José Manuel Fernandes aponta o
facto – grotesco – da indiferença do país perante a palhaçada atrevida
representada por JB, troçando de
todos os espectadores próximos e distantes, ou seja, do país inteiro, com as
suas momices de fingir esclarecer e logo se interromper, no seu palco de
actuação – o Parlamento, junto da Comissão de Inquérito à CGD, sempre com a
intervenção em surdina do seu advogado, ambos em finório conciliábulo de troça
pegada, no sketch não improvisado, porque de antemão preparado por ambos com
muita malandrice. JMF faz uma boa
resenha, segundo a sua própria experiência, das tramóias desse figurão, ao
longo dos tempos, de que o próprio articulista foi testemunha e delator inútil,
pois que as negociatas obscuras continuaram a fazer-se. E irão continuar,
perante a apatia do povo, apesar da saliência de alguns, que nada mais podem
fazer, habituados que estamos ao comer e calar de uma educação sem regras.
Lamento, mas acho que Berardo vai continuar a rir-se
do país /premium
OBSERVADOR, 16/5/2019
Se a cultura política é a mesma, os
hábitos os mesmos, a indiferença cívica a mesma, até alguns protagonistas os
mesmos, acham que é por perder a comenda que Berardo vai deixar de se rir de
nós todos?
Tenho
pena, há coisas em que sou mesmo pessimista. O meu amigo Miguel Pinheiro acredita que “mesmo num país como
Portugal há limites” e que, tendo Berardo passado todos os limites, “o regime
não pode sobreviver com Berardo a rir-se”. Pois eu creio que ele vai continuar a rir-se,
que os figurões vão rasgar as vestes durante mais algumas semanas e que depois
tudo se arrastará anos sem fim nos tribunais até todos se esquecerem. Quanto a
perder a comenda deve ser mesmo, no meio disto tudo, o que menos preocupa o
“comendador” e o mais evidente sinal da impotência (ou deveria escrever
antes cumplicidade?) do regime.
Não
são poucos os motivos para o meu pessimismo, mas se pudesse resumi-los numa só
frase ela seria lapidar: “nunca aprendemos nada, nunca queremos aprender
nada”.
Primeiro
que tudo é bom ter memória. Ou na falta dela consultar os arquivos. Ora
quando o fazemos, como o
Observador fez, verificamos que uma das primeiras vítimas que
Berardo fez em Portugal foi uma vítima da liberdade de imprensa, mais
exactamente Joaquim Vieira que, ainda no início da década de 1990, foi obrigado
a demitir-se da direcção do Expresso por ter acrescentado à notícia da entrada
de Joe Berardo para o capital da SIC informação de enquadramento sobre
processos por evasão fiscal. Não foi ontem, foi há mais de 25 anos. Podia ter
sido um aviso à navegação, não foi.
Sem
ter de recuar tanto no tempo, demos um salto até há uma dúzia de anos, até ao final
de 2007. Nessa época Joe Berardo estava nos píncaros. Foi nesse 16
de Dezembro que Marcelo Rebelo de Sousa o escolheria mesmo como “figura do
ano no meio empresarial”. Dir-se-ia que todo o país aplaudia. Todo não. Alguns
“irredutíveis gauleses” resistiam.
Como
vos digo não há nada como vasculhar os arquivos para descobrir coincidências –
e acontece que por coincidência no editorial da edição de Natal desse ano do Público,
apenas oito dias depois, eu o tratei como “um especulador que o governo tem
protegido”. Porquê? Por causa do que acabara de acontecer – a nomeação
de Santos Ferreira e Armando Vara para a administração do BCP, vindos
directamente da Caixa Geral de Depósitos –, algo que logo classifiquei como “um
assalto do poder político ao maior banco privado”. Na altura essa ideia de que
se tratava de um “assalto” era anátema, hoje é consensual. Os tempos mudam.
Mesmo
assim já havia por esses dias mais indícios que deviam ter, pelo menos,
levado as pessoas a desconfiar. Por essa altura já Joe Berardo fora um pivot fundamental (a par com Nuno Vasconcelos, outro dos
que deixou um enorme calote na banca portuguesa e hoje vive regalado no Brasil)
na operação montada por Ricardo Salgado para impedir a OPA da Sonaecom à PT. Sabemos como tudo acabou em tragédia, com a
destruição da que chegou a ser a maior empresa portuguesa, mas não devemos
esquecer como Berardo festejou o seu triunfo perante os deliciados repórteres
das televisões, para logo depois fez as suas mais-valias e partir para outra.
Tal como não devemos esquecer a forma como festejou a sua vitória no assalto ao
BCP e o destino que esse banco logo a seguir teve.
