Maria João Avillez não receia
contar dos seus tempos de menina e moça pertencentes a uma aristocracia que por
cá já não vai sendo comum, substituídos que foram os conceitos da aura
prestigiante do berço dourado, pelos da fraternidade global que a todos iguala,
de preferência com o mobiliário prático da Ikea, sem retorcidos. Também não
receia contar dos seus afectos e ligações heráldicas com a coragem com que por
vezes é capaz de ironizar contra as políticas de que discorda. As liberdades
democráticas deveriam permitir-lhe a sua, mas há quem se azede, no meio da
maioria dos seus admiradores.
Um grande livro, um grande homem, uma grande
vida /premium
OBSERVADOR, 1/5/2019
Dada esta circulação de ar e de ideias,
mal disparou o PREC o nosso “Campo Grande” assumiu-se muito naturalmente como
poiso de revolucionários e de contra-revolucionários.
1. Desde muito pequenas que as minhas irmãs e eu
nos habituámos a conviver com admirável naturalidade com personagens. Na nossa
casa do Campo Grande não eram poucos. Uns, com quem vivíamos, outros que
vinham, animando serões e tertúlias de toda a sorte, ou enfeitando festas. E
depois havia os que já se tinham despedido do mundo mas que permaneciam porém
tão concretamente ali impressos que quase podíamos esbarrar fisicamente com
eles nos corredores da casa.
Lembro-me por exemplo de quando, no alvorecer da
adolescência, tive direito a um quarto de dormir só para mim e refilei por o
achar exíguo, ouvir a minha mãe dizer-me, com estarrecedora normalidade: “Então
é o quarto que tem o alçapão do Paiva Couceiro…”. Era verdade. O caso é que o
meu avô materno, Eduardo Pinto da Cunha, monárquico convicto, tendo-se
envolvido de corpo e alma nas Incursões Monárquicas, abrigara algumas vezes
Paiva Couceiro. A nossa casa, imensa e fora de portas, prestava-se bem nesse já
tão longínquo ano de 1914 a uma oportuna “clandestinidade” mas, pelo sim pelo
não, abrira-se por debaixo de uma das divisões — o então meu novo quarto — um
alçapão de onde se descia para uma pequena e sombria cave.
Nesse quase final dos anos cinquenta, quando alçapão e
cave passaram para mim, outros personagens, felizmente vivíssimos, continuavam
porém a selar a casa, com a sua originalidade ou o seu talento. Como por
exemplo o poeta Ruy Cinnati ou o escritor Ruben A, que nesse tempo era
simplesmente o “Rubinho”, quando, vindo do Porto onde vivia, punha com graça
incomparável o seu pé em animados serões dançantes. Ou Sophia de Mello Breyner,
poetisa e prima direita de minha mãe. E a quem por isso as minhas irmãs e eu
tínhamos sido apresentadas com um cuidado especial, tanto mais que era
impossível desligar a poesia escrita por Sophia da memória deixada por ela
no Campo Grande, onde, com 17, 18 anos, vivera durante uma temporada e ali se
inspirara e escrevera. Deixando-se envolver pelo grande jardim e ouvindo-lhe o
sussurro por entre buxos e sombras, canteiros e o lago redondos, com peixes
vermelhos: “Agora vou-lhes ler estes poemas da Tia Xixa que foram escritos
neste jardim, quando ela aqui vivia, ouçam meninas…”. E nós ouvíamos.
“Atravessei o jardim solitário sem lua/ correndo ao
vento pelos caminhos fora/ para tentar como outrora /unir a minha alma à tua /ó
grande noite solitária e sonhadora(…)”. Ouvíamos entre o pasmo e a estranheza,
mas de quem era aquela voz que nos falava de coisas tão próximas e que era
afinal uma tia, de carne e osso? E tanta gente mais foi passando por ali… antes
e depois de Paiva Couceiro ou de Sophia.
Durante o Estado Novo vinham salazaristas, já aqui o
escrevi. O meu pai conhecia bem Salazar, tendo aliás muito jovem sido seu
secretário em S. Bento. Vinham ministros e deputados amigos, alguns ouvidos com
interesse, pela sua inteligência, ou pela informação de que dispunham, e
embaixadores com boas histórias. Também podiam vir Amália Rodrigues, que lá
cantou uma vez, como bem antes de Couceiro cantara também a “Severa” – Maria
Severa Onofriana, de sua graça — pela mão do Conde de Vimioso, que a ela se
rendeu nesta casa, dando-lhe prestigio e fama. Mas havia também aqueles reis já
sem coroa que em Portugal procuraram um porto de abrigo chamado exílio e vinham
jantar ou cear ao Campo Grande.
Mas, viesse quem viesse, as convicções eram fortes,
havia alguns temas sagrados e nenhum interdito. Nada nos foi deturpado, nenhuma
escolha nos foi imposta, nenhum amigo nos foi vetado. Vinha gente de todo lado,
e no meu tempo e com a minha mania do teatro, vinham actores, encenadores,
cantantes e pianistas para quem alugávamos pianos.
