Era D. Gil um jovem fidalgo rico e
bondoso, que um dia se apaixonou pela pastora Solena, amores espirituais,
condenados naturalmente ao fracasso, pela diferença de estatuto, mas intensos
como todos os amores primeiros. Solena foi raptada e D. Gil a procurou com os
seus homens, passando pelo castelo de Lanhoso donde apenas dois homens, com
chuços, responderam ao som da buzina, gritando: “Cá por aqui é honra! A que vindes?” Trata-se da “Lenda de S. Frei Gil”, uma das três
lendas, mas esta incompleta, das “Lendas
de Santos” de Eça de Queirós.
Lembrei-me do episódio gracioso a
propósito desta nossa ânsia de honra, altissonante e clamorosa, e definitivamente
defendida com chuços.
Pouco entendo da questão, mas os
comentários - (apenas dois aceites no blog) - abrem mais pistas sobre as farsas que praticamos há muito, sem
apelo nem agravo, continuando a martelar, de mão no peito, o chuço no lugar da
espada: “Cá por aqui é honra”.
Editorial
A ignóbil farsa do SIRESP
Nacionalize-se, compre-se e
revenda-se, destrua-se e faça-se de novo, seja o que for. Para o país, tudo é
melhor do que a perpetuação da ignóbil farsa do SIRESP.
MANUEL CARVALHO
PÚBLICO, 14 de Maio de 2019
O
SIRESP tornou-se há muito o emblema da fraqueza do Estado pintado com contratos
“opacos” (quem o diz é
o Tribunal de Contas), custos elevados e prestação de serviços da
era da ferrugem na era das telecomunicações digitais. Já todos sabíamos dessa
vergonha que envolve políticos transumantes entre o público e o privado,
incompetência e muita bravata inconsequente.
O
que não tínhamos visto ainda era os gestores de uma empresa que presta um
serviço de emergência arrogar-se ao direito de ameaçar com o
desligamento do serviço que presta na época dos incêndios se o
Estado não lhe pagar 11 milhões de euros em dívida. Não bastavam as desgraças
de algumas parcerias público-privadas, não chegava Joe Berardo ter ido ao
Parlamento para nos insultar: faltava o SIRESP vir a público ameaçar pôr as
nossas vidas em perigo só para encostar o Estado à parede.
Perante
uma ameaça desta dimensão, seria de esperar não apenas uma crítica em uníssono
de todos os partidos, mas também uma diligência do sistema judicial que tem por
dever a defesa dos cidadãos perante ameaças de chantagem. O que vimos e
ouvimos, porém, não foi para lá de palavras de
apaziguamento ou de promessas de serviços mínimos ou da
nacionalização do nefando SIRESP.
Como
explicar esta tibieza a roçar a cobardia? Basta recordar toda a história do
SIRESP, os contratos, os fracassos, os 463 milhões de euros desbaratados no
“sistema”, a impunidade ou os actos,
omissões e promessas falhadas deste Governo para pôr o processo na
ordem00:00
Tudo
isto, e muito mais, é a prova de que essa suposta rede de comunicações de
emergência não passou de uma negociata que capturou o interesse público numa
teia obscura de poderes. Quando uma empresa admite pôr em causa vidas de
cidadãos, não estamos perante uma tomada de posição firme perante divergências
negociais: estamos perante um poder que se julga acima da lei, acima do Estado,
acima de todos nós.
Falta
pouco para que o pesadelo acabe — lá para 2021. Mas, por uma questão de
decência pública, perante o abuso de uma entidade à qual o Estado prometeu dar
11 milhões para que faça o serviço a que se comprometeu, face a um contrato
escandaloso que só criaria penalizações
por falhas de serviço se o caos se instalasse, é urgente acabar de
vez com a incompetência, abuso e fanfarronice do SIRESP. Nacionalize-se,
compre-se e revenda-se, destrua-se e faça-se de novo, seja o que for. Para o
país, tudo é melhor do que a perpetuação desta ignóbil farsa.
Dois COMENTÁRIOS
ana cristina Lisboa et Orbi 14.05.2019: esperem... há quantos e quantos anos o antónio costa
anda em negociações sobre o siresp? diz a wikipedia, sobre o siresp: "Em
2006, o Tribunal de Contas apontava o dedo a António Costa por este ter
homologado o contrato sem colocar em competição as diferentes tecnologias e os
respectivos preços..." como é possível que neste editorial não se faça
referência a esta ligação tão íntima entre o que é hoje a "ignóbil farsa
do siresp" e o seu eterno negociador antónio costa, que a definiu,
redefiniu e alimentou?
fernando ferreira franco 14.05.2019 :
Tanto a notícia como os comentários lembram-me um
cinódromo onde os cães correm desvairados atrás de um coelho (fictício este)
sem perceberem que o isco não é o coelho mas sim eles próprios, isco dos
apostadores. Aqui, o nosso jornalista, distraído ou simplesmente autorizado a
arrastar com ele os leitores, corre atrás de um corpo fragilizado (porventura
já morto) descurando o facto de que há inúmeros SIRESPS dissimulados em funções
tão insípidas como as que denunciam aqui, mas infelizmente tardam em ser
desmanteladas. Quando a actividade de um governo se pauta pela criação de
empregos, só se espera que surjam Siresps.
Nenhum comentário:
Postar um comentário