Parece-me um texto de arromba que
esclarece bem os artifícios e os artefactos de que se serve A. Costa para
enrolar a nação, enquanto almoça com os seus apoiantes em preparativos para a largada
final, ameaçando, contudo, indignadamente e de mão no peito, dono e senhor da
rectidão, abandonar a coisa – talvez a casa, talvez o coiso, não se entende
bem. No Tartuffe, houve a intervenção da justiça para desmascarar o hipócrita e
o escorraçar, nós não temos a elegância que se prezava nos tempos de Molière.
Mas o texto de José Manuel Fernandes dá no vinte, devíamos segui-lo.
Afinal quem é que anda a “brincar com o
fogo”? /premium
OBSERVADOR, 4/5/2019
Costa acusou a oposição de “brincar com o
fogo” no caso dos professores, eu vejo é pirómanos por todo o lado. Quanto mais
não seja porque a política não se faz queimando pontes ou caminhando sem rumo.
Uma
pessoa sai pouco mais de 24 horas de um país e quando regressa parece que todos
ensandeceram. Pior: parece que todos nos tomam por tontos capazes de engolir os
mais desconchavados contorcionismos.
Estão
a ver do que falo. Quinta-feira passada, quando ao fim do dia tomei um avião
para um rápido compromisso em Cabo Verde recolhiam-se as canas de um foguetório
parlamentar em torno de uma obsessão da extrema-esquerda doméstica, para quem é
melhor um doente morto do que um doente tratado num hospital PPP. Sábado,
quando aterrei, aterrei também em cima da ameaça de demissão do
primeiro-ministro se for aprovada pelo Parlamento uma lei que, parece-me, não é
no seu fundamento muito diferente de uma que o partido do Governo votou no
final de 2017.
Leio
os jornais, revejo as imagens teatrais que passaram nas televisões, e
apetece-me voltar para Cabo Verde. Há limites para a pantominice.
1. Mas
vamos por partes, pois nada me entristece mais do que assistir a debates e ler
análises que se deliciam com os dribles mas pouco ou nada se ocupam do que está
realmente em causa no grande jogo. Ou seja, no país.
Primeiro ponto: os 9 anos, 4 meses e 2 dias reivindicados pelos
professores. Já escrevi,
reescrevi e repito: não têm razão.
Não o fiz ontem. Fi-lo em Novembro de 2017. Antes de o PS aceitar inscrever na
Lei do Orçamento de 2018 uma frase onde lhes dava razão. Não vou repetir
argumentos, vou apenas sublinhar que não são os de Mário Centeno, pois quem
arranjou dinheiro para pagar o disparate das 35 horas ou o dislate do IVA da
restauração sabe o mesmo que eu sei: que essas medidas também foram
injustas, que no primeiro caso levaram à degradação dos serviços públicos e a
um aumento da despesa que ele nem se atreve a admitir, e no segundo não se
traduziu num cêntimo de vantagem para os consumidores.
Segundo ponto: as contas de Mário Centeno são enganadoras pois não deduzem ao que o Estado iria pagar a mais
aquilo que iria receber a mais em impostos e outras contribuições (como se
mostra neste texto de Nuno André Martins, se tivermos como
referência os encargos líquidos com as progressões na administração pública, o
valor real a suportar pelo Estado não chegará a 60% dos números de que se tem
falado). Ou seja, são “números de arremesso” que têm um objectivo
político (já lá vamos) e um significado orçamental: faço parte dos que
não acreditam na solidez do actual processo de consolidação orçamental, dos que
acompanha os alertas do Conselho de Finanças Públicas e dos que suspeitam que
há lixo escondido debaixo dos tapetes do torreão nascente da Praça do Comércio
e por isso acha demasiado etéreo o Plano de Estabilidade entregue em Bruxelas.
Por outras palavras – Mário Centeno sabe melhor do que ninguém que caminha
sobre gelo fino, que o seu brilharete é fruto de uma conjugação excepcional de
factores favoráveis e que já atirou canga que baste para a próxima legislatura.
Ou seja, “não há dinheiro” porque nunca haverá mesmo dinheiro enquanto
mantivermos o Estado paquidérmico que temos, sendo que o Governo da geringonça
só o tornou ainda mais paquidérmico.
2.
Se tivéssemos estadistas em vez de politiqueiros era por estes pontos que
começávamos. Mas não temos. Temos farsantes, uns maus, outros sem vergonha.
