terça-feira, 7 de maio de 2019

“Aqui estou!”


O texto de Salles da Fonseca parece-me impregnado de tristeza, ao contrário do que lhe é habitual, dedicado que é aos aspectos espirituais que as crenças comportam e aos padecimentos de tantos desses santos que o amor a Cristo vitimizou, quais alguns dos Apóstolos. De toda a maneira, um artigo de elegância espiritual mas de grande tristeza, que nos pesa ler, por detectarmos sofrimento físico e psicológico que desejaríamos fossem depressa ultrapassados, sinal de que o problema grave de saúde fora sanado. É, sobretudo, mais um texto que nos ensina tanto, ao encaminhar-nos com simplicidade pela senda da teologia e do recolhimento espiritual, que a passagem recente por locais próximos dos sítios da cruzada do cristianismo fez, certamente, avivar, talvez em súplica secreta de aflição momentânea que não deixa de ser forte lição justificativa da fé humana, entregue que é o Homem aos pesadelos de sofrimentos inesperados e sempre injustos, afinal. Não, não é o caso de querermos desviar o apego às coisas santas, na imaginação poética que os lugares sagrados proporcionam, impregnados que são de uma aura transcendental, a espíritos votados à sua leitura e crença. - E, todavia, não são só estes lugares sagrados que merecem o apego da fé, segundo a “epifania dos locais” que refere. Os sítios descritos pelos escritores de quem se gosta fazem-nos apegar-nos aos descritivos dos escritores, como Eça ou Cesário, que o reencontro com eles nos dá intraduzível sensação de prazer pela captação da alma desses sítios, mesmo que não tenham a religiosidade dos locais sagrados que refere Salles da Fonseca. É certo que o seu texto me trouxe à lembrança antes, um livro não de unção religiosa mas de irreligiosidade crítica – de morrer a rir - que teve como pano de fundo também uma viagem ao Oriente e aos locais sagrados propícios a uma alegre e mordaz aventura condenatória dos excessos de uma religião que se alimenta da fé – caso de Fátima, igualmente – e da ingenuidade das crenças: “A Relíquia”, eis o livro que gostaria de aconselhar a Salles da Fonseca, para lhe libertar o espírito da tristeza – que será passageira, é o que todos nós fervorosamente desejamos e que certamente já leu. E é com Eça que termino este comentário, dedicando a Salles da Fonseca esse outro excerto do conto “O Suave Milagre”, que todos conhecemos de longa data, e que é revelador de uma sensibilidade queirosiana bem oposta à do humor irónico dos seus escritos principais.
«… A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou: - Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar! E a mãe, em soluços: - Oh meu filho como te posso deixar! Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes. De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou: - Mãe, eu queria ver Jesus... E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança: - Aqui estou.

