sexta-feira, 7 de maio de 2021

Huis clos


Nada de compromissos. Muito espinhoso o que se pede. Será que iria a tempo de mudança nos costumes? As palavras valem o que valem, num país pouco habituado à transparência nas acções que põem, habitualmente, a Justiça em rebuliço…

OPINIÃO

A quarta figura do Estado

Em 2021, é inconcebível que o presidente do Supremo Tribunal de Justiça seja eleito sem programa, sem debate e escrutínio público, por um colégio de 63 colegas, em ambiente fechado à sociedade, com base em critérios de conhecimento e preferência pessoal.

MANUEL SOARES

PÚBLICO, 5 de Maio de 2021

Estamos à beira da eleição do 40.º presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), quarta figura protocolar do Estado e primeira da Justiça. O STJ abriu portas em 23 de Setembro de 1833, em plena guerra civil entre absolutistas e liberais, pela mão do grande reformador Mouzinho da Silveira, e foi instalado no terceiro quarteirão dos edifícios pombalinos da Praça do Comércio, onde ainda se encontra. No dia da posse do primeiro presidente, José da Silva Carvalho – um filho de lavradores pobres da aldeia de Vila Dianteira –, a população foi convidada a entrar e assistir ao acto solene para romper simbolicamente com o secretismo que cobria o exercício da justiça. 188 anos depois, ainda há secretismos para romper.

Em 18 de Setembro de 2018, quando foi eleito presidente António Piçarra, que agora cessa funções, afirmei publicamente que se tratava de “um juiz muito competente, muito reconhecido pelas suas qualidades, um juiz independente, frontal, corajoso, que diz o que tem a dizer quando acha que deve ser dito”, e que esperava dele mais visibilidade, mais intervenção e mais proximidade dos portugueses. Não me enganei. Sem prejuízo de algumas divergências, é justo reconhecer que o presidente cessante percebeu melhor que os seus antecessores a necessidade de estar presente no espaço público, de assumir os riscos de falar sobre os assuntos relevantes e de não passar todo o mandato escondido atrás dos discursos formais das ocasiões solenes a que ninguém dá atenção. Falou dos temas quentes do “Ticão”, dos megaprocessos e das demoras da instrução criminal, do efeito corrosivo das bizarrias do “juiz negacionista” e condenou, de forma enérgica e peremptória, os actos que deram origem a suspeitas de corrupção judicial e de manipulação da distribuição de processos na Relação de Lisboa. