O Grande Bazuco
dos pratos voadores /premium
Costa avisa que vai lançar o prato e,
muito lampeirinho, logo se propõe como alvo voador um dos indivíduos que
compõem aquela esquisita colecção de "disjecta membra" que constitui
o Governo.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 13 mai
2021
Não
tenho nada contra o Sporting. Alguns dos meus melhores amigos são
sportinguistas. Mas, até à noite de terça-feira, o único sportinguista do Porto
que eu conhecia era o filho dos meus vizinhos do lado que costumava manifestar
a sua frustração leonina em alta voz quando os jogos do seu clube eram
transmitidos pela televisão (“Caramba [digamos assim], Liedson!”). Desde terça
à noite, no entanto, sei que há muitos mais. E pior. Ao contrário dos adeptos
do meu clube, que vão festejar os títulos lá longe, para a Avenida dos Aliados
e a Praça da Liberdade, os sportinguistas do Porto fazem exactamente como os
benfiquistas do Porto: vêm para a beira de minha casa e entretêm-se a andar às
voltas na Rotunda da Boavista, a buzinar até altas horas da noite. Já deviam
ser duas da manhã do dia seguinte quando finalmente desmaiei, com os ouvidos a
zumbir, e umas horas mais tarde, quando acordei e à tempestade tinha sucedido a
bonança, o silêncio comparativo parecia o de um domingo de manhã. Tudo tem o
seu lado bom: gosto de domingos de manhã, sobretudo às quartas.
Com
a idade, e com a providencial ajuda de toda a espécie de erros cometidos no
passado, a forma, como dizia alguém, vai-se esvaziando, e é preciso aprender a
viver com isso, caminhando no meio-ser através da miríade de coisas do mundo. É
verdade que algumas deixam saudades, até as mais insignificantes e ridículas.
Como, por exemplo, o contentamento com as vitórias do meu clube e a óptima
alegria maligna com as derrotas do Benfica. Hoje em dia, sobra-me pouco dessas
aventuras afectivas. Se o Porto ganha, mesmo com um azul céu de Primavera, não
me ponho aos pulos. E, se o Benfica perde, o pérfido amarelo esverdeado da
maldade desgraçadamente não toma já conta da minha alma por reacção à
humilhação do sanguinário vermelho. Que Deus me perdoe, até acho graça ao Jorge
Jesus. Se ele ganhar alguma coisa, tomo isso por aquilo que os filósofos
chineses chamavam um Mandato do Céu. Há de resto, algo de Confúcio em Jesus
(Jorge).
Isto
não quer dizer que não haja coisas que me prendam a atenção. Há, e são
normalmente as coisas que prendem a atenção à maioria das pessoas. Como, por
exemplo, aquela reacção de António Costa, o nosso Grande Bazuco, ocasionalmente
Grande Vitamínico, àquele senhor sindicalista que aguerridamente o interpelou
em Valença do Minho aqui há pouco tempo. Lembrar-se-ão certamente que Costa se
esgueirou prontamente entre os membros da sua comitiva e lançou Pedro Nuno
Santos às feras. Houve quem notasse a pouca nobreza do gesto, e eu também não
achei aquilo próprio de um herói. Banalmente, foge como o diabo da cruz de tudo
aquilo que indique que não recebeu o já referido Mandato do Céu. Mas logo me
lembrei de algo que tinha ouvido José Miguel Júdice recentemente dizer na
televisão. O que dizia Júdice, que sabe estas coisas todas? Que
Costa não despede os ministros, porque precisa deles como bombos da festa. Ou
bonecos de tiro ao alvo. Enquanto disparam sobre eles não disparam sobre ele, o
que é, compreensivelmente, a principal preocupação de um habilidoso. É para
isso, exactamente, que os ministros lhe servem.
Ou,
se preferirem a imagem, é como o tiro aos pratos. Costa avisa que vai lançar o
prato e, muito lampeirinho, logo se propõe como alvo voador um dos indivíduos
que compõem aquela esquisita colecção de disjecta membra que
constitui o Governo, que nem a cola que transpira de um ministro tão adesivo
como Augusto Santos Silva – uma espécie de Band-Aid que transita das feridinhas
de um Governo para as de outro – consegue transformar num corpo compreensível. Uma perna ali, um pescoço aqui, acoli um braço,
acolá um pé, e por aí adiante. Alguns membros da corporação, largamente não
identificável, distinguem-se por um talento espontâneo. O
filosófico João Galamba, por exemplo, pela graciosidade natural da sua
linguagem bebida nas mais puras fontes. E o ministro Cabrita, um excepcional
talento, por tudo. Tudo, mesmo. Nada do que é errado, da incompetência à
grosseria, lhe é alheio. É uma vocação rara, uma encarnação da polimatia da
asneira, que serve o Grande Bazuco com afinco, como ele gosta (“um excelente
ministro”, declarou ontem). Um prato especial, que, de tão furado que está, não
é só para comer uma sopa que não serve. Até um pernil de porco cai pelo
alvejado fundo.
Os
Portugueses começaram por o conhecer como exímio praticante de um desporto
socialista, provavelmente importado da defunta RDA: o roubo do microfone.
