segunda-feira, 20 de maio de 2019

A escola já o foi



Digo, “risonha e franca”, ao que se repetia, apesar da menina de quatro-olhos. No tempo da “Encomendinha” do Trindade Coelho e no meu tempo também. Havia recreios onde se brincava, até mesmo já no liceu. Os professores eram figuras respeitadas, umas mais queridas do que outras, o professor do meu pai fora um homem rígido, dos inícios do século, único no cordão de povos da freguesia, cujos alunos machos se ficavam pelas classes iniciais, mas, dos que escapavam para a 4ª classe, pelo menos no ano da 4ª classe do meu pai, três alunos desse professor Nogueira, dos quais meu pai, obtiveram distinção em Viseu, apesar das tarefas diárias destes, repartidas entre a lavoura ou os rebanhos e os deveres escolares de execução inescusável para o professor brutal, segundo a sua fama, que perdurou. Não ganhavam grande coisa os professores, para o trabalho que realizavam, de penetrar durezas de compreensão, mas ninguém ganhava grande coisa, salvo os habituais dos grossos ganhos. Para sobreviver e conquistar o meu “estatuto” ligado às coisas da cultura e do conforto material, aliei as explicações, em casa, ao serviço docente público, que me obrigavam a informar-me melhor acerca os autores portugueses e franceses, a literatura francesa sendo exigida nas letras do terceiro ciclo, aos alunos de Românicas, a par da literatura portuguesa. Não, não me queixo da vida trabalhosa, de testes ou trabalhos para corrigir, como hoje se faz, vejo-o nos casos que conheço, de professores responsáveis, donde deduzo sobre uma maioria docente ainda responsável, assim lhe sejam fornecidas condições de trabalho. Mas as coisas mudaram e o definhamento nos propósitos formativos foi-se acentuando, de tal modo que há hoje os adeptos da extinção dos testes e dos exames, na consciência da ineficácia formativa. Não, não me queixo do meu percurso cá, em que pude centrar ainda em alguma exigência de disciplina e saber, os meus requisitos docentes. É claro que fui avessa a greves, a única que fiz – para não ser acusada de poder vir a usufruir de aumentos salariais, sem participar nos descontos grevistas, que eram de lei - conquanto nessa altura ainda não de marchas folclóricas, e antes, de concentrações junto ao ministério da Educação – a cuja maçada me furtei, (desconto feito, em cumprimento camarada) passeando-me por Lisboa e acabando num café da Baixa, na companhia de colega prazerosa. Hoje, no ripanço da reforma, ouço coisas “que terei pudor de contar seja a quem for” – sobre aulas transformadas em autênticas touradas, onde é impossível manter o equilíbrio ou ensinar seja o que for. As depressões dos professores são ponto assente, e um país assim, sem disciplina - que desde cedo se perdeu nas próprias famílias - não tem futuro, a deficiência de comportamento sendo uma constante, temperada, às vezes, por algum bom senso, cada vez mais, todavia, arredio do nosso panorama educativo. A crónica de José Pacheco Pereira, que segue, adverte bem disso, bem como alguns comentários mais responsáveis. A palavra “liceu”, elitista que é, desapareceu, aliás, do mapa, e até mesmo se vai sumindo a palavra “escola”, signo bafiento e ofensivo de sensibilidades, implicando sujeições e disparidades sociais, tudo isso mergulhado hoje em espaços enormes de “tudo à molhada e fé em Deus - os tais “agrupamentos escolares” promíscuos, em breve irmanados aos redis de manutenção dos gados, onde às vezes até chove, para complementar a trovoada do interior, causada pela indisciplina escolar.
Tem razão, Vasco Pulido Valente. Os professores são necessários para guardar os rebanhos, em condições de mínima compostura que dê tranquilidade às famílias, a trabalhar nos seus empregos. Nada mais se pode exigir deles. Mas os papás exigem, e os governos acham que pagam o suficiente, depois de lhes terem reduzido o papel a simples figurantes na peça que para sempre os desautorizou, e onde os alunos sobressaem como actores principais, no ruído ignaro acompanhando os vários ruídos de bestialidade da nação. Não, não há volta a dar-lhe, não há volta a dar a uma triste nação de acefalia e descaminho.

