quarta-feira, 26 de maio de 2021

Acordando ecos


De uma gesta vivida, e afinal registada, que um português de hoje, de curiosidade sempre desperta, resolve trazer para nós, julgando com isso converter apatias, ou indiferenças, o que não sucederá. Mas aquece os corações dos menos apáticos. Por isso, do coração, agradecemos estes textos a Henrique Salles da Fonseca.

POR CEUTA E MAIS ALÉM... (2)

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 25.05.21

GOA, BASE DO IMPÉRIO PORTUGUÊS NO ORIENTE

Como informei no preâmbulo do texto anterior sob a mesma epígrafe, este texto também se enquadra no pedido que me foi feito em nome d’«O Heraldo», jornal de Pangim, Goa, onde aguarda publicação…

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Em relação a Macau basta recordar que foi numa ilha na foz do Rio das Pérolas que faleceu São Francisco Xavier que dali foi trasladado para Malaca e, mais tarde, para Goa.

Em Macau fala-se português mas… Os polícias, com fardas absolutamente iguais às dos seus colegas em Lisboa, ouviram a minha pergunta (uma qualquer que improvisei e já esqueci) com ar enigmático e de perda total. Repeti em inglês e o ar de perdição manteve-se. Fiz um gesto de agradecimento e fui para outro lado lamber as feridas quanto ao fiasco relativo à minha língua e a rir-me secretamente quanto ao inglês.

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Em 1513, quatro navios portugueses chegaram a Kalapa (ilha de Java), o porto principal do reino hindu de Sunda. Vinham de Malaca, portuguesa havia dois anos, à procura de especiarias, principalmente de pimenta. As relações de comércio desenvolveram-se com normalidade e no dia 21 de Agosto de 1522 foi firmado um Tratado de Amizade entre Sunda e Portugal.

Contudo, em 1527 Kalapa foi assaltada e destruída por Fatahilaha Kahn, muçulmano, que era inimigo tanto dos portugueses como do Rei de Sunda.

Reconstruída pelos conquistadores, a cidade recebeu o nome do terceiro Sultão de Banten, Pangeran Sungrasa Jayawikarta III, longo nome este que, abreviado, deu em Jakarta. E se os religiosos e militares portugueses saíram, os nossos comerciantes voltaram a frequentar o novo burgo e suas cercanias com grande utilidade para vendedores e compradores das especiarias que por ali abundavam.

O prestígio de Portugal (leia-se “utilidade comercial e militar”) e a influência religiosa eram tantos naquela região que em 1573 o Sultão de Ternate (Molucas) doou toda a ilha de Amboíno ao seu padrinho de baptismo, Jordão de Freitas, indo morrer a Malaca não sem antes ter deixado em testamento todo o reino de Ternate ao Rei de Portugal. Contudo, D. António de Noronha, Vice-Rei da Índia, terá entendido que seria mais útil um fantoche no trono de Ternate que seguisse docilmente as orientações portuguesas do que assumir directamente os constantes conflitos na região pelo que não aceitou a doação e instalou Hairum, irmão do Sultão defunto, no trono que estava de facto vago.

E parece que a decisão foi acertada pois o novo Sultão seguiu o exemplo do seu irmão e antecessor consolidando a amizade com os portugueses a quem convidou em 1578 para construírem uma fortaleza. E o comércio continuou...

Mas o Sol não foi doirado por muito mais tempo para nós pois, entre espanhóis e holandeses, o «destino» quis que saíssemos em 1605 dessas paragens. Saímos oficialmente mas ficámos escondidos dos calvinistas.

Foi em 1610 que o general holandês Petrus Bothe fundou Batávia para apagar a antiga Jakarta sendo necessário esperar pela total independência da Indonésia em 1949 para que o nome holandês desaparecesse e Jakarta retomasse o seu lugar nos mapas.

Contudo, os holandeses não conseguiram apagar-nos por completo pois permanecem vestígios significativos um pouco por todo o lado. Por exemplo, na ilha das Flores a norte de Timor, ainda hoje a fórmula de proclamação dos rajás de Sikka reza que:

«Viva Altíssimo Senjor Don [o actual é Dom Joze Thomaz Ximenes da Silva], sei boa saudi, El Quam Deos Nossa Senjor dê longa vida permanosa El-Rei reinjho de Sikka. De baixo de Lisboa».

