quinta-feira, 16 de maio de 2019

«Homo sum: nihil humani a me alienum puto:»


Frederico Lourenço, na sua Nova Gramática do Latim, livro extraordinário, que se lê à laia de romance, colhido do início dos tempos e ao longo das viagens nos espaços, a respeito da formação dos sons humanos e das letras e das palavras com as suas flexões verbais várias e nominais de género, número e casos, estes últimos existentes ainda em português, por exemplo, nos pronomes pessoais eu, me, mim … ou relativos – que, cujo, quem… remontando às origens latinas, por seu turno fruto de tantas modificações das línguas itálicas, já caldeadas pelos próprios escritores, a que o grego traria novas achegas, fruto aquele também das raízes primeiras que no sânscrito repousam, e que vão reflectir-se nas línguas modernas, germânicas, românicas – tudo isso vai sendo transmitido com a abertura e clareza próprias de um estudioso das línguas e literaturas clássicas e da própria Bíblia com que pessoas amigas me têm povoado os interesses literários nestes anos finais e a quem fico verdadeiramente grata por mos terem oferecido. É o caso desta “Nova Gramática do Latim”, oferta do “Dia da Mãe”, que vou lendo com um prazer de reconstituição como se se tratasse de velhos amigos que por mim passaram, quer no estudo gramatical quer no estudo literário. Porque a Gramática Latina de FL contém retrospectiva dos escritores latinos também e, no seu final, oferece breves excertos desses escritores para tentarmos traduzir, pois, como ele afirma, no seu «Preambulum», “Muitas pessoas gostariam de saber latim – até pessoas que não estão ligadas às letras. Outras – historiadores, arqueólogos, linguistas, teólogos, filósofos e lusitanistas – têm consciência de que deveriam saber (bastante mais latim). E outras ainda estão de facto a aprendê-lo em Portugal, na escola ou na universidade, mas sem se darem conta de que, muito provavelmente, usam recursos para o estudo do latim que ainda reflectem, em pleno século XXI, os programas e as metodologias dos liceus portugueses no tempo da ditadura de Salazar.» Daí os breves textos que já me pus a tentar traduzir, embora julgue complicado, apesar dos meus cinco anos de latim, dois no liceu, acompanhados de excelente gramática – de José Nunes de Figueiredo -e de excelente antologia de textos, (e de excelente professor), mau grado a perspectiva apontada do ensino – marrão – da época salazarista, de que FL discorda, mas que me foram fundamentais, pois que, nos três anos de Faculdade, apenas nos limitámos às centenas de traduções ordenadas pelo professor - que gastava os dias em Lisboa, nas suas ambições políticas, e poucas aulas nos forneceu, não dispensando nunca de exames, sem testes intermédios - tais traduções eram feitas, pelo menos por mim, na Biblioteca, com a ajuda das traduções já feitas, em língua corrente, geralmente de livros em francês.
Parece estranho que, a propósito de um Joe Berardo, personagem de comédia hilariante que Ricardo Araújo Pereira caricaturou no seu último “Gente que não sabe estar” eu me pusesse a tratar de uma Gramática que ando a ler aplicadamente, no fascínio de um retorno no tempo. Talvez João Miguel Tavares, que dele se ocupa nos dois textos que seguem, merecesse outra abordagem, impecável que é nos seus considerandos honestos pretendendo reformar este nosso mundo português, que tantas palmatoadas merece. Mas os textos de JMT estão aí, na sua seriedade, com um ou dois comentários dos que se afligem como ele, entre as dezenas que o aprovam ou desaprovam.
Assim, obedientemente, resolvi traduzir, no fim do meu artigo, para melhor integração do seu título, o excerto muito conhecido de Terêncio, que FL coloca na sua “Antologia de textos”, o qual se aplica, julgo, ao caso citado indignadamente por JMT, que é o sentimento da maioria, julgo. Afinal, porque somos humanos, “nada do que é humano nos é indiferente”.

I – OPINIÃO: Joe Berardo, o homem que não tem dívidas
Aquilo que na sexta-feira se passou no Parlamento, durante a audição de Berardo na comissão de inquérito à CGD, é verdadeiramente grave.
JOÃO MIGUEL TAVARES           PÚBLICO, 11 de Maio de 2019
O facto de Joe Berardo ser disléxico, pouco articulado e ter a seu lado um advogado a papaguear-lhe as respostas ajuda a compor a figura de um senhor patusco e meio atoleimado, muito propício a sketches humorísticos. Mas aquilo que na sexta-feira se passou no Parlamento, durante a audição de Berardo na comissão de inquérito à CGD, é verdadeiramente grave, e não apenas por o comendador ter passado cinco horas a gozar com a nossa cara e com a cara dos deputados que o inquiriam — é grave, sobretudo, por demonstrar as barbaridades que foram cometidas à época por bancos e investidores, e as barbaridades que continuam a ser cometidas hoje em dia por o sistema permitir a Joe Berardo viver à grande e à francesa, apesar de dívidas de quase mil milhões de euros. Como o próprio disse, numa frase que merece ficar para a História dos anos 2005-2011: “Eu, pessoalmente, não tenho dívidas.” Aliás —​ acrescentou ele —, até “tenho tentado ajudar [os bancos]”.
Sendo tamanha lata inconcebível, há uma parte da intervenção em que Berardo tem toda a razão, e que traça um retrato arrasador daquilo que foi a concessão de crédito do sistema financeiro português durante a primeira década do século. Foram anos de excesso de liquidez, e bancos como o BCP, o BES, e depois a Caixa deram aos grandes investidores condições de financiamento extraordinárias.
Como o próprio Berardo explicou, essas condições “incluíam como única garantia as próprias acções das empresas integrantes do PSI-20, sendo que só exigiam um grau de cobertura de 100% do valor constituído pelas próprias acções a adquirir”. Em bom rigor, não se percebe sequer como se dá a isto o nome de “garantia”, porque não é garantia nenhuma —​ o risco ficava todo do lado dos bancos, como se viu.
Aliás, uma das partes mais pitorescas da audiência foi mesmo a indignação de Berardo em relação aos bancos, como se ele próprio fosse um lesado do BES (e da Caixa, e do BCP), por ter sido empurrado (diz ele) para um investimento desastroso. Imagino que essa postura lhe sirva também como um mecanismo psicológico para justificar todos os esquemas e tramóias que tem tentado (e, pelos vistos, conseguido) praticar desde então, com o objectivo de — e cito — “defender os meus interesses”.
Esses esquemas incluíram alterações de estatutos à margem dos credores e uma operação de aumento de capital da associação que detém a Colecção Berardo que acabou por retirar margem de manobra aos bancos para executarem a penhora. Neste momento, a coisa está assim: a associação está penhorada, mas as obras que são propriedade da associação não estão, porque não podem, devido ao acordo com o Estado (renovado em 2016). Quando perguntaram a Berardo se a CGD sabia disso quando aceitou os títulos da associação como penhora, ele disse que sim: “Nunca iria dar a colecção aos bancos.”
Estamos nisto. Caixa, BCP e Novo Banco reclamam a Joe Berardo 962 milhões de euros, e ele continua a mostrar a Quinta da Bacalhôa — que não é dele, claro está — a Manuel Luís Goucha, nas manhãs da TVI. Há um mês, na mesma comissão, Eduardo Paz Ferreira disse não acreditar que a garantia da Caixa sobre a colecção algum dia conseguisse ser executada. Agora percebi porquê. O Estado ostenta com grande prestígio no CCB o nome de um dos maiores devedores do Estado; e o Estado contribui (via acordo da colecção) para que o Estado não possa recuperar o dinheiro que lhe é devido. Giro, não? Senhoras e senhores, bem-vindos a Portugal.             
COMENTÁRIOS:
R Figueiredo Jacinto, Lisboa 11.05.2019: O Padrinho Bernardo rouba o Povo português com a cobertura de políticos e banqueiros! Será que tem razão? É que a crise financeira foi um jogo montado pela UE para empobrecer ainda mais os países em desenvolvimento, vejam quais os países mais afectados. Como recompensa àqueles que podiam rebelar-se e pôr a nu a acção dos políticos deu este resultado, os Padrinhos Bernardes ou Salvados, entre outros, foram pagos com milhares de milhões pela representação para salvar a face dos Constâncios, Santos ou Tavares. Mas isso a mim e a si não nos empobrece, qualquer dinheiro recuperado apenas serve para aumentar um banquete que não o nosso, quem os defende, já está sentado à mesa.
II –OPINIÃO: O “desplante” de Joe Berardo é o desplante do PS
Até que ponto o Museu Berardo pode ser entendido como uma contrapartida política pelos bons serviços prestados pelo comendador, não se sabe ao certo.
JOÃO MIGUEL TAVARES               PÚBLICO, 14 de Maio de 2019
Esta segunda-feira, António Costa afirmou que todo o país tinha ficado “chocado” com o “desplante” com que Joe Berardo tinha ido ao Parlamento responder aos deputados. É impossível discordar da sua afirmação — o país inteiro ficou chocado, com certeza, e muito. Contudo, também é preciso ter certo desplante para António Costa ficar tão chocado com o desplante de Joe Berardo, tendo em conta que o PS esteve enfiado até às orelhas na negociata das acções do BCP que conduziu à dívida astronómica dos tais mil milhões de euros que o senhor comendador agora não paga, para pagarmos todos nós.
Puxemos um pouco pela memória. O mesmo Joe Berardo que na semana passada foi fazer papel de sonso para a comissão de inquérito à Caixa, armando-se em triplo lesado do BES, da CGD e do BCP, foi há 12 anos o ponta-de-lança no afastamento de Jorge Jardim Gonçalves do Banco Comercial Português. Berardo não foi apenas um investidor na sombra que viu uma oportunidade de negócio e decidiu investir nas acções do maior banco privado português — tivesse-o feito e vendido na altura certa e teria obtido mais-valias de muitos milhões.
Ele optou, antes, por ser a figura mais destacada na descredibilização do legado de Jardim Gonçalves (que, à boa portuguesa, fez um trabalho notável no BCP mas não resistiu a atribuir a si próprio privilégios inconcebíveis) e nos jogos de bastidores que afastaram toda a concorrência à liderança do banco, até ele acabar nas mãos vergonhosas da dupla socialista Carlos Santos Ferreira e Armando Vara, oriundos da Caixa.
Em 2006 e 2007, o banco estatal financiou Joe Berardo — em condições absolutamente privilegiadas, de facto — para este patrocinar a golpada que colocou os administradores da Caixa a mandar no BCP. Não o fez sozinho. Figuras como Vítor Constâncio, outro dos supersonsos que passaram pelo Parlamento sem se lembrar de coisa alguma, então na liderança do Banco de Portugal, ou António Mexia, já no seu posto na EDP, desempenharam um papel igualmente relevante no afastamento de Jardim Gonçalves e na destruição dos planos que este tinha para a sua sucessão. Foram os anos em que Joe Berardo não saía da televisão, fosse por causa do BCP, fosse por causa da sua colecção de arte, à qual José Sócrates acabou por oferecer um museu com assinatura, no melhor local de Lisboa. “Desplante”? Oh, sim. Mas pintado de cor-de- rosa, de cima a baixo.
Até que ponto o Museu Berardo pode ser entendido como uma contrapartida política pelos bons serviços prestados pelo comendador, não se sabe ao certo. Há alguns livros que abordam o tema dos anos de fogo do BCP, como a longa biografia de Jardim Gonçalves assinada por Luís Osório (O Poder do Silêncio, 2014), os livros escritos pelo administrador e presidente do BCP Filipe Pinhal (O Dever do Bom Nome, 2009; Prova de Vida, 2011) ou o curiosíssimo Terramoto BCP, que a jornalista Maria Teixeira Alves escreveu bem em cima dos acontecimentos. Na última página desse livro, lê-se: “Joe Berardo, no mesmo dia em que estava a ser eleito para o Conselho de Remunerações do BCP, tinha a Polícia Judiciária a entrar-lhe pela sua Empresa Madeirense de Tabacos, a recolher documentos por indícios da prática de crime de fraude fiscal, utilização de facturas falsas e branqueamento de capitais através de sociedades offshore. Deus parece rir-se de nós.” Isto foi escrito em Junho de 2008. Uma década depois, Berardo decidiu juntar o seu riso ao de Deus. Tem boas razões para isso.
Jornalista
COMENTÁRIOS
ana cristina Lisboa et Orbi 14.05.2019 vamos ver se eu entendo: o admirável, astuto e hábil politico António Costa, que percebe mais de politica a dormir do que os outros todos acordados, em 2007 não percebeu que o berardo estava a ser insuflado como instrumento ao serviço do PS.... só agora descobre a tramóia, o que o põe em estado de choque... “ter certo desplante” neste contexto tresanda a eufemismo e complacência.
Boris Vian, Porto14.05.2019: Ora aí está, ana cristina! A diferença é que, nessa altura, António Costa só fazia que dormia... sabendo que José Sócrates era um consumidor compulsivo, gastava o que tinha e o que não tinha, era só uma questão de tempo, para o ver cair com estrondo.
ana cristina, Lisboa et Orbi 14.05.2019: quem o Costa ficou impávido a ver cair com estrondo foi o país.