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA
 A BEM DA NAÇÃO, 06.05.19
ou
SINAIS EXTERIORES DE RELIGIÃO
Foi James Joyce que me chamou a atenção para a beleza de tentarmos captar a essência dos locais, aquilo a que ele chamava a «epifania dos locais» e eu passei a chamar a «epifania joyceana».
Para tal, sem transcendências, há que lhes conhecer a história, saber minimamente o que por ali se passou e, depois, no local propriamente dito, imaginar os cenários envolventes desses acontecimentos. Poeticamente, há que ler a história que as pedras tenham para nos contar.
E é isso que faço amiúde nos locais mais vulgares assim como noutros, menos banais. Sem ensaios de mediunidade, imagino as cenas que se passaram em gerações anteriores nos locais que habito ou nas ruas que me são frequentes mas em lugares especiais não deixo de me sensibilizar por figuras especiais. Por exemplo, na minha rota dos Apóstolos.
Apóstolo S. Tiago Menor, também conhecido por S. Jaime, dito irmão de Cristo (ou em Cristo?), foi o primeiro Bispo de Jerusalém e teve que negociar a nova Doutrina com os prosélitos do Antigo Testamento. Isso deu-lhe uma firmeza doutrinal que os sacerdotes do Templo não estavam preparados para encarar com bonomia e, incitadas as massas, foi S. Jaime atirado do topo das muralhas de Jerusalém despedaçando-se no local em que os homens de boa vontade lhe fizeram o túmulo.
Desconheço que provas arqueológicas existam que confirmem o local como o do túmulo do Apóstolo mas não me preocupei com a hipótese de reescrever a História e foi ali mesmo que imaginei S. Jaime, a sua vivência mais diplomático-turbulenta e imaginei, invocando-o mentalmente, na fase de transição para a vida eterna naquele mesmo lajedo. Não senti que o Apóstolo me enviasse alguma bênção pessoal mas senti-me bem só de o imaginar.
A minha primeira relação geográfica com S. Paulo foi na gruta a que ele se terá recolhido após o naufrágio em Malta mas a quantidade de visitantes e a estreiteza do local não foram propícios a qualquer invocação. Deixei passar… e fui encontrar-me com ele em Éfeso, no teatro romano em que ele se dirigiu aos gentios e em que lhes terá dito que «se Cristo não ressuscitou, então a nossa fé é vã».
Não sei ao certo se foi isso que ele começou por dizer ali e que depois repetiu na segunda carta aos romanos (ou aos efesos?) mas foi dessa passagem que me lembrei quando pisei a laje central do palco do teatro, precisamente a mesma (espero bem que aquela mesma e não outra que os arqueólogos lá tenham posto entretanto) sobre a qual ele falou. Também ali não senti nenhuma bênção especial mas senti-me bem apesar de a minha relação com S. Paulo nem sempre ser tão pacífica como eu gostaria. Mas isso fica para outro escrito.
Deixei passar uns tempos – e uns templos – e fui ao Sul da Índia, ao Estado do Tamil Nadu.
Madurai, onde foi martirizado S. João de Brito cuja igreja não estava na rota da agência de viagens. Duvido mesmo que os agentes turísticos portugueses saibam da existência daquele nosso mártir e que assim passem em falso não só uma parte importante da História da Igreja na Índia como também da própria História de Portugal. Mas quem sou eu para me estar a meter na vida de quem sabe tudo, os agentes de viagens?
Mas um pouco mais a Norte, a sete horas de autocarro, em Meliapor, a Basílica do Apóstolo S. Tomé, sim, estava na rota turística.
Começo por dizer que os ingleses chamam Tomás a Tomé daí gerando uma confusão histórica medonha entre o Apóstolo e o Santo que viveu mais de não sei quantos séculos depois. Qualquer minudência histórica como uma diferença de 12 séculos. Só!
Mas eu não os confundi e sabia muito bem na presença de quem estava, na do Apóstolo S. Tomé, o do «ver para crer». E visitei a sua capela no subsolo da actual basílica. Apesar duma breve invocação, também não senti receber alguma benesse especial mas senti-me bem. O mais sensível, foi, contudo, à saída da capela quando por acaso me virei para uma determinada parede e reparei numa lápide onde se informava os leitores da dita cuja que aquela capela fora reaberta ao público uns quantos anos antes (poucos, pareceu-me então) numa cerimónia presidida por um hierarca – Bispo ou Arcebispo – da Igreja Portuguesa cujo nome entretanto esqueci.
E logo voltei a invocar o Apóstolo para que a Igreja Indiana retome em Goa, em Damão, em Diu, em Chennai, em Baçaim e mais não sei onde uma celebração eucarística semanal em língua português para reaproximar os fiéis da sua Igreja estaminal. Mas como o Apóstolo não me enviou qualquer mensagem de volta, peço agora aqui a algum responsável indiano pela fé católica industânica que não se esqueça de que fomos nós, portugueses, que lhes levámos a sua fé e não os anglófonos em que actualmente celebram.
Todas estas histórias são muito primárias ou mesmo nulas em relação ao misticismo e mais não são do que os meus sinais exteriores de religião. Mas eu gosto deles.
Felizes aqueles que têm uma fé.
Maio de 2019
Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS:
M/ Caro Dr. Salles da Fonseca,: O 1º bispo de Mylapore (Madrasta) foi o Revº Pe Henrique José Reed da Silva, no final do séc. XIX. A ele se deve a iniciativa de construir a Basílica dita Menor. Sempre vi com alguma incredulidade a viagem de S. Tomé pelas Índias, desde logo porque o primeiro problema com que as comunidades judeo-cristãs se confrontavam girava em torno da relação com os rituais judaicos (mais do que a religião judaica propriamente dita): o Cristianismo propunha-se refundar e depurar o Judaísmo. Sobre isto já escrevi a propósito do episódio evangélico de Jesus e os vendilhões do Templo. Ora, para que Tomé, muito provavelmente um judeo-cristão convicto (como se percebe pelo Evangelho apócrifo de Tomé), tenha sido levado a cruzar mares e desertos a caminho da Índia, deveria haver no destino uma comunidade judaica bastante importante. Não há notícia histórica de tal. Há notícia, sim, da presença de cristãos nestorianos, de origem árabe, levados à Índia pelo comércio de longa distância. Abraço António Palhinha Machado

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