Pelo
meio houve ainda o nebulosíssimo acordo para a instalação da colecção
Berardo no CCB, em condições contratuais ainda hoje opacas, um
acordo de que resultou a nomeação por escolha conjunta do Governo e do
“comendador” do advogado José António Pinto Ribeiro para administração da
novíssima Fundação Berardo. Ora o que é que sucede em Janeiro de 2008?
José Sócrates remodela o seu Governo, despede a ministra da Cultura Isabel
Pires de Lima e chama para o seu lugar exactamente… José António Pinto Ribeiro.
É o que se chama mais o diabo de uma coincidência.
Antes
de prosseguir, deixem-me recordar que estávamos no final de 2007, inícios de
2008. Nessa altura Joe Berardo passeava-se pelas televisões, celebrado como
o “novo Gulbenkian”, e José Sócrates era o “animal político” a que até
alguma (muita) direita se tinha rendido. Estavam frescas as imagens do
abraço com Durão Barroso e ainda ecoava o “porreiro, pá!” Quem se atrevia a
remar contra a maré?
Poucos,
demasiado poucos. Tão poucos que, nesse mês de Dezembro de 2007 o jornalista
do Liberation Jean Quatremer, um veterano de Bruxelas, vem a Lisboa
para conhecer o fenómeno Sócrates e escreve um texto, Il l’a traité, apoteótico (vale a pena lê-lo só para
recordar o que Sócrates dizia nesse tempo…). Foi para o fazer que me veio
bater à porta pois, como de resto refere na reportagem, eu era para Sócrates
o seu “melhor inimigo”. Descontando a paranóia do antigo primeiro-ministro
com os jornalistas, a verdade é que nessa época a oposição estava um
frangalho e a sociedade portuguesa se recusava a ver o que ele estava a fazer –
recusava-se a generalidade dos comentadores e dos jornalistas, mas também a
maioria dos empresários e dos membros das chamadas elites.
Dei
esta volta toda, e recuperei estas memórias – peço desculpa pelas que são mais
pessoais, mas quem viveu por dentro aqueles anos não as esquece – porque, mais
uma dúzia de anos passados, há lições que não aprendemos. Tal como há realidades
que não mudam.
As realidades que não mudam são as do quadro legal que tecemos, ou
que teceram por nós. Berardo
riu-se no Parlamento porque tinha a seu lado um advogado esperto que sabe
explorar bem os interstícios da lei e, como não se podem fazer leis
retroactivas, suspeito que vai ser mesmo difícil recuperar os créditos que
deixou por pagar – isto é, o calote de mil milhões de euros, pois ele, como
diz, “não deve nada”, o que juridicamente é verdade. Soa como um insulto, mas é
verdade.
Mas,
o principal, nem são estas questões jurídicas. O principal é que hoje, como
há 12 anos, a sociedade portuguesa continua a encantar-se com os “animais
políticos” e a preocupar-se pouco com a substância das políticas. O
problema é que hoje, como há 12 anos, se acredita que os problemas se resolvem
dando mais poderes aos governos, quando é exactamente o contrário que devia
acontecer. O problema é que hoje se volta a regredir no poder das
instituições independentes, acreditando que a mão do governo pode fazer mais
pela economia do que a livre competição entre as empresas. O problema é que
hoje continua a haver muito concubinato com empresários, sempre “em nome do
interesse nacional”, claro está.
Há 12 anos havia criminosos com a mão
na massa e um país a aplaudir a sua eficiência acriticamente. Agora não haverá criminosos à solta, mas isso não
aconteceu como sabemos por passar a haver mais espírito crítico ou mais gosto
por uma sociedade livre e menos tutelada pelo poder político. Aconteceu por
termos alguns magistrados corajosos.
Mesmo assim nós somos aquele país
onde quem esteve no Governo nos anos em que se fizeram, à vista de todos, os
negócios com Joe Berardo, se construiu a aliança com Ricardo Salgado na PT, se
assaltou o BCP e por fim se levou o país à bancarrota entende que só pode
orgulhar-se do que fez, como ainda esta semana Pedro Marques disse no seu
debate com Paulo Rangel. Quem não admite que errou pode corrigir o erro?
E o que se passa com o país, a
quem tudo isto é indiferente?
Com o país passa-se algo que me
incomoda até mais não: quase nunca perceber o essencial. O que se está a passar com a sindicância à Ordem
dos Enfermeiros é disso um bom exemplo. Imaginem que era com a Ordem dos
Médicos ou dos Advogados. Imaginem que não era depois de uma greve impopular.
Mas sobretudo reflictam no essencial: alguma vez se viu, mesmo na ditadura, um
Governo usar um braço administrativo sob sua tutela para intervir numa ordem
profissional? Não tenho memória.
O
correcto, a haver queixas, era deixar tudo por conta da PGR, que é
independente. Fazê-lo da forma que está a ser feito – pensemos o que pensemos
da senhora bastonária – é um abuso de poder, é agir com o mesmo tipo de métodos
que Victor Orban usa na Hungria. Isto é fazer aquilo a que ele chama
“democracia iliberal”, porventura ao
som do ainda mais iliberal hino da CGTP.
Contudo
ninguém protesta, ninguém fala, ninguém se incomoda, todos devem achar que não
é com eles, o silêncio é ensurdecedor. E em silêncio ficarão até ao dia que
chegar a vez deles, quando for tarde demais.
País
amorfo, país próprio para que Joe Berardo se ria dele. Lamento, mas não posso
estar optimista.
COMENTÁRIOS
Pedro Ferreira: Brilhante artigo. Revela muita
pesquisa documental e uma realidade que ninguém quer ver, para mim, o regime
está profundamente doente. O regime para sobreviver, tem de passar a
presidencialista, um presidente a dar beijos e tirar "selfies" é demasiado
ridículo e irrelevante para a gravidade dos problemas. Sem UE e Euro, o regime
estava maduro para uma marcha de militares de Braga a Lisboa, emulando o
"grande" Gomes da Costa. Parabéns ao prolífico José Manuel Fernandes.
Fernando Ribeiro: "há coisas em que sou mesmo
pessimista." Eu também! E depois a
realidade, INFELIZMENTE, prova-me que afinal sou apenas realista. Tudo o que
JMF escreveu após esta frase é a prova de que, pior que ser pessimista, é saber
que num país assim (e que não muda) não há esperança. Fomos, somos e SEREMOS
pobres, em riqueza, porque incapazes de a criar, e em espírito, porque
incapazes de pensar e de ter carácter. E a realidade, INFELIZMENTE, dar-nos-á
razão.
Zacarias Pançudo: JMF tem a memória muito curta.
A vigarice não começou há 12 anos, começou há 45.
maria perry: Tudo bem lembrado e explicado,
obrigada. A única falha é não denunciar como o polvo socialista, através dos
seus tentáculos na TV e imprensa, conseguiu manter o povo na ignorância. Não é
uma questão de “não querer aprender”. A III República Portuguesa ficará
conhecida como tendo sido pródiga em crimes políticos e bancários cometidos
pelo Partido Socialista e que o papel da comunicação social foi fundamental
para que isso acontecesse
Antonio Fonseca: Não é só o Berardo a rir do
país. São muitos dos que participaram naquela CPI, seja de um lado ou de outro
da barricada.
Carla Nunes: Obrigada, JMF.
Ruik Krull: Não é nada triste, há-de haver
um MÉDICO, UMA ENFERMEIRA, UM POLÍCIA, UM BOMBEIRO E UMA STÔRA QUE VÃO PAGAR
POR ELE. QUANTO VALE UMA APOSTA? - E eu Cata-Ventanias vou tar
caldinho que nem Rato ao qual o outro pertence.
manel buiça: Falta dizer com todas as
letras: país dominado por uma classe política a transbordar de oportunistas,
mentirosos, manipuladores, parasitas e ladrões. Joe Berardo é apenas a
cristalização grotesca e simbólica desta esterqueira de imoralidade, boçalidade
e vampiragem. Em coabitação e contraponto com uma imprensa medíocre,
preguiçosa, corrupta e mercenária. Um decadente mini Império de fake midia.
Também aqui, esta Comunicação Social arregimentada e de cócoras, se tornou um
inimigo da Democracia e da Liberdade. Sustentada por uma maioria de eleitores
infantilizados, submissos e dependentes. Apatetados. Tem razão JMF. Isto não
mudou quase nada. O pesado silêncio, a viscosa apatia, a ruidosa
indiferença e a mansa bovinidade continuam as mesmas de sempre e a tudo cobrir
atavicamente como um manto de negra Covardia. Basta olhar para as principais
figuras do Estado, dos partidos, da comunicação social e sentir e
observar este nauseabundo pântano de mentirosa decadência e glamorosa ilusão.
Isto está PODRE, e, não há mesmo dúvida, cheira mesmo a fétida e viscosa
imoralidade e densa merdha.
Antonio Rodrigues: Só quero dizer uma coisa,
obrigado José Manuel Fernandes.
Jorge Maria Soares Lopes de Carvalho:
Obrigado José
Manuel Fernandes
Antonio Sousa Branco: Parabéns por não ter perdido a
memória, num tempo de amnésia colectiva, especialmente daqueles (quase todos)
que tantas loas teciam. Conseguem não
sentir vergonha? Muita vergonha?
Joao Mar: Qual o elo de ligação entre
Berardo, Vara, Salgado, Lula, Mexia, granadeiro, bava etc? Esse elo
tem um nome famoso: SÓCRATES Esse
mesmo que o regime está a tentar ilibar, com ivo rosinha. O mesmo regime que
pôs berardo num pedestal e lhe encheu os bolsos.
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