Dada esta circulação de ar e de ideias, mal disparou o
PREC o nosso “Campo Grande” e as várias famílias que cá moram assumiram-se
muito naturalmente como poiso de revolucionários e de contra-revolucionários.
Em igual grau, com igual peso, estatura e estatuto. Conselheiros da Revolução,
ministros, militares influentes do “25 de Abril de 1974” de um lado; militares
de alta patente, civis, personagens de peso, que hostilizavam a revolução, do
outro (e também disso já aqui deixei nota). Uns entravam para uma casa, outros
para a outra, cruzando-se não poucas vezes no pátio E assim vivíamos, era o que
nos era natural. Nunca soubemos viver de outra maneira.
2. O “avô Thomaz” foi um desses personagens. Na
verdade Thomaz Mello Breyner era meu bisavô, mas dizíamos o “avô” Thomaz por
ser o que sempre ouvimos cá em casa à nossa mãe e à nossa tia, suas netas. O
meu bisavô era de facto extraordinário.
Crescemos a ouvir falar dele, a recordar as suas
histórias e feitos, aprendendo sobretudo a saber porque devíamos considerá-lo.
Mas era tudo tão real nessas evocações que por pouco não lhe punham um lugar ao
nosso lado, à mesa do Campo Grande. Quando morreu, na sua casa de S. João dos
Bem Casados, onde vivia com a mulher e onde nasceram muitos dos seus nove
filhos, a sua viúva Sophia, (filha do Conde Burnay, outro imenso personagem)
mudou-se para casa de uma das suas filhas, no caso a filha Tereza Josefa,
casada com Eduardo Pinto da Cunha, e minha avó. Ou seja, mudou-se para o nosso
Campo Grande e lembro-me de mim, muito pequena, de mão dada com a minha mãe,
escada acima: “Vamos dar um beijo á tua bisavó Sophia”. Ainda hoje, disto mesmo
também se recordam muitos dos seus bisnetos, meus primos: metiam-se num
eléctrico com as mães, apeavam-se na paragem do Campo Grande, entravam no jardim
da casa e subiam para “visitar a bisavó Sophia”.
3. Thomaz Mello Breyner, (1866-1933 ) 4.º Conde de
Mafra, foi um grande homem. Em pequeno, a Rainha Dona Maria Pia mandava
buscá-lo para brincar com seus filhos, em Lisboa, em Mafra ou em Cascais. Cresceu
ao lado do Rei D. Carlos e de seu irmão D. Afonso, de quem foi íntimo amigo e
porventura o mais permanente. Estudou medicina, ensinou, foi um precursor na
sua área, deixando marca na Ciência — que o premiou — graças a um labor
ininterrupto até ao fim da vida. Foi de forma inteligente e persistente, útil
à medicina, à sociedade portuguesa onde pontificou, à comunidade.
Cultivado, melómano, viajado, requisitado, filantropo com pobres, excluídos e
abandonados, era um homem de espírito e de dons. Médico da Corte, dirigiu o
hospital do Desterro (que em 2002 lhe prestou bela homenagem, onde estive) e,
embora tendo consultório, onde com frequência não cobrava as consultas, o
hospital foi-lhe porém sempre uma paixão quase avassaladora.
Um incansável servidor público, um monárquico que
honrou a Coroa, um atento pai de família, um homem do mundo recebendo em casa
os grandes literatos ou os melhores músicos e artistas que vinham a Lisboa.
Apesar de tudo isto, que é muito e deixou marca no seu tempo, o que mais distinguiu
porém Thomaz de Mello Breyner foi a sua escrita, que nos chegou através de
Memórias e Diários. Escreveu todos os dias da sua vida, muito e quase
compulsivamente. No leito de morte pediu a Sophia Burnay, sua mulher, que
escrevesse o que, já sem “anima”, ele lhe ia ditando em voz sumida. Este “ter
de escrever” — indiscutivelmente o traço mais marcante da sua invulgaríssima
personalidade – levou-o, com um fôlego admirável, a pintar com as palavras um
dos mais impressivos frescos lidos em português sobre quase meio século de vida
portuguesa. Redigia velozmente e sem intermediários, com um verbo ágil e
preciso, uma inesgotável curiosidade pela vida e uma lucidez aguda quanto à
natureza humana. Amando escrever, propôs-se sobretudo “contar” e fê-lo a partir
do melhor posto de observação que é o “vivido”: Thomaz Mello Breyner sorvia e
absorvia o seu quotidiano, o qual, desde a sua tenra idade, foi rico, diverso,
acidentado e polifónico. O monárquico, o homem de família, o médico, o
investigador, o professor, o conferencista internacional, o deputado, o amigo,
todos enfim num só, radiografaram como poucos, as últimas décadas da Monarquia,
toda a República, a ditadura militar, o advento de Salazar, o início do Estado
Novo.
4. E de repente — sorte nossa, nunca será demais repeti-lo — houve
alguém que lendo e relendo tudo isto escreveu – finalmente! — a biografia que
tardava. A iniciativa coube à Imprensa Nacional e Margarida Magalhães Ramalho
foi a historiadora escolhida para esta nobre empreitada (já aliás premiada). O
melhor do seu trabalho de estudiosa foi porém o modo como tão bem foi
desenrolando o fio do já escrito por Thomaz Mello Breyner, alternando-o com o
seu próprio olhar de historiadora sobre o homem, a personagem, a época. Melhor
dizendo, as épocas: tão diversas elas foram na sua natureza, ideologia e
objectivos, ao contrário dos portugueses – sempre iguais a si próprios. O livro
chama-se simplesmente Thomaz
Mello Breyner — Relatos de Uma Época, a chancela é da Imprensa Nacional
e vão por mim: leiam-no. É um grande livro, de um grande homem com uma grande
vida.
COMENTÁRIOS:
Maria Mascarenhas: Há
apenas uma imprecisão. Diz que alguns dos filhos do Dr. Mello Breyner
nasceram nos Bem Casados. Mas, nas últimas semanas tenho estado a reler os
Diários e os filhos já eram todos nascidos quando se mudou da Junqueira... De
resto a mudança deu-se em 1910 depois das férias de Verão e a poucos dias do 5
de Outubro.
Pedro Soares: Que texto tão interessante.
Gostei muito.
Manuel Marques: Excelente. obrigado pela
sugestão. Há pouco lemos as reeditadas
Memórias de raulBrandão. Será bom cruzar as 2.
antonyo antonyo: Os parentescos da cronista interessam- me imenso ...
Graciete
Madeira: Uma excelente prosa, como é
habitual na autora.
Lopez
Turrillo: gostei muito de ler a crónica. ainda bem que saiu esta biografia de Mello Breyner. Trata-se duma pessoa chave para a compreensão do Portugal de fim da
monarquia e implantação do republicanismo.
Ana Ferreira: Felizes(?) estas criaturas cujo destino as colocou do lado, digamos
elegante para também o ser, da vida. Seja a descrever uma viagem a Viena ou
umas memórias, sempre conseguem cobri-las com uma espécie de filtro capaz de
emprestar um ar romântico à coisa. A lembrar um qualquer filme de Visconti que
através da utilização de filtros miraculosos, transformava uma qualquer cena de
violência extrema em algo belo. Infelizmente a realidade está bem longe disto
como, aliás, a ilustre bem demonstra quando escolhe zurzir quem não gosta.
miguel Cardoso: Dom Thomaz de Mello Breyner era um ser superior, até por esta pequena
história que me contou ainda pessoa que dele esteve perto: Quando da revolução
republicana do 5 de Outubro, no dia anterior tinha sido assassinado por um
louco o médico Dr. Miguel Bombarda, conhecidíssimo republicano e integrando
mesmo o comité revolucionário que deu origem à dita revolução. Qual não foi o
espanto quando no funeral se integrou o Senhor Dom Thomaz de Mello Breyner,
médico da Real Câmara, monárquico e insuspeito de "adesivismo" ao
novo regime. Questionado pela razão da sua presença respondeu simplesmente:
"O Senhor Dr. Miguel Bombarda foi dos poucos colegas que foram ao enterro
de minha Mãe." Outros tempos onde o respeito, forma e o conteúdo
falavam mais alto que a espuma dos dias.
Mortaguarras
....: Gostei, escreve bem mas pouco objectivo. O Portugal dos homens
perfeitos.
victor guerra: O 25A da gente fina. Sempre ao lado do povo, essa abstracção
António
Moreira > José Montargil: Isso já é pedir de mais! Está visto que para o Guerra a luta de classes
ainda vai no adro e por isso comentar uma crónica destas seria coisa de
somenos.
José
Montargil: Maria João Avillez quando
escreve sobre a família, os amigos , sobre a vida que a rodeia é do mais
interessante que há, para mim, pelo menos. Um óptimo hábito de escrever
memórias que deve ter herdado do bisavô Mafra. O Francisco Cabral seu bisneto
ou trineto, não sei, já me tinha falado das Memórias e lembro-me de ele me
dizer quanto tinha gostado de as ler. A biografia vou ler. É bom haver em Portugal quem escreva memórias, autobiografias,
biografias, diários que à maneira dos ingleses vamos aprendendo através dessas
cartas e documentos de todo o género, no fundo através da vida de outros. Maria João Avillez tem o dom de nos incluir nas suas histórias pela sua
maneira chã de contar as coisas sem grandes ares nem sobranceria. Para mim leio
como o maior prazer.
Nota: um artigo publicado no
OBSERVADOR de MJA há dois ou três anos sobre como é o Verão em sua casa ao pé
das Caldas foi estupendo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário