segunda-feira, 20 de maio de 2019

C’est comme ça



Uma boa síntese, comentários acompanhando com saber, a vida continua.
OPINIÃO            Estado frágil, país vulnerável
Não são só as famílias, nem os políticos. Perto deles, a par deles, às suas ordens ou no seu comando, estão os escritórios de advogados poderosos, com meios e pessoas, com reputação e força, conhecedores de segredos de pessoas, de partidos e de empresas.
ANTÓNIO BARRETO        PÚBLICO, 19 de Maio de 2019
Já se sabe que o Estado português não é forte, mas é gordo. Pesado. Lento. E presa fácil. Os últimos anos têm sido confirmação dessa verdade. Pode dizer-se últimos quatro anos, de socialistas e esquerdas. Últimos oito, se acrescentarmos a aliança PSD/CDS. Ou mesmo 14, com os seis dos socialistas de Sócrates. Não vale a pena tentar culpar o “governo anterior”, como eles próprios fazem. Já se percebeu que é receita gasta. O estado a que chegámos traduz um processo de deterioração política e institucional para o qual têm contribuído governos, parlamentos e muito mais gente. Só que, se não serve dizer que “são todos culpados”, também não vale diluir as responsabilidades. Para cada caso, é sempre possível designar no espaço e situar no tempo. Sem isso, não há remédio.
Jamais saberemos se a acumulação de casos na comunicação social se fica a dever a coincidências ou ao ano eleitoral. É possível que esta última seja a hipótese adequada. Mas isso faz parte da democracia. Quando há eleições, ajustam-se contas, fazem-se promessas, castiga-se e recompensa-se. E também há quem se vingue. Bastou um homem e a sua singularidadepara deixar em crise as instituições nacionais, os órgãos de poder, a banca, os jornais e as televisões. Um só homem, apoiado em peritos na utilização do Estado e do direito, consegue pôr em xeque o sistema de justiça e vários governos. Um especulador, especialista em despertar a libido dos ministros, foi capaz, com a promessa de dar lustre artístico ao governo, de conquistar a idolatria dos clientes, a cumplicidade do governo e o silêncio das instituições artísticas do país. Usou e foi usado, mas imprimiu o seu toque especial. Um outro homem, apoiado num partido, com a colaboração de ministros, advogados e predadores de várias origens, exerceu seis anos o cargo de primeiro-ministro e deixou marca profunda na história da vilania política, enfraqueceu as instituições, transformou políticos em agentes sem mérito nem qualidade, mas com uma capacidade de impostura só comparável à sua covardia.
Outro homem, com família, reputação e fortuna, soube condicionar a seu proveito a economia do país, as suas finanças e muitos políticos, conseguiu contribuir decisivamente para a destruição ou a alienação da banca portuguesa e de algumas das melhores empresas, numa acção única da história do país, só talvez comparável aos estragos feitos pelas revoluções.
Há mais casos que ensombram e atormentam os nossos dias. Greves de camionistas que, em poucos dias, deixaram uma sensação de pânico. Ameaça permanente de incêndios que revela a falta de previsão, a preparação da última hora e a dependência de traficantes. Adquirido em suspeitíssimas circunstâncias, o sistema de comunicações de segurança revela-se incapaz de dotar o país daquilo para que foi encomendado, eficiência na emergência. Um roubo de material de guerra levado a cabo em estranhas condições que deixaram as Forças Armadas em questão, o governo em xeque e as polícias em crise. As comissões de inquérito parlamentar, neste caso sobre questões de energia, aprovam o que a maioria quer e lhe convém.
Este breve catálogo peca por defeito. O pior nem é a gravidade dos crimes e do abuso. O pior é que a sociedade, o Estado e as instituições permitem o que nos acontece. Assim se revela a incapacidade de regular e vigiar. A ausência de instituições livres e eficientes. A morosidade das polícias e dos tribunais. A miopia de muita imprensa. A facilidade com que as elites económicas, políticas e artísticas se deixaram aliciar e seduzir. A covardia ou a cupidez de muitos que vão sempre sabendo o que se passa, mas calam ou só revelam quando lhes convém. A falta de agilidade dos organismos públicos incapazes de reagir prontamente. O pior é que as instituições políticas e judiciárias não estão à altura dos criminosos.O nepotismo faz evidentemente parte da teia complacente. As famílias dos ministros, mulheres e maridos, filhas e filhos, genros, irmãos, netos e sobrinhos, estão incluídos. É estranho que a esquerda, ainda por cima a esquerda democrática, que tanto diz lutar pela igualdade, contra o nepotismo das aristocracias, pelo laicismo, pela neutralidade do sangue e da condição social, é estranho que esta esquerda seja cúmplice. Tinha de ser a esquerda democrática que viria, com hipocrisia, a valorizar a conjugalidade na política e a defender o velho princípio da moral corrupta e do nepotismo: “Não é por ser da família de alguém, que uma pessoa pode ser penalizada!”
Não são só as famílias, nem os políticos. Perto deles, a par deles, às suas ordens ou no seu comando, estão os escritórios de advogados poderosos, com meios e pessoas, com reputação e força, conhecedores de segredos de pessoas, de partidos e de empresas. Apoderaram-se do Estado e dos ministérios, recebem encomendas para contratos, acordos, cadernos de encargos, PPP, operações financeiras, defesa do Estado contra privados e defesa dos mesmos privados contra o mesmo Estado. Esta espécie de Mamelucos do direito exerce hoje tanta ou mais influência do que grupos privados, sindicatos, partidos políticos, igreja católica ou maçonaria!
