sexta-feira, 31 de maio de 2019

A farda pisada



Sim, julgo que foi muito bom o estabelecimento do Lycée Charles Lepierre no nosso país, bem como o têm sido os vários colégios ingleses ou alemães, que vão também preparando alguns alunos portugueses dentro dos moldes que os alunos estrangeiros, naturalmente, seguem, segundo os trâmites pedagógicos dos seus próprios países, bem como, nas suas famílias, os preceitos específicos dos seus hábitos educacionais, talvez mais comedidos, embora das minhas memórias docentes aqui, me fique um cômputo quase direi só positivo e gratas recordações de amizade e de respeito mútuo, excluindo os casos pontuais da insubordinação ainda resolúveis na altura, mas que, ao que parece, se vão tornando gradualmente mais difíceis de aplicar, provenientes dos ventos não mais cálidos, mas de convulsão em tornado.
Mas, mesmo sem a influência liberal dos ensinamentos no liceu francês, também por cá (embora as minhas evocações se centrem no ensino em África) famílias houve que educavam os seus filhos sem a inscrição nos preceitos da Mocidade Portuguesa, olhada com desprezo por muitos não inscritos, o desprezo que manifesta Salles da Fonseca, por uma farda detentora de servilismos e arrogâncias em função dos preceitos estabelecidos pelas ditaduras que elas simbolizavam.
Por mim, desconhecedora então desses significados desfeiteadores de uma farda elegante, admirava quem a empunhava, nas paradas onde a maioria das raparigas, de que eventualmente fiz parte, nos festivais de ginástica e jogos naqueles anos do ciclo, usava vestido branco, que resplandecia nos quadrados centrais ou nas marchas laterais, em que a saudação à bandeira ou ao público se fazia de braço estendido, em sinal de respeito, que nunca me passou pela cabeça menosprezar, antes de ver, posteriormente, os VV socialistas ou os braços erguidos de punho fechado, que se lhes seguiram, imporem-se por cá.
Quem sabe se muitos dos que desfeitearam a língua portuguesa, num Acordo Ortográfico inconcebível, não terão feito parte dessa Mocidade Portuguesa de bela farda, que se apressaram em despir, logo após a Revolução de Abril! Por isso, acrescentei ao texto de Salles da Fonseca, o de Nuno Pacheco, uma vez mais indignado com o desplante dos subservientes linguísticos a outras pátrias, sem lógica e sem princípios!
HENRIQUE SALLES DA FONSECA              A BEM DA NAÇÃO, 30.05.19

REVOLUÇÃO FRANCESA EM LISBOA

“Liberdade, igualdade, fraternidade”
Eis os valores que o Liceu Francês veio promover em Portugal.
“Libertinagem, vulgaridade, promiscuidade”, as acusações a que eram sujeitos os princípios republicanos franceses pela sociedade portuguesa mais conservadora.
Era entre estes dois limites que uma parte importante da minha geração se situava. No meu caso, com claro pendor para a liberdade contra a libertinagem, pela igualdade contra a vulgaridade, pela fraternidade contra a promiscuidade. Tudo, numa versão não jacobina nem maçónica. De tradição familiar republicana e democrática, era-me fácil absorver aquela liberdade não constrangida por grilhetas físicas ou intelectuais, a igualdade não condicionada por preceitos sociais de nascimento, a fraternidade como atitude natural numa sociedade mais virada para a compaixão do que para o egoísmo. Por que não? Porque o contrário seriam a escravatura, a prevalência da «pureza genética», o isolacionismo individualista.
E precisamente porque os meus pais não me queriam de sotaina, me queriam mundividente e liberal, mandaram-me para o “Charles Lepierre”. Este, o «homem novo» que eles queriam, não o fardado da “Mocidade Portuguesa”.
(continua)        Maio de 2019              Henrique Salles da Fonseca
II - Cultura-Ípsilon: OPINIÃO
Socorro, querem roubar-nos a língua e deixar-nos mudos!
As variantes do português, riquíssimas, merecem ser reconhecidas como partes de uma mesma língua mas soberanas nos seus países e não desfiguradas em “unificações”.
               PÚBLICO,30 de Maio de 2019
Estava eu no Brasil, de férias, entretido (e divertido) com as diferenças entre o português de lá e de cá, quando no Expresso surgiu este título lancinante: “Há quem queira ficar com a nossa língua e quem, por cá, aplauda.” Imaginei logo uma enorme faca, afiada, a deixar-nos mudos para todo o sempre. Afinal, a coisa não era assim não grave. Nem facas nem sangue, só um lamento por alguém, no Brasil, defender que “o português brasileiro precisa de ser reconhecido como uma nova língua”. Henrique Monteiro (HM), autor do artigo, descobriu logo a marosca: os patifes que, por cá, querem acabar com o acordo ortográfico, são óbvios cúmplices desse nefando golpe, que deixaria a Portugal um dialecto minoritário (conhecido por português), enquanto o gigante além-Atlântico falaria orgulhosamente brasileiro.
Tirando o facto de tal artigo ter chegado atrasado umas décadas, já que a defesa de um grito do Ipiranga linguístico é ali velhíssima (embora sem quaisquer consequências), o artigo tem que se lhe diga. Não pela argumentação, mais rasteira do que relva recém-aparada, mas pelo que revela de profunda ignorância em relação ao tema. Vejamos alguns tópicos. H.M., sagaz, nota que há uma comissão parlamentar a propor alterações ao acordo ortográfico (AO) e que há 20 mil cidadãos a propor a “revogação, pura e simples, do tratado”. Terá lido apenas, percebe-se, o que alguém escreveu sobre o assunto. Mesmo assim, arrisca dizer que, “a bem do país e da língua, o Parlamento manterá o essencial do Acordo”. E o que é o essencial dessa coisa, saberá H.M. dizer? Não sabe. Nem ele nem as luminárias que o inventaram. Mas eu recordo e sublinho. O essencial era a “unificação ortográfica da língua portuguesa” (sic, para citar a nota explicativa do AO). Pois esse “essencial” não foi cumprido nem o será nunca. Nem com golpes baixos – como a alteração, por protocolos modificativos, do princípio básico de que o AO só entraria em vigor “após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa” (e entrou antes, só com metade dos países, mantendo-se assim até hoje, sem alteração).
O que fazer, então? Alterar o acordo? Repor umas letras? Deitá-lo fora? Vejam bem: até H.M. diz, no seu texto, que contradições “há muitas; até incongruências”. Mas acha que não vale usá-las como argumento, porque “a perfeição, sabe-se, é tão impossível como agradar a todos”. Lindo, não é? Só que, neste caso, a palavra “imperfeição” é elogiosa, porque o AO contém um vasto rol de erros crassos, como há anos se tem vindo a apontar com exemplos, não com puerilidades. O deputado independente Jorge Lemos, que rasgou o texto do AO no parlamento, na sessão de 28/5/1991, disse tudo: “O acordo é inútil, ineficaz, secretista, prepotente, irrealista, infundamentado, desnecessário, irresponsável, prejudicial, gerador de instabilidade e inoportuno.” Ora de 91 para 19 nada disto mudou.
Tem isto alguma importância? Nenhuma! H.M. zomba até dos “que avisam que seguem a ortografia antiga” (esquece-se que, em jornais como o Expresso, muitos são obrigados a usar a “nova” por prepotência) porque “se virem com atenção, em muitos textos tal é indiferente porque não mudariam uma letra”. Na realidade, diz ele, “o que muda é 2%”. O argumento não é novo. Malaca Casteleiro e Telmo Verdelho, dois bonzos do AO, já o usaram em 2017, ao escreverem que se tais criaturas (da “antiga ortografia”) “não o declarassem, ninguém se aperceberia de tão grande heroicidade”. Isto pretende ser engraçadinho, mas vira-se contra os seus autores: se é assim, se ninguém se apercebe, se só mudou 2%, se tanto faz “nova” ou “antiga” ortografia que ninguém repara, então para quê o acordo, não nos dizem? Para nada?
Má vontade, é o que é. Porque, escreve H.M., “o idioma tem um valor decisivo na nossa projecção internacional”. Tem? Deve ser por isso que há cada vez mais Summits, Schools, Meetings, Businesses, Workshops and so on. É o português internacional! H.M. fala ainda da decadência do francês (uma ortografia “conservadora”), mas fazia-lhe bem consultar o site Ethnologue – Languages of the World. Ontem, os dados lá publicados eram, em milhões de utilizadores, estes (somando os que usam cada idioma como primeira ou segunda língua): o inglês com 1132 em 135 países, o espanhol com 534 em 30 países, o “decadente” francês com 279 em 53 países e o português com 220 em 14 países. Chega?
Por fim, dois argumentos que nunca deviam ser usados: se alguém “quer ficar com a nossa língua” (título do artigo) é porque, afinal, a língua tem dono. Afinal em que ficamos? Tem dono ou não tem? Somos nós? São eles? Somos todos? Querem parar de delirar, por favor?
O segundo, com que H.M. fecha o artigo, é: a língua “é um legado, um monumento da Expansão portuguesa. Não brinquem com ela”. Pois, mas já brincaram, ignorando que o “monumento da expansão” passou a fruto da independência. As variantes do português, riquíssimas, merecem ser reconhecidas como partes de uma mesma língua mas soberanas nos seus países e não desfiguradas em “unificações”. Este é (para citar uma palavra cara a Marcelo) um “irritante” que persiste, para incómodo geral. É mais que hora de removê-lo.

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