Esta última expressão “De baixo de Lisboa” significa que, mesmo decorridos tantos séculos, os rajás de Sikka se consideram súbditos do Rei ou Presidente de Portugal. Eles ainda hoje nos tratam assim e nós, esquecidos, que fazemos por eles?

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Corria o ano de 1543 quando os portugueses puseram pé em solo japonês, na ilha de Tanegaxima. Quem? Pois nem mais nem menos do que o famoso Fernão Mendes Pinto na companhia de Diogo Zeimoto e de Cristóvão Borralho. Todos os seus companheiros entraram no rol dos esquecidos.

E que foram lá fazer? Comerciar, claro está; mas também evangelizar.

O comércio era fundamental para a viabilização de todos os empreendimentos ao estilo imperial e mesmo quando não se pretendia assentar arraiais pela posse, esse comércio era necessário para benesse dos cabedais de quem se aventurava mares adentro.

Foi então o espírito empreendedor dos portugueses que promoveu o estabelecimento de relações com o Japão de modo que o chamado «navio negro» (porque revestido de breu como isolante contra as moléstias que dão às madeiras) usava as monções para levar sedas e porcelanas chinesas até ao Japão para, na volta, trazer prata para a China. E foi por causa deste trato que ao «navio negro» se passou a chamar «a nau do trato». Então, o negócio sendo de tal modo rendoso, a Coroa – a nossa, claro está – chamou-lhe seu (ao dito negócio) e passou a adjudicá-lo a quem melhor a remunerasse. A licitação era feita em Macau que arrecadava uma parcela da renda, mas fazia as adjudicações por ordem do nosso Vice-Rei da Índia que amealhava outra parcela. Quanto chegava a Lisboa? Não tenho esses registos à mão de semear mas tempos houve em que essa Lisboa se chamava Madrid.

Depois de feras quezílias entre os muitos Senhores feudais japoneses disputando a parceria com os portugueses e depois de muitos incómodos religiosos durante o consulado de Toyotomi Hideyoshi que governava de facto o Japão em nome do meramente simbólico Imperador, Nagasaki foi o porto que a «nau do trato» passou a usar e foi a cidade em que a Companhia de Jesus estabeleceu a sua missão mais oriental. Nagasaki foi entreposto português durante anos de grande lucro para todas as partes

Sabe-se que Toyotomi Hideyochi perguntou certa vez ao padre jesuíta português João Rodrigues (“o intérprete”) se o seu Rei gostaria que os japoneses fossem para lá combater a religião católica fazendo o proselitismo do xintuismo; então, o seu Imperador também não queria que os portugueses andassem pelo Japão a minar a religião nacional e, portanto, ele, Toyotomi, que governava em nome do Imperador, não permitiria que os portugueses continuassem a pregar a sua religião – comércio, sim; religião, não.

Seguiram-se as chacinas de mais de duzentos católicos portugueses e japoneses que a Santa Sé vem beatificando e canonizando.

E, dentre estes, faço notar que os mais celebrizados são aqueles a quem a Santa Sé chama os «26 Mártires do Japão» que, curiosamente, são 28. Mistério que não é dogma de fé mas apenas erro de aritmética. O 9º mártir é S. Gonçalo Garcia, natural de Baçaim onde é alvo de veneração.

Tudo isto e muito mais tinha a sua génese em Goa, o comando oriental do Império Português nas bandas do Sol nascente, a «Goa Doirada». E porque foi base de império, foi doirada. Hoje é colónia.

Abril de 2021

Henrique Salles da Fonseca

Tags: História

COMENTÁRIOS

Anónimo 25.05.2021: Sempre muito interessante. Grande abraço.

miguelallegrom@gmail.com 25.05.2021: Gostei.

Anónimo 25.05.2021 Estou interessadíssimo pelo anterior texto , por este excelente, e os que, eu auguro, surjam no futuro próximo. Rui Bravo Martins

Anónimo25.05 .2021: Acabo de ler o seu blog de hoje, “Goa, Base do Império Português no Oriente”. A associação da minha Terra com “Aqueles que por obras valerosas, Se vão da lei da morte libertando”, confesso me deu uma elação vicária. Henrique, Admiro deveras o seu génio de por factos dispersos (por épocas e climas) na narrativa de uma maneira que lhes dá ‘vida’, actualidade. Duvido que os episódios referidos se encontram num só livro de referência . E é nisso, penso, que reside a diferença entre uma narrativa linear da História e uma narrativa inspirada que deixa o leitor cativado, como neste caso . Só quando cheguei ao fim é que notei que Goa é marginal à exposição o que portanto requere uma sequela. Episódio 3. Parabéns e muitíssimo obrigado por me proporcionar uma leitura interessantíssima e instrutiva. PS talvez as últimas três palavras expliquem a razão da relutância de Cristo em publicar o conteúdo? António Fonseca

Anónimo 01.06.2021: Sr. Dr. Salles, com atraso venho mas julgo que ainda a tempo de fruir a partilha deste belíssimo texto. Por acaso, não há ainda muito tempo, andei a reler os passos peregrinantes de Fernão Mendes Pinto e também li uma biografia de Fernão de Magalhães de um autor de cujo nome não me recordo. Isto só para dizer que é para mim entusiasmante a leitura de tudo o que nos transporta a paragens do Oriente e às mil e uma aventuras dos nossos marinheiros do antanho. Espanta que um povo de pouca expressão demográfica tenha galgado tantas léguas marítimas para demandar coordenadas geográficas longínquas e encontrar-se com povos de raça e cultura diferentes, com quem comerciou e permutou conhecimentos. Evangelizar era a palavra de ordem àquela época, mas aqui não creio que se justificasse ou valesse a pena misturar religião com negócios. Tanto que em muitas situações a coisa correu mal, como aconteceu no Japão. Os mártires que a Igreja hoje consagra foram precisamente vítimas dessa espúria mistura. O Dr. Salles menciona uma passagem bem elucidativa a esse respeito: "Sabe-se que Toyotomi Hideyochi perguntou certa vez ao padre jesuíta português João Rodrigues (“o intérprete”) se o seu Rei gostaria que os japoneses fossem para lá combater a religião católica fazendo o proselitismo do xintuismo; então, o seu Imperador também não queria que os portugueses andassem pelo Japão a minar a religião nacional e, portanto, ele, Toyotomi, que governava em nome do Imperador, não permitiria que os portugueses continuassem a pregar a sua religião – comércio, sim; religião, não." É inquestionável a lógica do argumento do Imperador. Pois, direi que não havia necessidade... Quanto ao resto, a nossa língua, ela sim, espalhou-se e fixou-se onde lhe foi possível e em geografias incontáveis. E quando aludo à nossa pequenez, estou a pensar justamente em todos esses territórios onde ela se implantou. Há dias, vi uma reportagem na televisão sobre a dramática situação em Cabo Delgado, Moçambique. Um número elevado de crianças fora evacuado para a capital desse distrito. Houve preocupação das autoridades em que se retomasse o ensino nas escolas. Improvaram-se espaços, mesmo ao ar livre, debaixo de árvores, por não haver salas para todos. Então, deu-se esta cena. A professora saudou a pequenada e esta respondeu a uma só voz em português: "Bom dia senhora professora", com mais algumas palavras de que já não me lembro. Aquelas vozinhas infantis entraram-me fundo no coração. Tinham a magia daquele ritmo inconfundível da África que guardo saudosamente na memória, depois, eram palavras portuguesas... Tem razão, Doutor, tem de se fazer mais por eles, ao menos por aqueles meninos.

Anónimo 05.06.2021: Henrique Salles da Fonseca, Eu seria indigno se não o felicitasse por estes dois textos acerca do Oriente e dos portugueses que com ele comerciaram e fizeram a sua vida. Uma das maravilhas é que a nossa língua permanece não só ali mas pelo mundo fora. Textos muito bons, escorreitos e simples. oliveira


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