OPINIÃO
A hostilidade aos professores
Os professores têm muitas culpas, deveriam aceitar uma mais rigorosa avaliação profissional, mas isso não esconde que têm hoje uma das mais difíceis profissões que existe. E que, sem ela, caminhamos para o mundo de Camilo.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 18 de Maio de 2019
A hostilidade aos professores é evidente em muitos sectores da sociedade portuguesa. Manifestou-se mais uma vez no último conflito gerado pelas votações dos partidos na Assembleia atribuindo aos professores a contagem integral do tempo de serviço. Antes, durante e depois deste processo, a vaga de hostilidade aos professores atingiu níveis elevados, com a comunicação social a escavar fundo a ferida, com sondagens orientadas e uma miríade de artigos de opinião e editoriais.
Valia a pena parar para pensar, porque este movimento de hostilidade é mais anómalo do que se pensa, e acompanha outros, como o ataque aos velhos como sendo um “fardo” dos novos. Mostram que estamos a entrar numa cosmovisão social que implica um retrocesso enorme naquilo a que chamamos precariamente “civilização”. É preciso recuar muito para encontrar ataques aos professores, o último dos quais teve expressão quando a escola laica, em países como a França, foi um alvo importante da igreja, que tinha o monopólio do ensino.
Mas eu seria muito cuidadoso sobre as razões dessa actual hostilidade, porque ela incorpora aspectos muito negativos da evolução da nossa sociedade. É um caminho que muita gente está a trilhar, sem perceber que ele vai dar a um profundo retrocesso. E isso acontece muitas vezes na história: anda-se para trás quase sem se dar por ela, contando com a inacção, a apatia, ou a acédia, de quem deveria reagir. Como a democracia é uma fina película contra a barbárie e é apenas defendida pela vontade dos homens e não por nenhuma lei da natureza, mais vale prevenir com todos os megafones possíveis.
Há vários aspectos na actual hostilidade. Há uma agravante no caso português que tem a ver com a vitória muito significativa da ideologia da troika, que está longe de ter desaparecido e, nalguns casos, migrou para sectores que lhe deveriam ser alheios e não são: os socialistas, por exemplo. Disfarçada de “economia”, essa ideologia assenta numa visão pseudo-cíentífica, muito rudimentar e simplista, cheia de variantes neo-malthusianas, que se apresentou como não tendo alternativa, a nefasta TINA. Isto encheu-nos as cabeças e não saiu delas.
Essa ideologia centra-se na crítica do Estado, em particular do Estado social, e transforma os funcionários públicos em cúmplices de uma rede de privilégio, sendo descritos apenas como “despesa” excessiva. Vale a pena ensinar-lhes um pouco de história europeia e lembrar-lhes o papel do Estado desde Bismarck como instrumento para impedir sociedades bipolares de “proletários” e ricos, com a consequente conflitualidade social extrema. Acresce que esse processo criou à volta do Estado uma classe média, os tais desdenhados funcionários públicos, que não só funcionou como tampão como arrastou muita gente que vinha da pobreza e acedeu à mediania. A economia privada e o dinamismo das empresas, quando existiu ou existe, teve e tem igualmente esse papel, mas não chegou para criar este elevador social.
Portanto, gritem contra a função pública e os malefícios do Estado, que também existem como é óbvio, mas percebam que o pacote de não ter professores, enfermeiros, médicos, jardineiros, funcionário das repartições, leva atrás de si o ensino e a saúde pública, que são componentes essenciais do elevador social, o único meio de retirar as pessoas da pobreza, quer no privado, quer no público. Pais lavradores, que conheceram a verdadeira pobreza, filha professora primária ou funcionária pública, neto estudante universitário – sendo que o papel da educação é um elemento fundamental para esta ascensão.
Depois, há outros ingredientes. Os professores protestam, fazem greves, boicotam exames, fecham escolas, e hoje há uma forte penalização para as lutas sociais. Quem defende os seus interesses é penalizado e de imediato tem contra si muita comunicação social, o bas-fond das redes sociais e a maioria da opinião pública. São os enfermeiros, os camionistas, os professores, os trabalhadores dos transportes – manifestam-se, são logo classificados de privilegiados e egoístas. Os mansos que recebem migalhas no fundo do seu ressentimento invejam quem se mexe. Sem mediações, a sociedade esconde os que não precisam, e pune os que lutam. As greves hoje são solitárias.
O papel mais negativo é o da comunicação social, que se coloca sempre na primeira linha do combate ao protesto social. Despreza por regra os sindicatos, que considera anacrónicos, aceita condições de trabalho de sweatshop e ajuda a apagar e a tornar incómoda a memória de que o pouco que muitos têm no mundo do trabalho foi conseguido com muito sangue, e não ficando em casa a jogar gomas no telemóvel ou a coscuvilhar no Facebook.
Por fim, e o mais importante, há uma desvalorização do papel do professor, de ensinar, de transmitir um saber. Vem num pacote sinistro que inclui o falso igualitarismo nas redes sociais, o ataque à hierarquia do saber, o desprezo pelo conhecimento profissional resultado de muito trabalho a favor de frases avulsas, com erros e asneiras, sem sequer se conhecer aquilo de que se fala. É o que leva Trump a dizer que se combatia o incêndio de Notre Dame com aviões tanques atirando toneladas de água, cujo resultado seria derrubar o que veio a escapar, paredes, vitrais, obras de arte. É destas “bocas” que pululam nas redes sociais que nasce também a hostilidade aos professores. É o ascenso da nova ignorância arrogante, um sinal muito preocupante para o nosso futuro.
Os professores têm muitas culpas, deveriam aceitar uma mais rigorosa avaliação profissional, deveriam evitar ser tão parecidos como estes novos ignorantes, deveriam ler e estudar mais, deveriam ser severos com as modas do deslumbramento tecnológico, mas isso não esconde que têm hoje uma das mais difíceis profissões que existe. E que, sem ela, caminhamos para o mundo de Camilo. Não de Eça, mas de Camilo, do Portugal de Camilo. Verdade seja que isto já não significa nada para a maioria das pessoas. Batam nos professores e depois queixem-se.
Colunista

