De uma gesta vivida, e afinal registada,
que um português de hoje, de curiosidade sempre desperta, resolve trazer para
nós, julgando com isso converter apatias, ou indiferenças, o que não sucederá. Mas
aquece os corações dos menos apáticos. Por isso, do coração, agradecemos estes
textos a Henrique Salles da Fonseca.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 25.05.21
GOA, BASE DO IMPÉRIO
PORTUGUÊS NO ORIENTE
Como informei no preâmbulo do
texto anterior sob a mesma epígrafe, este texto também se enquadra no pedido
que me foi feito em nome d’«O Heraldo», jornal de Pangim, Goa,
onde aguarda publicação…
* * *
Em relação a Macau
basta recordar que foi numa ilha na foz do Rio das Pérolas que faleceu São Francisco Xavier
que dali foi trasladado para Malaca e, mais tarde, para Goa.
Em Macau fala-se português mas…
Os polícias, com fardas absolutamente iguais às dos seus colegas em Lisboa,
ouviram a minha pergunta (uma qualquer que improvisei e já esqueci) com ar
enigmático e de perda total. Repeti em inglês e o ar de perdição manteve-se.
Fiz um gesto de agradecimento e fui para outro lado lamber as feridas quanto ao
fiasco relativo à minha língua e a rir-me secretamente quanto ao inglês.
* * *
Em 1513,
quatro navios portugueses
chegaram a Kalapa (ilha de Java), o porto principal do reino hindu de Sunda.
Vinham de Malaca, portuguesa havia dois anos, à procura de
especiarias, principalmente de pimenta.
As relações de comércio desenvolveram-se com normalidade e no dia 21 de Agosto
de 1522 foi firmado um Tratado
de Amizade entre Sunda e Portugal.
Contudo, em 1527 Kalapa foi assaltada e destruída por Fatahilaha Kahn, muçulmano, que era inimigo tanto dos portugueses
como do Rei de Sunda.
Reconstruída pelos
conquistadores, a cidade recebeu o nome do terceiro Sultão de Banten, Pangeran
Sungrasa Jayawikarta III,
longo nome este que, abreviado, deu em Jakarta.
E se os religiosos e militares portugueses saíram, os nossos comerciantes voltaram
a frequentar o novo burgo e suas cercanias com grande utilidade para vendedores
e compradores das especiarias que por ali abundavam.
O prestígio de Portugal (leia-se “utilidade
comercial e militar”) e a influência
religiosa eram tantos naquela região que em 1573 o Sultão de Ternate (Molucas) doou toda a ilha
de Amboíno ao seu padrinho de baptismo, Jordão de Freitas, indo morrer a Malaca não sem antes ter deixado em testamento todo o reino de
Ternate ao Rei de Portugal. Contudo, D. António de
Noronha, Vice-Rei da Índia, terá entendido que seria mais útil um
fantoche no trono de Ternate que seguisse docilmente as orientações portuguesas
do que assumir directamente os constantes conflitos na região pelo que não
aceitou a doação e instalou Hairum, irmão do Sultão defunto, no trono
que estava de facto vago.
E parece que a decisão foi
acertada pois o novo Sultão seguiu o exemplo do seu irmão e antecessor consolidando
a amizade com os portugueses a quem convidou em 1578 para construírem uma
fortaleza. E o comércio continuou...
Mas o Sol não foi doirado por
muito mais tempo para nós pois, entre espanhóis e holandeses, o «destino» quis
que saíssemos em 1605 dessas paragens.
Saímos oficialmente mas ficámos escondidos dos calvinistas.
Foi em 1610 que o general
holandês Petrus Bothe fundou Batávia
para apagar a antiga Jakarta sendo necessário esperar pela total
independência da Indonésia em 1949
para que o nome holandês desaparecesse e Jakarta
retomasse o seu lugar nos mapas.
Contudo, os holandeses não
conseguiram apagar-nos por completo pois permanecem vestígios significativos um
pouco por todo o lado. Por exemplo, na ilha das Flores a norte de Timor, ainda hoje
a fórmula de proclamação dos rajás de Sikka reza que:
«Viva Altíssimo Senjor Don [o
actual é Dom Joze Thomaz Ximenes da Silva], sei boa saudi, El Quam Deos Nossa
Senjor dê longa vida permanosa El-Rei reinjho de Sikka. De baixo de Lisboa».
