sexta-feira, 17 de maio de 2019

Cultura? O que é?



Subscrevo as palavras de mzeabranches que naturalmente estranha a referência a “cultura” omitindo-se a gravidade do desprezo pela “língua”, que fere quem ama a lógica e o seu país e não embarca nessas traições, afinal cometidas pelos intelectuais que a dominam, como dominam os temas culturais sobre que se debruçam. Leio Frederico Lourenço, por exemplo, que tão bem nos esclarece sobre a Gramática Latina e tão primorosamente traduz obras clássicas em belas edições encadernadas, livros que lemos com verdadeiro empenho e prazer, mas (o raio da adversativa) de facto sentindo as pedradas do seu desprezo pela língua do Acordo antigo, indiferente aos desconchavos do novo Acordo Ortográfico que nos tornam o escárnio de todos quantos respeitam a congruência. O mesmo diremos da escrita de Clara Ferreira Alves que há muito admiramos como intelectual arguta e boa escritora, mas cuja escrita, segundo os novos padrões aparentemente acordados, constitui mero pedantismo de progressista na berra, para se fazer tolamente salientar, desprezando os parolos não aderentes e a pátria a que pertence, cheia de “gentinha” sui generis. A cultura deveria traduzir modéstia na consciência do “quod nihil scitur” da condição humana, e respeito, mas como é isso possível num povo desde sempre pisando o atoleiro da sua condição de incúria intelectual? Os que sobressaem não se importam com tais balelas de desrespeito ortográfico, daí, que relevância pode ter a cultura, senão favorecer o progresso no que ele implica de lucro imediato, ruído, indisciplina, para onde caminhamos? Religiosamente, ouvimos os programas de José Hermano Saraiva, em reposição, e achamos que ele ajudou a defender o património nacional, chamando a atenção para a incúria do abandono, mas também para os valores do nosso progresso possível. A situação de desleixo moral em que o país se encontra, que gradualmente se vem descobrindo, é mancha que não permite que se avance positivamente. O “miserável estado da Cultura em Portugal” de que trata o texto de JMT é consequência da mancha. Somos um povo condenado. Vamos andando. Temos o sol que brilha, embora também amoleça.

OPINIÃO
O miserável estado da Cultura em Portugal
Passados cinco anos, a Cultura, de facto, recebeu de volta o seu ministério – mas não recebeu mais do que isso.
PÚBLICO, 16 de Maio de 2019
A direita em Portugal tem a fama – e o proveito – de não dedicar a devida atenção à Cultura, e de estar convencida de que os dinheiros públicos da área só são bem gastos se forem usados para a preservação do património. Esta visão míope do que deve ser uma política cultural tem como consequência uma postura filisteia que é desprezada por praticamente todo o sector, e com bons argumentos. É por isso que António Costa, ao contrário de Rui Rio, consegue encher o Mercado da Ribeira com centenas de artistas felizes e ululantes, como aconteceu em Julho de 2014, quando prometeu que a Cultura iria ter de volta o seu ministério, desaparecido nos tempos de Passos Coelho.
Passados cinco anos, a Cultura, de facto, recebeu de volta o seu ministério – mas não recebeu mais do que isso. O ministro João Soares não teve tempo para aquecer o lugar, graças às bofetadas que prometeu dar a Augusto M. Seabra e a Vasco Pulido Valente; Luís Filipe Castro Mendes passou pelo ministério com a leveza de um soneto bucólico; e Graça Fonseca pode ser uma técnica competentíssima, mas percebe tanto de Cultura como eu percebo de bilhar às três tabelas. Os resultados estão à vista: a Cultura portuguesa está tão comatosa como nos tempos da troika, e o sector só está calado por preconceito ideológico – Costa e a “geringonça” são de esquerda, a esquerda é suposto ser amiga da Cultura, donde, apesar de não mexerem uma palha (tal como os outros), sempre combinam melhor com o mobiliário do Palácio da Ajuda.