Duas fotografias revelam tudo. Duma já quase tudo se disse, a outra
estranhamente pouca gente incomodou.
A
primeira é a do grupo de deputados do PSD, CDS, PCP e Bloco que “cozinham” –
literalmente “cozinham”, linha a linha, palavra a palavra – os termos da
projecto de lei que seria votado na comissão de educação. Esta promiscuidade da direita com a
extrema-esquerda, mesmo sendo para essa extrema-esquerda se abster numa lei
proposta à direita, revela um oportunismo de circunstância que, como escreveu Miguel Pinheiro, deixa a
direita sem “sem argumentos nem discurso”. E o pior, na minha perspectiva, é
que pelo menos o PSD (via David Justino) há muito defendia os “9 anos, 4 meses
e 2 dias”, mesmo que condicionados à evolução da economia, sem se aperceber de
enorme injustiça que isso comportava. Porque é que o fazia? Suspeito porque
também ele, PSD, é cada vez mais um partido de funcionários do Estado, pelo
menos no seu aparelho, pouco sensível à sociedade civil.
A segunda foi orgulhosamente distribuída, via Instagram, pelo
Governo e mostra-nos a reunião do “núcleo de
coordenação política do Governo” reunido na residência oficial do primeiro-ministro.
Acontece porém que, à mesa, está sentada Ana Catarina Mendes, que não faz
parte do Governo, antes é secretária-geral adjunta do PS. Ou seja, é
como se fosse tudo deles, não há o mínimo de respeito pelas instituições, PS e
Governo são uma e a mesma coisa, tanto faz reunir em São Bento como no Largo do
Rato. Podiam fazê-lo discretamente, mas até colocam fotos no Instagram.
Desfaçatez não lhes falta – mas convenhamos que a indiferença da cidadania,
pelo que me foi dado registar, é igualmente assustadora. Fazem de nós tolos e
nós deixamos.
3. E este é mesmo o mote para a terceira e última parte deste
meu desabafo.
Comecemos
pelo PSD e pelo CDS que se enfiaram numa camisa de onze varas por absoluta
infantilidade e irresponsabilidade. É verdade que o próximo governo pode,
de acordo com a sua proposta de lei, passar toda a legislatura sem recuperar um
só dia da antiguidade dos professores, pois nada ficou calendarizado, mas
não sei se é melhor passar por irresponsável financeiro, se andar a prometer o
que não se tenciona cumprir.
Mas
o verdadeiro número de circo foi o protagonizado por António Costa. “De
mestre”, aplaudiram os comentadores quase unanimemente. “Assim talvez vá à
maioria absoluta”, chegou-se a alvitrar. Certo, seguro, é que desta forma o
primeiro-ministro já metera no bolso o “eleitorado do centro” e esvaziava o PSD
(coitado, como se este não estivesse já suficientemente esvaziado no que a
eleições legislativas diz respeito). Tudo isto é capaz de ser verdade na bolha
de Lisboa e talvez chegue a Cascais, mas duvido que seja assim entre quem não
está sempre ligado à política ou ao twitter.
Houve
de resto um comentarista – e não de direita – que divergiu deste coro, numa sentida fúria que o levou a uma
confissão desassombrada: “Infelizmente, tudo em António Costa é táctica,
nada em António Costa é convicção. Isso é coisa que toda a gente de dentro do
PS me avisa há anos.” Pois é Daniel Oliveira, pois é, e só estranho que tenhas
levado tanto tempo a chegar lá, pois os sinais estão por todo o lado.
Ora
esse é precisamente o grande problema desta manobra de dramatização. Todos
sabemos – até porque o próprio já o confessou publicamente – que António
Costa tem uma obsessão com as contas públicas. Não por convicção, claro está,
pois ele até se manifestou contra as regras europeias, mas uma obsessão
eleitoralista porque foi por causa de os portugueses desconfiarem das más contas
do PS que ele perdeu as eleições impossíveis de perder de 2015. Foi para limpar
essa mancha que andou a enganar os parceiros da geringonça com cativações e
cortes sem paralelo no investimento público ou que forçou todos os ministros a
“serem Centeno”.
Agora,
já em cima da corrida para as Europeia, deu o bónus dos passes sociais – e aí
sem pestanejar sobre os milhões que vão custar. Mas as agulhas das sondagens
não mexeram, pelo contrário. Era preciso carregar na tecla das “contas certas”.
