domingo, 26 de maio de 2019

Verdades como punhos



Vasco Pulido Valente não é pessoa de meias palavras, nem de engenhosos processos de abordar os seus pensamentos, directo que é, chamando, ele sim, “os bois pelos nomes”, de uma forma clara mas segura, própria de quem tem na mão a chave do conhecimento, dando, as mais das vezes, uma lição de seriedade e serenidade, indispensáveis neste nosso mundo de provocação e arruaça, sem receio de enfrentar oposições, tal o outro “Emissário de um rei desconhecido” mas que, ao contrário de Pessoa, cumpre, não “informes instruções de Além”, mas “formais” e em nada “sibilinas”, embora contendo idêntico desdém por este humano povo entre quem “lida”, demiurgo ele próprio neste nosso universo rastejante que bem pretenderia erguer do chão. Sim, estamos-lhe gratos, pelas lições breves e sem subterfúgios - de história e de moral.

OPINIÃO:
Diário
VASCO PULIDO VALENTE
PÚBLICO, 25 de Maio de 2019
18 de Maio: À distância, Bruno Lage, o treinador do Benfica, é um homem sério, que trabalha seriamente e vê a vida com seriedade. Em Portugal, é uma aparição.
19 de Maio: debate dos candidatos dos cinco partidos com representação no parlamento europeu foi miserável. Só serviu para mostrar a ignorância dos nossos políticos. Um exemplo: ninguém pareceu ter percebido o que a Europa significou para Portugal. Significou que, por uma vez, ficámos sem protecção contra a modernidade e, por isso mesmo, conseguimos, até certo ponto, modernizar-nos.
Claro que no processo a “produção nacional”, tão cara ao PCP, teve de sofrer. Essa “produção nacional” era o resultado de 50 anos de ditadura: de condicionamento industrial e de agricultura de subsistência. O euro tornou as coisas mais duras, mas impôs um travão à despesa pública que, como uma vez me disse o dr. Cavaco, mais nada nem ninguém poderia impor. E, nesta matéria, estou inclinado a concordar com ele.
20 de Maio: Pela primeira vez, Pedro Passos Coelho veio desabafar em público. Disse meia dúzia de manifestas verdades. Mas bastou para uma repórter de serviço achar que ele era o verdadeiro chefe da oposição. E achou bem.
21 de Maio: De tudo o que se diz sobre a “Europa” o que mais me irrita é a alegação de que a “Europa” garantiu setenta anos de paz. Não garantiu. Em 1945 a França e a Alemanha estavam derrotadas e a passar fome. Não podiam garantir coisa nenhuma.
Quem ganhou a guerra na Europa foram os americanos e os russos, que se entenderam e desentenderam entre eles, à revelia das potências europeias, agora reduzidas a um cenário turístico. A “Europa” nasceu e cresceu por vontade e sob protecção da América. Uma das razões por que hoje se desconjunta está precisamente em que a América se desinteressou dela.
22 de Maio: Continua a propaganda contra a abstenção. Toda a gente tem explicações para a indiferença do eleitorado; e alguns patetas têm até receitas para o interessar. Mas porque havia uma pessoa normal de votar num invisível deputado para o simulacro de parlamento, sem nenhum poder de facto, e com funções simplesmente cerimoniais?
23 de Maio: A acreditar na propaganda dos partidos institucionais, o grande inimigo da “Europa” é o “populismo” e a extrema-direita. Estas expressões são, na maior parte dos casos, uma maneira de evitar dizer a palavra fatal: nacionalismo. Mas se não se chamar os bois pelos nomes, não se percebe nada.
Como devia ser evidente, ao movimento de integração, cada vez mais forte, acabou por corresponder um movimento contrário, das pátrias europeias. E, como também devia ser evidente, as nacionalidades mais fracas foram as que mais cedo e mais violentamente se quiseram afirmar: a Hungria, um povo sem um território certo; a Polónia, uma nação partida e repartida, invadida e martirizada sem nenhuma constante excepto a Igreja Católica; a República Checa e a Eslováquia, dois países inventados; a Itália, que nunca verdadeiramente se conseguiu unificar; e a Espanha, um reino de reinos. Quanto à Alemanha, o Estado Federal sempre tremeu nas pernas. E, quanto à França, como avisou o “fascista” Steve Bannon, Macron é o mais nacionalista deles todos, pena que a sua capital seja Bruxelas e não Paris.
As coisas são o que são.
25 de Maio: Amanhã, eleições.
Colunista