Pelo menos, é a sua primeira aparição pública de que me lembro. Mas acertou em
cheio nessa auroral introdução aos Portugueses. O secretário de Estado Paulo
Núncio, do Governo de Passos Coelho, bem queria falar na Assembleia da
República, mas Cabrita, que adivinhava que a palavra só pode ser uma e
socialista, não o deixava. A mãozinha sapuda, mal o outro abria a boca, corria lesta
para o microfone e roubava-o, mostrando a preeminência da mão visível sobre a
mão invisível: um testemunho, portanto, contra as veleidades do chamado
neoliberalismo. Falo destes inícios promissores da sua carreira porque
obviamente ignoro as suas magníficas iniciações, à espera de um estudo aturado
do seu cursus honorum, com a devida passagem por Macau (essa eu li), um
ritual iniciático imprescindível, para proveito do cidadão comum que aspire a
uma vida folgada sem excessivos problemas de vergonha e decência. Em todo o
caso, a grosseria estava feliz e eficazmente estabelecida. Faltava a prova
cabal da incompetência.
O
que este ditoso mortal, a bem da não menos ditosa pátria que o viu nascer, logo
demonstrou (sem renegar, longe disso, a grosseria) mal se tornou ministro do
Grande Bazuco. Os seus prodígios foram relatados em todos os jornais e não
escaparam às televisões. Lembram-se das golas contra o fumo na época dos
incêndios, compradas aos colegas do partido? Incendiavam-se ao primeiro
isqueiro que se aproximasse a uma légua. Lembram-se do ucraniano Ihor,
assassinado pelo SEF, e da forma como Cabrita se arvorou em paladino dos
direitos humanos na Assembleia da República a seu propósito? Suponho que estão frescos na memória
os detalhes da invasão do Zmar – umas frágeis casinhas coladas umas às outras
qualificadas de propriedade de “burguesia média-alta” por um jornal – às quatro
da manhã, bem como os meios pela qual se processou, com o complemento
indispensável da referência ao CDS como “partido náufrago”. E agora as celebrações do
Sporting, em período de pandemia, das quais totalmente se alheou, como se o
ministro da Administração Interna – sim, ele é isso! – nada tivesse a ver com o
assunto. Um génio, um prato voador lançado pelo Grande Bazuco em direcção às
estrelas. Um prato voador grosseiro e incompetente lançado por alguém que
colectivamente nos toma por patos rasteiros.
Voltando
ao Sporting. Estava eu ainda no meu primeiro internamento num hospital – uns
dez dias, ou coisa assim, que anteciparam um mês inteiro, ano e meio depois –
quando se deu o ataque a Alcochete. Quer isto dizer que pude testemunhar em
casa, durante a convalescença, as variadíssimas e apaixonantes conferências de
imprensa do “Bruno”, que demoravam horas e eram seguidas em directo, sem
interrupções, por todos os canais de televisão. Sobretudo, pude assistir ao
anúncio unânime, por todos os comentadores televisivos, de que levaria ao
Sporting um tempo infinito (os cálculos eram uma subtil variação da sofisticada
matemática do 4-3-3) para recuperar daquela inominável malfeitoria. E eis que,
passados três anos, o Sporting, depois de quase duas décadas de privação, volta
às vitórias.
Duas
coisas retiro daqui. A primeira é que a sabedoria dos comentadores
desportivos não é infinita (a sua inventividade vocabular também se reduziu
dramaticamente ao longo dos anos). A segunda, que o redentor efeito daquilo que
o saudoso treinador Joaquim Meirim apelidou de “chicotada psicológica” se pode
manifestar de múltiplas maneiras. Ao seu modo, a invasão de Alcochete foi
uma “chicotada psicológica”. E, se o Sporting quiser ser de novo campeão, vai
precisar de outra. Modestamente, permito-me uma sugestão. Se António Costa
quiser desviar, mais uma vez, a atenção dos Portugueses dos problemas do país,
deve incentivar uma nova invasão de Alcochete. A cobertura televisiva não
falhará e o “Sexta às 9” da RTP, que tanto incomoda João Galamba e o seu
ministro, não conseguirá resistir. E se essa invasão for comandada por Eduardo
Cabrita, de fato de treino e feroz olhar de terrorista do Hamas, então o
resultado é infalível. O corolário natural do tiro aos pratos é claramente o
tiro aos patos. E esses, segundo todas as aparências, estão receptivos ao
desenvolvimento da modalidade.
Dito
isto, espero que nem o Sporting nem o Benfica ganhem campeonatos nos próximos
tempos. E não, não é por causa do Porto. É para poder dormir sossegado, sem a
orquestra pós-moderna das buzinas assassinas.
SPORTING DESPORTO GOVERNO POLÍTICA MINISTÉRIO
ADMINISTRAÇÃO INTERNA ANTÓNIO COSTA
COMENTÁRIOS:
Paulo Cardoso: Excelente. Rogerio Russo: Grande Bazuco.
Paulo Tunhas não os poupa e bem. Mas os nossos governantes são de facto exímios
praticantes de tiro aos bolsos. É o que temos! E claro o Grande Bazuko para
quem todo o dislate é poucochinho. É modesto o nosso Babush em funções, mas é o
que teremos ... Martelo
de Belem ....: Excelente
artigo.
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