O que também enfraqueceu o Estado democrático foram as privatizações e as reprivatizações que moldaram a política e a economia das duas últimas décadas. Feitas aparentemente pelas boas razões, por espíritos liberais, concebidas para libertar a sociedade e a economia, levadas a cabo com as melhores intenções expressas, acabaram por ser o leilão histórico de empresas, a destruição de algumas, a alienação irreflectida de outras e a entrega de poderes a grupos de predadores nacionais e estrangeiros. Assim se liquidaram, alienaram ou miniaturizaram empresas e sectores como os telefones, os cimentos, a electricidade, os petróleos, a rede eléctrica, o gás, os correios e outras.
Catervas de políticos à solta, bandos de capitalistas (nem todos empresários…) e de traficantes de influência (nem todos ilegais…), associados a advogados e seus escritórios, ligaram-se ao poder político com mais profundidade e mais intimidade do que o Estado Novo salazarista ou o comunismo de Cunhal e Gonçalves e estreitaram o seu conúbio com dois partidos, o PS e o PSD. Governam a sociedade e a política. E até agora não encontram diante de si instituições livres, independentes e eficazes que lhes ponham travão. É o que faz um país vulnerável.
Sociólogo
COMENTÁRIOS:
Ana Mendes, 19.05.2019: Sugiro a substituição do erudito termo caterva, pela popular palavra catrefa... afinal estamos a querer chegar ao cidadão comum, ou não???
Fowler Fowler, 19.05.2019: Qual é a novidade? Qual é a alternativa? Desde o século XVII, pelo menos, que os chefes de estado se fizeram rodear por juízes e desembargadores na produção legislativa. E sempre houve “condes da ericeira”, dentro e fora do conselho de estado, a marcarem território e a defenderem os seus interesses. Responder
Qualquer coisa Far away: A alternativa é um sistema judicial mais simples e transparente. A existência de verdadeiros senadores consagrados pela constituição.
Fowler Fowler, 19.05.2019: Mais demagogia servida pelo Sr. Barreto para ignorantes digerirem em plena campanha eleitoral. Enfarta mais que carne assada. Assim se cria e avoluma o populismo. Responder
Nuno, Lisboa 19.05.2019: Caro AB, e agora continue o raciocínio. Algum estado fraco e gordo se fortaleceu e emagreceu de forma natural e pacífica ? Creio bem que infelizmente não, mas pode ter-me escapado algum milagre. Responder
Jose, 19.05.2019: Um povo, como o português, na sua busca pela sobrevivência, forjou a sua coesão, nas vitórias, nas derrotas, nos heróis... Sedentarizou no território de Alcanizes e território com povo e sua cultura é a nação que substabeleceu no Estado as funções de defender o território, garantir a ordem, a segurança de pessoas e bens e fazer a justiça. Tudo o mais que o Estado faz é só por causa de a sociedade o não fazer. Esse Estado perde autoridade por não assegurar a soberania nem a segurança de pessoas e bens nem exercer a justiça. É desprezível esmiuçar as minudências. A autoridade do Estado português entrou em declínio com a cedência da política aduaneira, monetária, financeira, cambial, orçamental, bancária, política externa, etc. Após 1640 só com o PS, PSD, CDS Portugal voltou a protectorado!
Carlos Brígida, Algés,19.05.2019: Um artigo pertinente, e excelente. Conhecimento, perspicácia, fino espírito analítico, 'perfeito' conhecimento da sociedade portuguesa nas suas múltiplas dimensões. Se não fosse a nossa pertença (e em múltiplos aspectos) dependência da EU, a vulnerabilidade do país teria consequência muitíssimo mais graves sobre a vida colectiva e de cada cidadão nacional. Não temos cidades médias, na 'província' o ambiente é paroquial, Lisboa vs Porto traduz-se numa ainda maior tendência à concentração do poder e decisão em Lisboa, os círculos de influência cruzam-se e fecham-se sobre si. A entropia negativa quase que só vem de fora.
nunos, cotovia,19.05.2019:  Mas a verdadeira causa dos males do país, é contar o tempo efectivamente trabalhado pelos professores, Algum primeiro-ministro ameaçou que se demitia pelas causas apontadas por António Barreto? 
AndradeQB, Porto 19.05.2019: Sem surpresa, a melhor síntese que poderá ser feita sobre as causas e consequências do luminoso modelo da tolerância e afectos português. Felizmente que, por baixo dessa tolerância e afecto, vivem escondidas a inveja e ressabiamento. Esses traços, que noutra situação seriam defeito, são os que fazem que, quando a manta começa a ficar curta, os centrifugados para o frio partam para a denúncia e punição. Como António Barreto disse, há muita gente que sempre soube tudo: o quê, a hora e quem fez, e, se atirada para fora do benefício, fará tudo para se vingar. Se no Estado ainda houver alguma pinga de nervo, meios de prova para uma lavagem de alma não faltarão.
José Ferreira Barroca Monteiro, Lisboa19.05.2019: «o Estado português não é forte, mas é gordo. Pesado. Lento» Em cada esquina um amigo (Zeca Afonso 1975)... Em cada esquina um Berardo (Lisboa 2007)... Os mandarins para Bruxelas (2019)... Os 230 mandaretes de S. Bento em CI (Tancos)*--- Os generais morrem pela Pátria... Grândola abandonada... *2004»2019, Fim SMO & Zero atitudes-como encerrar paióis inúteis. No Regime dos democratas mortos.

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