O caso dos professores foi a oportunidade que não desperdiçou. Temos ladainha
para as próximas semanas, talvez meses. Com os tais “números de arremesso” que
ninguém pode verificar.
Acontece porém que não se veste a
pele de uma espécie “Passos II” depois de anos a diabolizar o Passos autêntico.
Por uma questão de autenticidade.
António
Costa pode encantar os treinadores de bancada com os seus dribles e não duvido
que baralha facilmente os cálculos de Rio e mesmo de Cristas, mas nenhum
daqueles miríficos eleitores “do centro” que ele agora quer cativar sabe – e
jamais poderá saber – que Costa vai comprar. O que “virou a página da
austeridade”, como repetiu anos a fio? Ou aquele que, afinal, apenas
disfarçou a austeridade, como agora confessou o seu ministro das Finanças?
O pai pródigo dos passes sociais ou o pai tirano de professores e
enfermeiros? O que um dia envia um documento ao Bloco e ao PCP a acabar
com as PPP na Saúde ou aquele que, depois, já não acaba com as PPP? O que no
final de 2017 deixava o PS aprovar uma alínea a prever a recuperação de todo o
tempo de congelamento de carreiras, ou aquele que se demite se esse princípio
for aprovado? O bonacheirão para quem tudo corre sempre às mil
maravilhas ou o guia cauteloso que avisa para as armadilhas que o caminho
esconde?
Não
se pode ser tudo e o seu contrário, mas há quem se encante com políticos assim.
Eu, um velho chato, é que sempre achei que eles são apenas homens do poder pelo
poder que acabam a fazer mal à democracia.
E
depois, caramba, que futilidade: demitir-se para provavelmente ter as eleições
no mesmo mês de Setembro? Ficar o em gestão até lá, perdendo-se quatro meses de
governação? Deitar para o lixo leis quase prontas e que há dois dias o próprio
Costa dizia serem estruturantes (habitação, saúde, trabalho)? E tudo isto
sacrificado como quem arrisca o resto do dinheiro numa derradeira jogada de
póker?
Definitivamente,
não é o meu estilo nem penso que sirva o país.
COMENTÁRIOS
Assim Vamos: Faz bem Rio em não falar. Primeiro a lei tem que ser
aprovada e promolugada. Até lá é a charanga que os socialistas querem.
Carla Nunes: Faltava a
análise lúcida e clara de José Manuel Fernandes. Muito bom texto. AC até pode
querer imitar Passos Coelho mas está no extremo oposto. Passos Coelho é um
estadista. Um estadista não optava por este circo triste.
António Hermínio Quadros Silva: Estes politicos manhosos de todos os partidos
(por isso o outro não podia com partidos) puseram Portugal como o chapéu de um
pobre, sujo, roto amachucado, sem qualquer esperança de voltar a ser o país que
já foi no principio da década de 70. Por qualquer ponto que se tente descobrir
de positivo se encontram em contraponto vários negativos. A técnica dos
manteúdos do regime é comparar o país actual com o de 50 anos atrás como se não
tivesse havido a revolução o pais que existia não tivesse evoluído mais e
melhor do que o democrático(?) se evoluiu em 45 anos de corrupta democracia.
Jay Pi: O mais assustador de tudo é mesmo o que foi focado por
JMF: não se sabe o impacto da medida. Será possível em pleno século XXI não
existir em Portugal, quer no estado, quer nos partidos, quer nas universidades,
quer na "sociedade civil" nada nem ninguém que consiga de forma
expedita fazer o cálculo preciso e rigoroso do verdadeiro valor que esta
decisão da assembleia irá acarretar? Será Portugal um país de tal forma amador
e destituído de instituições ou personalidades com capacidade para debruçar um
olhar informado e matematicamente avalizado sobre uma questiúncula de gestão
orçamental? Uma vergonha... Saliento mais uma vez a questão dos valores em
apreço em torno de toda esta problemática. Dois pontos são dignos de nota: o
governo mente à cara podre sobre o montante e real impacto das devoluções em
causa; o estado não tem a mínima folga para absorver uma decisão da assembleia
sobre um aspecto de lana caprina (tempo de serviço de um grupo de funcionários
públicos), revelando a sua extrema fragilidade e toda a péssima governação que
tem vindo a ser praticada até ao momento, sob a máscara da mais virtuosa
governação de sempre.
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