COMENTÁRIOS
Carlos Silva, 18.05.2019: Os professores "têm culpa" de estarem em portugal e de ainda não terem ido para um país evoluído, bem governado, onde são respeitados e reconhecidos, não maltratados e humilhados. Um país que não respeita os professores é um país sem futuro! Dá-se prioridade em gastar biliões com a banca ruinosa, ppps, com o tais gestores públicos, para algumas castas a quem pretendem pagar acima do primeiro-ministro, isso já não é "irresponsável" e "imoral". Ainda há dias soube-se que algumas carreiras vão receber 70% de descongelamento, os professores depois de tanta luta, só 30%! É isso justo e constitucional?! Vale a pena ser professor em Portugal?! Não há-de faltar muito para começar a haver falta de professores, depois vão os políticos e os contra os professores dar as aulas! Actividade de alto risco.
maria pereira, 18.05.2019: Eufemismo; onde se lê "os professores têm culpa porque não querem ser avaliados e os professores não têm avaliação", mentiras insultuosas de quem nem se dignou a ler o ECD e que nem sequer sabe que, além do congelamento, a maioria dos professores não passará do patamar de baixo, devido às quotas de acesso ao 5 º e 7º escalões, deverá ler-se: "Os professores são muito caros ao país, não interessa investir na educação das camadas mais pobres, por isso, é preciso embaratecer o salário dos professores eliminando os últimos escalões da carreira". A mentira e a demagogia tornaram-se o argumento preferencial de uma classe política medíocre que, se fosse avaliada, nem para gestão merceeira serviria. Talvez os portugueses mereçam a degradação dos serviços público, o privado é que é bom, Viva!!
maria pereira, 18.05.2019: Pululam por aqui comentadeiros do regime, que falam do que não sabem, será que a carreira docente em Portugal é menos avaliada do que nos restantes países da união europeia? Parece-me que não, a maior diferença ocorrerá nos critérios de entrada na profissão, que são, porventura, mais exigentes, seleccionando os melhores, claro que isso só é possível com uma carreira atractiva e reconhecimento profissional. Parece que na citadíssima Finlândia, nem têm avaliação, são os resultados escolares que contam. Aqui o objetivo parece ser outro; eliminar a carreira, tornando os professores indiferenciados e baratinhos. O resto é conversa para papalvos.
Carlos Silva, 18.05.2019: E depois ainda encomendaram "estudos" manhosos à OCDE a dizer que os professores têm dos " melhores salários da Europa"! Deviam ter feito confusão com a republica centro africana! Quando em muitos países europeus os 1200 euros que os professores com 25 anos de serviço recebem em Portugal, nem chega ao ordenado mínimo desses países, já não falando nas péssimas condições das escolas, sobrecarga, violência, impunidade...
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta18.05.2019: Os professores são "inúteis" mas os banqueiros são "fantásticos". Basta ler os comentários aqui para ver confirmada a estranha e repulsiva tendência para a autofagia de uma certa pequena burguesia camiliana. PP Toca na ferida quando nota como o ódio aos professores cresce para o ódio aos velhos (temos aqui comentadores que propõem retirar-lhes o voto ...). O ódio às crianças já não deve andar muito longe.


Nenhum comentário: