Por enquanto, da europeia, em síntese
bem estudada, por Teresa de Sousa, que fez os
seus comentadores entrar em despique. Quem sabe, sabe. Mesmo que o saber seja
coisa das relatividades. Temos que ter em conta sempre o fluir dos tempos, com
novos comparsas a espalhar o caos por esse mundo. Qu’en savons-nous? Mas a análise de Teresa de Sousa parece-me bem urdida, o que não é de admirar,
responsável e estudiosa como é. Tenho pena que se desfaça a tal União Europeia, como projecto de fraternidade, mau
grado as discrepâncias e as irresponsabilidades de povos como o nosso, que o
encararam, em parte, como um tributo de facilitação, sem a respectiva retribuição
em zelo de cumprimento, mas apenas de aproveitamento grosseiro. Até ver.
ANÁLISE: Norte contra Sul, Oeste contra Leste? Mitos e
realidades de uma nova geografia europeia
Há
a fragmentação política, mas há também uma nova “geografia de blocos”,
igualmente ameaçadora para a unidade europeia: o Leste contra o Ocidente ou o
Norte contra o Sul. Feita de diferenças que a crise acentuou, mas também de
preconceitos.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 13 de Maio de 2019
Em
vésperas de eleições europeias, o cenário mais preocupante é o da fragmentação
política da Europa, com a ascensão dos partidos populistas e nacionalistas, na
sua generalidade fortemente eurocépticos, e a queda das velhas famílias
políticas que construíram a União Europeia desde a sua fundação. Há, no
entanto, por trás deste risco de fragmentação política outras linhas de fractura,
mais ou menos recentes, nascidas ou renascidas da crise financeira de 2008, que
deu origem às sucessivas crises da dívida, do euro e, finalmente, a uma crise
política que pela primeira vez colocou sobre a mesa o cenário do fim da
integração.
A Europa sempre teve diferentes
geografias. Durante décadas, quando era apenas uma realidade ocidental, teve um
centro político e geográfico em torno do qual se arrumavam facilmente as peças
do puzzle europeu. Funcionou ao sabor dos entendimentos entre a
França e a Alemanha, as duas grandes nações “inimigas” que souberam colocar o
seu compromisso europeu à frente da sua História. Os sucessivos alargamentos,
que levaram a União Europeia dos seis países fundadores aos actuais 28,
tornaram este puzzle muito mais complexo. Mas a Europa cumpriu a sua
missão inicial: expandir a democracia a todo o continente. A diversidade
cresceu, o centro político manteve-se.
Hoje,
dez anos depois do início de uma crise que se tornou existencial, a sua geografia mudou. Mudou politicamente. Mudou na
sua organização interna, cedendo pela primeira vez à lógica dos “blocos”,
deixando vir ao de cima diferenças que a própria integração europeia pretendia
erradicar – culturais, económicas, sociais. Por vezes, assentes em meros
preconceitos, outras vezes com origem em diferentes níveis de desenvolvimento
económico e social e diferentes tradições políticas. A História, apagada por décadas
de convivência, fez o seu regresso. Hoje, a questão é também como manter a
diversidade sem criar novas fronteiras.
O eixo franco-alemão
A
primeira questão tem a ver com o centro político, o “motor” que quase sempre
conseguiu funcionar como uma poderosa força centrípeta capaz de manter o todo
unido. Fruto da crise, tem parado de aumentar a distância entre Paris e Berlim.
Não no seu compromisso histórico – cuja importância nenhuma liderança se
atreveu jamais a questionar –, mas na incapacidade para encontrar um terreno comum que permita retomar o seu papel de liderança.
A
saída provável do Reino Unido
colocá-las-á de novo sozinhas frente a frente. Londres não era (apenas) o país
desmancha-prazeres. Era, pelo contrário, uma peça fundamental da coesão
política europeia na medida em que representava a visão (mesmo que nem sempre
explícita) de alguns dos seus Estados-membros sobre a integração europeia,
insuflando-lhe o indispensável espírito de abertura ao mundo. Era, além disso,
um factor de equilíbrio entre Paris e Berlim, ajudando a equilibrar a relação
entre as duas capitais continentais, quando ela se desequilibrou a partir da
reunificação alemã.
A eleição de Macron, em Junho de
2017, começou por ser uma história de amor à primeira vista. Mas a Europa que
Macron desafiou os alemães a construir não encontrou do lado de lá do Reno a
resposta com que o Presidente francês contava
Hoje,
a “estratégia do compromisso” entre alemães e franceses deu lugar àquilo que um
diplomata francês chama “estratégia da tensão”. “A realidade é que os caminhos da
França e da Alemanha estão a divergir cada vez mais”, diz o mesmo diplomata citado pelo Le Monde. As eleições europeias
correm o risco de “sublinhar as diferenças”. A eleição de Macron, em Junho de
2017, começou por ser uma história de amor à primeira vista: foi saudado em
Berlim como uma “divina surpresa” e com um enorme alívio – chegou a temer-se
uma vitória da Frente Nacional de Marine Le Pen. A Europa que Macron desafiou
os alemães a construir – o “renascimento europeu” – não encontrou do lado de lá
do Reno a resposta com que o Presidente francês contava. Aliás, encontrou
sobretudo o silêncio, apenas quebrado de vez em quando em torno da necessidade
de reforçar a dimensão externa e de segurança da União Europeia. “Macron considerava
que o eixo Paris-Berlim se tinha transformado num ritual beato e sem
substância. Quis mudar e virou a mesa”, diz um diplomata que lhe é próximo,
também ao Le Monde.
Em
finais de 2018, quando foi a Aix-la-Chapelle (a cidade com dois nomes que
hoje se chama Aachen) receber o Prémio Charlemagne, o Presidente francês
fustigou diante da chanceler o “perpétuo fetichismo alemão pelos excedentes
orçamentais e comerciais”, conseguido “à custa de outros”. No passado dia
25 de Abril, durante a conferência de imprensa para relançar a sua presidência
depois do “grande debate nacional”, afirmou, sobre o mesmo tema: “A Alemanha
está, sem dúvida, a chegar ao fim de um modelo de crescimento que tirou
benefício dos desequilíbrios da zona euro.” A imprensa alemã acusa-o de
renunciar à redução do défice a pretexto dos gilets jaunes. A sua ideia
para ligar de novo o motor franco-alemão é assumir os desacordos numa
“confrontação fecunda”.
Não
quer isto dizer que alemães e franceses não mantenham total consciência de que
continuam condenados a entender-se. Voltando ao Le Monde, que cita um
diplomata próximo de Merkel, “num mundo cheio de ameaças, onde
existem um Putin, um Trump, um Erdogan, um Xi Jinping, a França e a Alemanha
sabem que precisam de se pôr de acordo”. A saída da chanceler cria uma
oportunidade, mas também aumenta a incerteza. O resultado das eleições
europeias pode funcionar como o sinal de alarme nas duas capitais.
Que
novas alianças vão condicionar esta parceria fundamental, ainda é uma
incógnita. A Holanda quer aumentar a sua influência em Paris e Berlim. Os países do Sul
sabem que nem sempre podem contar com a França para pesar do seu lado: na hora de
fazer as contas, ainda não é certo que Paris não prefira Berlim a Lisboa,
Atenas, Madrid. Roma corre o risco de ficar de fora.
Na contagem decrescente para o euro,
nos anos 90 do século passado, quando cada um dos países europeus que quisesse
pertencer ao núcleo fundador da união monetária sabia que teria de cumprir
religiosamente os chamados critérios de convergência nominal, houve um intenso
debate sobre quem deveria fazer parte da moeda única – já não sobre os
critérios de Maastricht, mas sobre a solidez das respectivas economias. Foi o
primeiro confronto Norte-Sul, a que, na altura, não se deu demasiada importância.
