de 1918, o nome do professor Salazar, seu colega em Coimbra, tinha sido
sugerido a Sidónio como possível ministro das finanças.
Talvez seja verdade, mas Salazar nunca foi convidado.
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A redução de Sidónio a
um prenúncio do salazarismo é uma mistificação histórica, que serviu
tanto à esquerda republicana como ao Estado Novo para se afirmarem como
únicas opções disponíveis. Ora,
Sidónio, que era um republicano e um maçon, representou precisamente a
possibilidade de a alternativa à “ditadura parlamentar” do PRP ter sido
outro regime que não o Estado Novo de um conservador católico como
Salazar.
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Na última edição do programa E o
Resto É História, conversei com o João Miguel
Tavares sobre o Estado Novo brasileiro e a forma como o mito do
sebastianismo é comum ao caso português.
Ouça
aqui o podcast.
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Rui Ramos é historiador, professor universitário,
co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo].
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