E, no entanto, uma política cultural de direita era possível, se começasse por proporcionar aquilo que algumas das melhores pessoas que trabalham no sector reclamam há anos sem fim: autonomia. Apesar de o país precisar de bons quadros nesta área como de pão para a boca, aquilo a que se assiste é a um confrangedor desprezo pelo talento, e a um verdadeiro incómodo em relação a todos aqueles que têm a coragem de fazer ouvir a sua voz, em defesa do trabalho que gostariam de realizar – mas que não podem, devido ao estrangulamento das cativações e à absoluta dependência de uma orgânica burocrática que asfixia toda a ambição.
No passado fim-de-semana, o director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), António Pimentel – que, já desesperado, abandona o cargo no próximo mês –, deu uma entrevista ao El País sobre o estado do MNAA. Por seu lado, José Manuel Costa, director da Cinemateca Portuguesa, deu uma entrevista ao Expresso sobre o estado da Cinemateca. Pimentel e Costa são duas pessoas de que o país se deveria orgulhar pela paixão que devotam à área em que trabalham e pela sua indiscutível competência. Vale a pena comparar os dois artigos.
Um queixa-se do “abandono do Estado”; o outro diz que “a Cinemateca foi esquecida”. Um declara que nem sequer consegue ficar com as receitas da bilheteira e da loja (vão todas para o ministério); o outro fala em “inferno burocrático” e garante que se tivesse “liberdade administrativa” para vender “serviços com agilidade” poderia ter “uma actividade sustentável”. Ambos pedem o mesmo, e não é mais dinheiro – é apenas mais autonomia para obter receitas e poder desenvolver as suas instituições. Sejamos claros: é um escândalo que o Estado não consiga dar uma resposta a estas pessoas. E é uma absoluta tragédia que elas acabem por desistir, cansadas de anos e anos de lutas inglórias, para depois acabarem substituídas por pessoas muito menos competentes, apenas porque sabem estar muito mais caladas.
COMENTÁRIOS
trosario51: A arte na sua essência , não precisa de politica para a cultura ,nem de dinheiro do estado , para existir, que o digam grandes criadores, como Picasso, Pablo Neruda ou mesmo Vieira da Silva, até Pedro Mexia e, tantos outros. Tavares ,tal como Cristas, em desespero , pasme-se! passam da direita radical, para a extrema esquerda, na defesa dos valores. O Povo Português, pode não ser de cultura elevada, mas não é estúpido, sabe distinguir os que são credíveis e os outros.
Colete Amarelo, Aqui mesmo 16.05.2019: Já Camões dizia, no Canto V, que os portugueses não valorizavam a cultura. Enfim, não houve forte Capitão Que não fosse também douto e ciente, Da Lácia, Grega ou Bárbara nação, Senão da Portuguesa tão somente. Sem vergonha o não digo: que a razão De algum não ser por versos excelente É não se ver prezado o verso e rima, Porque quem não sabe arte, não na estima.
Inês R. Bruxelas; Porto 16.05.2019: Subscrevo a análise de JMT, ressalvando a qualidade da Cultura produzida por entidades totalmente autónomas do Estado. Mas é lamentável o funcionamento das nossas instituições, não por culpa própria, mas devido aos constrangimentos administrativos. Uma nota a Carla Moreira: "personagem" é um substantivo feminino e masculino, com duas acepções totalmente distintas, consoante o género do respectivo artigo. Fala-se "numa personagem" em obras de arte de ficção (romance, novela, teatro, poesia, etc.). "Um personagem" é uma pessoa do mundo real, frequentemente com traços peculiares ou caricaturais ou que é retratada nesses termos. Infelizmente, a maioria das pessoas desconhece esta distinção e chega mesmo a confundir e trocar os dois conceitos, utilizando-os de forma errada.