O chefe de gabinete de Tony Blair fez saber várias vezes em Bruxelas que nunca
o Reino Unido participaria numa união monetária onde estivessem também os
países do Sul da Europa. Ficaram célebres as declarações do ministro holandês
das Finanças, Garrit Zalm, para quem esses países não deveriam juntar-se aos
países ricos que rodeavam a Alemanha. O marco era, na altura, o rei de todas as
moedas. Os obstáculos foram superados. Prevaleceu a letra do Tratado de
Maastricht. Os primeiros dez anos da união monetária foram o paraíso. Os
últimos dez, o inferno.
Durante a crise, voltou
a cavar-se uma profunda divisão Norte-Sul – algumas vezes assente em
puros preconceitos. Foi o tempo dos “preguiçosos” e dos “indisciplinados” do
Sul, amantes da praia mais do que do trabalho árduo. A hipótese de “convidar” a
Grécia a sair do euro chegou a estar à mesa do Conselho Europeu e do Eurogrupo.
“Punir os culpados” foi a mensagem que Berlim encontrou para convencer os
alemães de que, se era preciso pagar para os salvar, então também era preciso
puni-los com programas de ajustamento assentes em doses colossais de
austeridade. Angela Merkel percebeu a tempo que deixar cair a Grécia na
bancarrota arrastaria inevitavelmente outros países da zona euro, pondo em
risco a própria moeda única europeia. Fez o que tinha que fazer. No Norte, as
posições mais intransigentes contra o Sul foram quase sempre capitaneadas pela
Holanda, apoiadas pela Áustria e pela Finlândia, mas também por alguns dos
países da Europa Central e de Leste – dos Bálticos à República Checa.
É
preciso dizer que os preconceitos foram mútuos. O rosto da chanceler
desfigurado pelo bigode de Hitler foi várias vezes exibido nas manifestações em
Atenas contra a austeridade. O sentimento antigermânico, sobretudo nos países
que foram ocupados pelas tropas nazis, foi explorado injustamente.
O
estigma não desapareceu. A “Nova Liga Hanseática” liderada por Mark Rutte
mantém-se activa. Mas, em boa medida, o ambiente já desanuviou. Prova disso
é a escolha de Mário Centeno
para presidir ao Eurogrupo, num gesto de confiança inesperado
No
estudo Estereótipos Nacionais no Contexto da Crise Europeia, Aline Sierp e
Christian Karner, da Universidade de Maastricht, lembram que, “à medida que a
UE e os seus Estados-membros tentam ultrapassar as fracturas profundas
socioeconómicas e ideológicas que a crise de 2008 revelou, uma nova dimensão
crucial é dada pelas memórias partilhadas (...). O passado e a forma como
pensamos nele tem implicações tremendas na forma como lidamos com a crise
actual e como respondemos às tensões que cria.”
Hoje,
Espanha e Portugal voltaram à primeira linha do debate político europeu,
recuperado a sua antiga influência em Bruxelas – a maneira mais eficaz de
diluir o fosso aberto entre Norte e Sul. O Norte ainda não regressou ao
espírito de solidariedade que marcou as primeiras décadas da integração
europeia. Niels van Willigen, do European Council on Foreign Relations, escreve
no seu site que a Holanda “parece
estar preparada para encontrar uma nova forma de equilibrar o eixo
franco-alemão”. “É um dos
países mais influentes [da União], pioneira em diferentes áreas políticas,
contribuinte líquido para o orçamento comunitário e um dos principais
beneficiários do mercado único”, continua. Para concluir: “O lado negativo
do pragmatismo de Rutte é uma defesa bastante inflexível e pouco solidária dos
interesses nacionais, esforçando-se muito pouco por enquadrá-los numa agenda
europeia mais vasta”. “Iniciativas como a Nova Liga Hanseática podem constituir
um limite ao seu esforço para aumentar a influência em Berlim e Paris.”
Leste-Oeste
Sobre esta divisão entre dois blocos
que a crise do euro acentuou, foi emergindo outra, porventura mais pesada de
consequências e mais difícil de superar: a divisão Leste-Oeste. Também o alargamento aos países da Europa Central e de
Leste, a partir de 2004, começou por ser uma história de sucesso, para se
transformar nos últimos anos num problema. Aqui, as divisões não são em torno
da disciplina orçamental, da competitividade da economia, da boa gestão das
contas nacionais. São sobre identidade, democracia, Estado de direito. Os
critérios deixam de ser os de Maastricht, para passarem a ser os de Copenhaga:
aderir à União implica um regime democrático estável, um Estado de direito
funcional e o respeito pelas minorias.