Esta última expressão “De
baixo de Lisboa” significa que, mesmo decorridos tantos séculos, os rajás
de Sikka se consideram súbditos do Rei ou Presidente de Portugal. Eles
ainda hoje nos tratam assim e nós, esquecidos, que fazemos por eles?
* * *
Corria o ano de 1543
quando os portugueses puseram pé em solo japonês, na ilha de Tanegaxima.
Quem? Pois nem mais nem menos do que o famoso Fernão Mendes Pinto na
companhia de Diogo Zeimoto e de Cristóvão Borralho. Todos
os seus companheiros entraram no rol dos esquecidos.
E que foram lá fazer? Comerciar, claro está; mas
também evangelizar.
O comércio era fundamental para a viabilização
de todos os empreendimentos ao estilo imperial e mesmo quando não se pretendia
assentar arraiais pela posse, esse comércio era necessário para benesse dos
cabedais de quem se aventurava mares adentro.
Foi então o espírito empreendedor dos
portugueses que promoveu o estabelecimento de relações com o Japão de modo que
o chamado «navio negro» (porque revestido de breu como isolante contra as
moléstias que dão às madeiras) usava as monções para levar sedas e porcelanas
chinesas até ao Japão para, na volta, trazer prata para a China.
E foi por causa deste trato que ao «navio negro» se passou a
chamar «a nau do trato». Então, o negócio sendo de tal modo rendoso, a Coroa –
a nossa, claro está – chamou-lhe seu (ao dito negócio) e passou a adjudicá-lo a
quem melhor a remunerasse. A licitação era feita em
Macau que arrecadava uma parcela da renda, mas fazia as adjudicações por ordem
do nosso Vice-Rei da Índia que amealhava outra parcela. Quanto chegava a
Lisboa? Não tenho esses registos à mão de semear mas tempos houve em que essa Lisboa se chamava
Madrid.
Depois de feras quezílias entre os muitos
Senhores feudais japoneses disputando a parceria com os
portugueses e depois de muitos incómodos religiosos durante o consulado de
Toyotomi Hideyoshi que governava de facto o Japão em nome do meramente
simbólico Imperador, Nagasaki foi o porto que a «nau do trato»
passou a usar e foi a cidade em que a Companhia de Jesus estabeleceu a sua
missão mais oriental. Nagasaki foi entreposto português durante anos de grande
lucro para todas as partes
Sabe-se que Toyotomi
Hideyochi perguntou certa vez ao padre jesuíta português João
Rodrigues (“o intérprete”) se o seu Rei gostaria que os japoneses fossem
para lá combater a religião católica fazendo o proselitismo do xintuismo;
então, o seu Imperador também não queria que os portugueses andassem pelo Japão
a minar a religião nacional e, portanto, ele, Toyotomi, que governava em nome
do Imperador, não permitiria que os portugueses continuassem a pregar a sua
religião – comércio, sim; religião, não.
Seguiram-se as chacinas de mais de duzentos
católicos portugueses e japoneses que a Santa Sé vem beatificando e canonizando.
E, dentre estes, faço notar
que os mais celebrizados são aqueles a quem a Santa Sé chama os «26 Mártires do Japão»
que, curiosamente, são 28. Mistério que não é dogma de fé mas apenas erro de
aritmética. O 9º mártir é S. Gonçalo Garcia, natural de Baçaim onde é alvo de
veneração.
Tudo isto e muito mais tinha a sua génese em
Goa, o comando oriental do Império Português nas bandas do Sol nascente, a «Goa
Doirada». E porque foi base de império, foi doirada. Hoje é colónia.
Abril de 2021
Henrique Salles da Fonseca
Tags: História
COMENTÁRIOS
Anónimo
25.05.2021: Sempre muito interessante. Grande abraço.
miguelallegrom@gmail.com
25.05.2021: Gostei.