Leitor atento, Coimbra 16.05.2019: Já alguém falou na "maldição da cultura", que nunca mais teve ministro desde que Manuel Maria Carrilho bateu com a porta, há quase 20 anos...Ele fez de tudo: bibliotecas e cineteatros por todo o país, a criação do museu de Serralves, a renovação de vários museus (o de Etnologia em Lisboa, o Machado de Castro em Coimbra, o Grão-Vasco em Viseu, etc), o Porto/ Capital Europeia da Cultura, a salvação do agora Património Mundial do Côa, a aposta na arte contemporânea sem descurar o património, a renovação da Biblioteca Nacional e da Cinemateca, a criação dos telefilmes com a SIC, o lançamento da Casa da Música, a criação da Orquestra do Porto, o maior apoio de sempre ao teatro, à dança, à música e aos festivais, a presença da cultura portuguesa no mundo, em Frankfurt, Nova York, Paris, etc.
Gastão Clemente, Custóias 16.05.2019: E ainda patrocinou programas de rádio, na Antena 1, para a Bárbara Guimarães.
Nuno Silva, 16.05.2019 : Sem cultura nem ciência, o ser humano transforma-se numa planta carnívora.
mzeabranches, 16.05.2019: "O miserável estado da Cultura em Portugal": estranho que, com este título, e embora o autor escreva com a ortografia correcta, não seja referido o "miserável estado" em que se encontra a língua de Portugal! E não há Cultura sem língua: é indispensável «reconhecer o conteúdo cultural fundamental de cada língua, tomar consciência do facto de que toda a língua é portadora duma filosofia do mundo, dum imaginário, e até de utopias que estão inscritas no tecido da sua gramática, na estrutura das suas palavras e na organização das suas frases.» ("Contre la pensée unique", Cl. Hagège, que traduzi). Devemos ser o único povo que despreza a própria língua, permitindo aos políticos que dela se apropriem, sem nunca se discutir - inclusivamente em época de eleições - o seu estado e o seu destino!
Gastão Clemente, Custóias 16.05.2019: Se bem entendi, JMT defende para as instituições culturais públicas uma liberdade de gestão e procedimentos que não defende para outras instituições administrativas. Para museus e cinemateca, liberdade de contratação e despesas sem freio nem burocracias; para a restante administração pública, restrições na contratação de funcionários, procedimentos burocráticos, controle financeiro e orçamental. Em que ficamos? Fazer um concurso público custa - mas a todos! Pergunte ao seu amigo Pedro Mexia, que esteve na Cinemateca, por que fugiu de lá a sete pés. Terá sido porque escrever uma crónica domingueira ou um trecho lírico é bem mais fácil e dá menos trabalho do que tomar conta de um procedimento concursal ou contratar um funcionário com meia dúzia de tostões (sempre excessivos, para JMT)?
Carlos Cunha, 16.05.2019: é por isso que tantos intelectuais têm que viver como "jornalistas", "comentadores políticos / analistas políticos", circulando por aí enquadrados nas conjunturas conjecturadas pelos próprios, e acabam conhecidos e reconhecidos do grande público por essa via. A propósito: será que o JMT já teve curiosidade em verificar, na página oficial do CC do PCP, a quantidade de membros deste CC identificados como "intelectuais"? É a vida.
Ludwig Popov, UE 16.05.2019 :  Cultura? Tive de mudar de cidade e lá fui eu ao centro de saúde do novo local para efectuar a transferência, disseram-me que médico de família não tenho e que estão 900 pessoas à espera, e a funcionária muito inteligentemente disse-me "e há também muitos estrangeiros aqui sabe?" e eu pensar, "bichos de sete cabeças tipo parasitas como eu que sempre trabalhei em Portugal e paguei impostos" mas nem disse nada óbvio. Quando se faz isto ao SNS, que esperar da Cultura? Mas não acaba aqui, disseram-me que a minha filha de 2 anos tem direito a médico (wow) mas que depois me ligavam para confirmar a consulta, continuo à espera, uma semana, nada mau, só um pequena violação da Carta da ONU em relação aos direitos das crianças. Cultura num país destes na UE só pode ser miserável.


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