A
divisão pode ser geográfica, mas as suas fronteiras são hoje essencialmente
políticas. Tal como na divisão Norte-Sul, os países da Europa
Central e de Leste não comungam todos dos mesmos problemas nem caem todos nas
mesmas tentações. A doença
tem, no entanto, alguns traços comuns: a crítica às democracias liberais
próprias do mundo ocidental; a rebelião contra a “ingerência de Bruxelas” e a
defesa da soberania nacional; a bandeira do cristianismo contra o regresso do
velho Império Otomano, do qual foram historicamente a principal barreira. É uma mistura complexa e desigualmente distribuída,
que tem hoje a sua expressão mais evidente na Hungria de Viktor Orbán e na
Polónia de Jaroslaw Kaczynski, mas que encontra algum terreno comum nos outros
dois países do Grupo de Visegrado –
a Republica Checa e a Eslováquia. A expressão deste mal-estar europeu é
diferente na Roménia e na Bulgária, cujas transições foram menos bem-sucedidas.
Nestes dois países, são muito mais visíveis os problemas ligados à corrupção e
aos “golpes” políticos do que propriamente uma deliberada rejeição da própria
Europa. De comum entre todos, um forte sentimento de que são tratados como
“europeus de segunda”.
“Quinze
anos depois do grande alargamento [de 2004], a União Europeia ainda parece ser
constituída por duas metades”,
escrevia recentemente no site Politico.eu Tomás Valàsek, director
do think-tank Carnegie Europe e antigo embaixador eslovaco na NATO. “Quinze
anos depois, os europeus ocidentais ainda se referem aos países-membros da
Europa Central e de Leste como ‘os novos’, como se ainda não fossem
completamente europeus.” Valásek lembra que o alargamento a
leste não foi igual aos alargamentos anteriores. “As duas partes subestimaram
as grandes diferenças do processo de alargamento de 2004”, diz o director do
Carnegie. No passado, o alargamento foi sobretudo sobre a inclusão de países
com a mesma pertença à Europa Ocidental – “as pessoas viajavam livremente,
conheciam a história dos outros e as suas tradições, o que pura e simplesmente
não era verdade em relação os países do antigo bloco soviético”. “Demasiados mitos ainda perturbam as relações entre a
Europa Ocidental e a Europa de Leste, mas o que muitos não percebem é que a
divisão Leste-Oeste não é mais importante do que outras divisões europeias –
entre ‘pequenos’ e ‘grandes’ ou entre Norte e Sul. É apenas menos entendida,
devido à falta de familiaridade entre os dois lados.” Para concluir: “Só
superando esta relação conflituosa pode a União Europeia ter esperança de
sobreviver às muitas forças que a tentam destruir.”
Tony
Barber, editor do Financial Times, insurge-se contra as simplificações
redutoras que “atribuem ao Leste todos os problemas” da Europa. “Alguns dos
países da Europa Ocidental apresentam o combate [pelo futuro da Europa] em
termos geográficos demasiado simplistas: um duelo entre liberais virtuosos de
espírito aberto a ocidente, e reaccionários antidemocráticos a leste.” “O
conceito de uma Europa com duas metades é uma distorção intelectual que
herdámos da Guerra Fria.” Quase 30 anos depois do fim do comunismo, o mito de
uma Europa binária recusa-se teimosamente a morrer.
António Vitorino, antigo comissário
europeu e director da
Organização Internacional para as Migrações, tinha uma fórmula que talvez ajude
a compreender o que está em causa. Para lá das divisões Norte-Sul ou
Leste-Oeste, só haverá uma à qual a Europa certamente não resistirá: “A divisão
entre os eternos perdedores e os eternos ganhadores.” Talvez esteja aqui a
chave da resolução do problema.
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