- Eis o excerto de Terêncio, precedido da apresentação de Frederico Lourenço, número 3 da sua Antologia de Textos (e extraído do Acto I, Cena I: o amigo Chremes, vizinho do infeliz Menedemus e preocupado com ele, responde à sua interpelação irritada, pelos conselhos que o velho não quer ouvir:

3- Terêncio, “Heauton Timoroumenos 75-77. Século II a. C.
«Uma das frases mais famosas da literatura latina é a que Terêncio coloca na boca de Cremes, na comédia Heauton Timoroumenos (o título grego significa “O homem que se castiga a si mesmo”).
MENEDEMVS:
«Chreme, tamtumne ab re tuast oti tibi
Aliena ut cures ea quae nil ad te attinent?»
CHREMES:
«Homo sum; humani nil a me alienum puto.»
NOTAS: Tantumne: atenção à partícula interrogativane: tuast= (ab re) tua est; oti: genitivo de otium, “lazer”, “vagar”; aliena: neutro do plural, “assuntos alheios”; nil= nihil; attineo, attinere, attinui, attentum: “dizer respeito a”; “puto”: “pensar”.
TRADUÇÃO:
MENEDEMVS: Cremes, tens assim tantos lazeres nos teus próprios assuntos para que te ocupes dos que não te dizem respeito?
CHREMES: Sou homem; nada do que diz respeito ao homem me é indiferente.

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