Anónimo 25.05.2021
Estou interessadíssimo pelo anterior
texto , por este excelente, e os que, eu auguro, surjam no futuro próximo. Rui
Bravo Martins
Anónimo25.05 .2021: Acabo de ler o
seu blog de hoje, “Goa, Base do Império Português no Oriente”. A associação da
minha Terra com “Aqueles que por obras valerosas, Se vão da lei da morte
libertando”, confesso me deu uma elação vicária. Henrique, Admiro deveras o seu
génio de por factos dispersos (por épocas e climas) na narrativa de uma maneira
que lhes dá ‘vida’, actualidade. Duvido que os episódios referidos se encontram
num só livro de referência . E é nisso, penso, que reside a diferença entre uma
narrativa linear da História e uma narrativa inspirada que deixa o leitor
cativado, como neste caso . Só quando cheguei ao fim é que notei que Goa é
marginal à exposição o que portanto requere uma sequela. Episódio 3. Parabéns e
muitíssimo obrigado por me proporcionar uma leitura interessantíssima e
instrutiva. PS talvez
as últimas três palavras expliquem a razão da relutância de Cristo em publicar
o conteúdo? António Fonseca
Anónimo 01.06.2021: Sr. Dr.
Salles, com atraso venho mas julgo que ainda a tempo de fruir a partilha deste
belíssimo texto. Por acaso, não há ainda muito tempo, andei a reler os passos
peregrinantes de Fernão Mendes Pinto e também li uma biografia de Fernão de
Magalhães de um autor de cujo nome não me recordo. Isto só para dizer que é
para mim entusiasmante a leitura de tudo o que nos transporta a paragens do
Oriente e às mil e uma aventuras dos nossos marinheiros do antanho. Espanta que
um povo de pouca expressão demográfica tenha galgado tantas léguas marítimas
para demandar coordenadas geográficas longínquas e encontrar-se com povos de
raça e cultura diferentes, com quem comerciou e permutou conhecimentos. Evangelizar
era a palavra de ordem àquela época, mas aqui não creio que se justificasse ou
valesse a pena misturar religião com negócios. Tanto que em muitas situações a
coisa correu mal, como aconteceu no Japão. Os mártires que a Igreja hoje
consagra foram precisamente vítimas dessa espúria mistura. O Dr. Salles
menciona uma passagem bem elucidativa a esse respeito: "Sabe-se que
Toyotomi Hideyochi perguntou certa vez ao padre jesuíta português João
Rodrigues (“o intérprete”) se o seu Rei gostaria que os japoneses fossem para
lá combater a religião católica fazendo o proselitismo do xintuismo; então, o
seu Imperador também não queria que os portugueses andassem pelo Japão a minar
a religião nacional e, portanto, ele, Toyotomi, que governava em nome do Imperador,
não permitiria que os portugueses continuassem a pregar a sua religião –
comércio, sim; religião, não." É inquestionável a lógica do argumento do
Imperador. Pois, direi que não havia necessidade... Quanto ao resto, a nossa
língua, ela sim, espalhou-se e fixou-se onde lhe foi possível e em geografias
incontáveis. E quando aludo à nossa pequenez, estou a pensar justamente em
todos esses territórios onde ela se implantou. Há dias, vi uma reportagem na
televisão sobre a dramática situação em Cabo Delgado, Moçambique. Um número
elevado de crianças fora evacuado para a capital desse distrito. Houve
preocupação das autoridades em que se retomasse o ensino nas escolas.
Improvaram-se espaços, mesmo ao ar livre, debaixo de árvores, por não haver
salas para todos. Então, deu-se esta cena. A professora saudou a pequenada e
esta respondeu a uma só voz em português: "Bom dia senhora
professora", com mais algumas palavras de que já não me lembro. Aquelas
vozinhas infantis entraram-me fundo no coração. Tinham a magia daquele ritmo
inconfundível da África que guardo saudosamente na memória, depois, eram
palavras portuguesas... Tem razão, Doutor, tem de se fazer mais por eles, ao
menos por aqueles meninos.
Anónimo 05.06.2021: Henrique Salles da Fonseca, Eu seria indigno se não o
felicitasse por estes dois textos acerca do Oriente e dos portugueses que com
ele comerciaram e fizeram a sua vida. Uma das maravilhas é que a nossa língua
permanece não só ali mas pelo mundo fora. Textos muito bons, escorreitos e
simples. oliveira
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