COMENTÁRIOS
cisteina, Porto 07:05: De tão boa e óbvia, esta síntese de conclusões deveria envergonhar os políticos que andaram por aí a falar da Europa. Pois, se não conhecem a sua história desde os tempos do império romano (e já passaram 2.000 anos) como querem (dizem todos) fazer algo por ela? A Europa, como a maioria dos países que a compõem (com excepção da Alemanha donde Merkel vai sair) não tem líderes e lideranças à altura (quem manda são os burocratas de Bruxelas), como assim é todo um 'buraco negro' fortemente ignorante, sabemos agora que existe mas não sabemos qual e o que é o seu fundo. Como é (deverá ser) infinito, então nada há a fazer, caímos no fatalismo do deixa andar e logo alguém verá. VPV vê, ai e olá se vê, melhor ainda, observa e pensa! ...
Visitante da Noite, En un lugar de La Mancha, ou por aí perto : Ou não sabe de história ou não sabe fazer contas. O império romano de ocidente caiu em 476 DC, Constantinopla em 1453. E vem para aqui falar de história e ignorância... É bom constatar quem são os admiradores de VPV e das suas ideias.
Aónio Eliphis, Algures nos pólderes da ordem de Orange!: Foram os russos que venceram a guerra. Eu tenho a vantagem, apesar de ser anti-comunista, e perdoem-me o pedantismo, de ser uma pessoa da Ciência, leia-se exacta. Os americanos perderam 180 mil homens na Europa, a União Soviética perdeu mais de 20 milhões de pessoas, entre os quais 8 milhões de soldados. Não é sequer comparável. E sim, a União Europeia garantiu 70 anos de Paz e Prosperidade, e é preciso remontar à civilização romana para encontrarmos na Europa 70 anos de Paz. A União Europeia tem muitos defeitos, e a República Portuguesa não tem? E é por isso que queremos abolir a República? A nação? O estado?
TP, Leiria : Questões muito pertinentes, Aonis. A sociedade e o mundo pulam e avançam. O tempo das Nações já foi. Agora vivemos o tempo dos blocos! Tanto os US, como a China, como a UE são melting pots autênticos!
José Manuel Martins, évora: "Claro que no processo a “produção nacional”, tão cara ao PCP, teve de sofrer. Essa “produção nacional” era o resultado de 50 anos de ditadura": genial coup de grâce, dialéctico e materialista q.b., e que subsidia a correlação fatal entre os dois 'políticos do século', salazar e cunhal. De facto, a pide (que pouco perdia tempo com acessórios) é essencialmente o correlato das células clandestinas do pcp, e vice-versa, e a persistência 'nacional' do velho-pcp numa europa que varreu inclusive o 'eurocomunismo' é o triunfo póstumo negativo do estado novo enquanto atraso constitutivo. 20 a 22/5: de acordo. 23/5: a verdade da verdade é que as nações europeias são as únicas a baterem-se pela nação europa - como fronteira contra o ópio dos povos, capisci? 24/5: há dias q não existem: habituemo-nos.
Cobble Street, Lisboa: Um diário particularmente lúcido.
ALRB às armas, às armas, pela Pátria lutar, contra os LADRÕES marchar, marchar: "Quem ganhou a guerra na Europa foram os americanos e os russos, que se entenderam e desentenderam entre eles, à revelia das potências europeias, agora reduzidas a um cenário turístico. A “Europa” nasceu e cresceu por vontade e sob protecção da América. Uma das razões por que hoje se desconjunta está precisamente em que a América se desinteressou dela." Discordo só neste aspecto: os EUA desinteressaram-se da Europa dos Estados quando estes formaram uma União para tentar assumir um papel mais hegemónico e portanto mais independente da liderança dos EUA.
Sima Qian, China: O Visitante da Noite continua de noite. A parte oriental do Império romano era essencialmente grega e não latina. Aquela que chegou à Europa foi o Cristianismo latino que em 476 e não foi nessa data que nasceu a Europa mas sim uma data no seu processo. Quando falamos de dois mil anos não pensamos com exactidão matemática mas extraímos um número que começa quando já o Imperium é forte.
José Manuel Martins, Évora:  'europa' é uma entidade constructa, fluida e retrospectiva q terá começado pela época de um autor inexistente (tão inexistente como um dos seus personagens principais, ulisses, o tal q 'sem existir nos bastou') - homero; e q põe o outro pezinho ainda mais atrás e ainda mais ao lado, entre jerusalém e o livro do génesis. Isto a sua história e a sua mítica directas, deixando de lado os fluxos orientalizantes que também a nutriram (o egiptismo hinduista que atinge platão e, mais tarde, o neoplatonismo, p. ex.). E deixando ainda mais de lado a miscigenação de sul e oriente dos seus povos migrantes, e o indecidível lugar dúplice da vasta rússia bicontinental. Quanto à europa linguística - a europa mental e categorial do indo-europeu - a história dessa 'árvore do conhecimento' é ainda mais antiga.


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