O texto de Salles da Fonseca parece-me
impregnado de tristeza, ao contrário do que lhe é habitual, dedicado que é aos
aspectos espirituais que as crenças comportam e aos padecimentos de tantos
desses santos que o amor a Cristo vitimizou, quais alguns dos Apóstolos. De
toda a maneira, um artigo de elegância espiritual mas de grande tristeza, que
nos pesa ler, por detectarmos sofrimento físico e psicológico que desejaríamos
fossem depressa ultrapassados, sinal de que o problema grave de saúde fora
sanado. É, sobretudo, mais um texto que nos ensina tanto, ao
encaminhar-nos com simplicidade pela senda da teologia e do recolhimento espiritual, que a
passagem recente por locais próximos dos sítios da cruzada do cristianismo fez,
certamente, avivar, talvez em súplica secreta de aflição momentânea que não
deixa de ser forte lição justificativa da fé humana, entregue que é o Homem aos
pesadelos de sofrimentos inesperados e sempre injustos, afinal. Não, não é o
caso de querermos desviar o apego às coisas santas, na imaginação poética que
os lugares sagrados proporcionam, impregnados que são de uma aura transcendental,
a espíritos votados à sua leitura e crença. - E, todavia, não são só estes lugares
sagrados que merecem o apego da fé, segundo a “epifania dos locais” que refere.
Os sítios descritos pelos escritores de quem se gosta fazem-nos apegar-nos aos
descritivos dos escritores, como Eça ou Cesário, que o reencontro com eles nos
dá intraduzível sensação de prazer pela captação da alma desses sítios, mesmo que
não tenham a religiosidade dos locais sagrados que refere Salles da Fonseca. É certo que o
seu texto me trouxe à lembrança antes, um livro não de unção religiosa mas de
irreligiosidade crítica – de morrer a rir - que teve como pano de fundo também
uma viagem ao Oriente e aos locais sagrados propícios a uma alegre e mordaz
aventura condenatória dos excessos de uma religião que se alimenta da fé – caso
de Fátima, igualmente – e da ingenuidade das crenças: “A Relíquia”, eis o livro que gostaria de aconselhar a
Salles da Fonseca, para lhe libertar o espírito da tristeza – que será
passageira, é o que todos nós fervorosamente desejamos e que certamente já leu.
E é com Eça que termino este comentário, dedicando a Salles da Fonseca esse
outro excerto do conto “O Suave
Milagre”, que todos conhecemos de longa data, e que é revelador de uma sensibilidade
queirosiana bem oposta à do humor irónico dos seus escritos principais.
«…
A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou: - Oh mãe! Jesus
ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que
tanto queria sarar! E a mãe, em soluços: - Oh meu filho como te posso deixar!
Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão
trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém
atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! Talvez
Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o
Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes. De entre os
negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança
murmurou: - Mãe, eu queria ver Jesus... E logo, abrindo devagar a porta e
sorrindo, Jesus disse à criança: - Aqui estou.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 06.05.19
ou
SINAIS
EXTERIORES DE RELIGIÃO
Foi
James Joyce que me chamou a atenção para a beleza de tentarmos captar a
essência dos locais, aquilo a que ele chamava a «epifania dos locais» e eu
passei a chamar a «epifania joyceana».
Para
tal, sem transcendências, há que lhes conhecer a história, saber minimamente o
que por ali se passou e, depois, no local propriamente dito, imaginar os
cenários envolventes desses acontecimentos. Poeticamente, há que ler a história
que as pedras tenham para nos contar.
E
é isso que faço amiúde nos locais mais vulgares assim como noutros, menos
banais. Sem ensaios de mediunidade, imagino as cenas que se passaram em
gerações anteriores nos locais que habito ou nas ruas que me são frequentes mas
em lugares especiais não deixo de me sensibilizar por figuras especiais. Por
exemplo, na minha rota dos Apóstolos.
O Apóstolo S. Tiago Menor, também conhecido por S.
Jaime, dito irmão de Cristo (ou em Cristo?), foi o primeiro Bispo de Jerusalém
e teve que negociar a nova Doutrina com os prosélitos do Antigo
Testamento. Isso deu-lhe uma firmeza doutrinal que os sacerdotes do Templo não
estavam preparados para encarar com bonomia e, incitadas as massas, foi S. Jaime atirado do topo das muralhas de Jerusalém
despedaçando-se no local em que os homens de boa vontade lhe fizeram o túmulo.
Desconheço
que provas arqueológicas existam que confirmem o local como o do túmulo do
Apóstolo mas não me preocupei com a hipótese de reescrever a História e foi ali
mesmo que imaginei S. Jaime, a sua vivência mais diplomático-turbulenta e
imaginei, invocando-o mentalmente, na fase de transição para a vida eterna
naquele mesmo lajedo. Não senti que o Apóstolo me enviasse alguma bênção
pessoal mas senti-me bem só de o imaginar.
A
minha primeira relação geográfica com S. Paulo foi na gruta a que ele se terá
recolhido após o naufrágio em Malta mas a quantidade de visitantes e a
estreiteza do local não foram propícios a qualquer invocação. Deixei passar… e
fui encontrar-me com ele em Éfeso, no teatro romano em que ele se dirigiu aos
gentios e em que lhes terá dito que «se Cristo não ressuscitou, então a nossa
fé é vã».
Não
sei ao certo se foi isso que ele começou por dizer ali e que depois repetiu na
segunda carta aos romanos (ou aos efesos?) mas foi dessa passagem que me
lembrei quando pisei a laje central do palco do teatro, precisamente a mesma
(espero bem que aquela mesma e não outra que os arqueólogos lá tenham posto
entretanto) sobre a qual ele falou. Também ali não senti nenhuma bênção
especial mas senti-me bem apesar de a minha relação com S. Paulo nem sempre ser
tão pacífica como eu gostaria. Mas isso fica para outro escrito.
Deixei
passar uns tempos – e uns templos – e fui ao Sul da Índia, ao Estado do Tamil
Nadu.
Madurai,
onde foi martirizado S. João de Brito cuja igreja não estava na rota da agência
de viagens. Duvido mesmo que os
agentes turísticos portugueses saibam da existência daquele nosso mártir e que
assim passem em falso não só uma parte importante da História da Igreja na
Índia como também da própria História de Portugal. Mas quem sou eu para me
estar a meter na vida de quem sabe tudo, os agentes de viagens?
Mas
um pouco mais a Norte, a sete horas de autocarro, em Meliapor, a Basílica do Apóstolo S. Tomé, sim, estava na rota
turística.
Começo
por dizer que os ingleses chamam Tomás a Tomé daí gerando uma confusão
histórica medonha entre o Apóstolo e o Santo que viveu mais de não sei quantos
séculos depois. Qualquer minudência histórica como uma diferença de 12
séculos. Só!
Mas
eu não os confundi e sabia muito bem na presença de quem estava, na do Apóstolo
S. Tomé, o do «ver para crer». E
visitei a sua capela no subsolo da actual basílica. Apesar duma breve
invocação, também não senti receber alguma benesse especial mas senti-me bem. O
mais sensível, foi, contudo, à saída da capela quando por acaso me virei para
uma determinada parede e reparei numa lápide onde se informava os leitores da
dita cuja que aquela capela fora reaberta ao público uns quantos anos antes
(poucos, pareceu-me então) numa cerimónia presidida por um hierarca – Bispo ou
Arcebispo – da Igreja Portuguesa cujo nome entretanto esqueci.
E
logo voltei a invocar o Apóstolo para que a Igreja Indiana retome em Goa, em Damão,
em Diu, em Chennai, em Baçaim e mais não sei onde uma celebração eucarística
semanal em língua português para reaproximar os fiéis da sua Igreja estaminal.
Mas como o Apóstolo não me enviou qualquer mensagem de volta, peço agora aqui a
algum responsável indiano pela fé católica industânica que não se esqueça de
que fomos nós, portugueses, que lhes levámos a sua fé e não os anglófonos em
que actualmente celebram.
Todas
estas histórias são muito primárias ou mesmo nulas em relação ao misticismo e
mais não são do que os meus sinais exteriores de religião. Mas eu gosto deles.
Felizes
aqueles que têm uma fé.
Maio
de 2019
Henrique
Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
M/
Caro Dr. Salles da Fonseca,:
O 1º bispo de Mylapore (Madrasta) foi o Revº Pe Henrique José Reed da Silva, no
final do séc. XIX. A ele se deve a iniciativa de construir a Basílica dita
Menor. Sempre vi com alguma incredulidade a viagem de S. Tomé pelas Índias,
desde logo porque o primeiro problema com que as comunidades judeo-cristãs se
confrontavam girava em torno da relação com os rituais judaicos (mais do que a
religião judaica propriamente dita): o Cristianismo propunha-se refundar e
depurar o Judaísmo. Sobre isto já escrevi a propósito do episódio evangélico de
Jesus e os vendilhões do Templo. Ora, para que Tomé, muito provavelmente um
judeo-cristão convicto (como se percebe pelo Evangelho apócrifo de Tomé), tenha
sido levado a cruzar mares e desertos a caminho da Índia, deveria haver no
destino uma comunidade judaica bastante importante. Não há notícia histórica de
tal. Há notícia, sim, da presença de cristãos nestorianos, de origem árabe,
levados à Índia pelo comércio de longa distância. Abraço António
Palhinha Machado
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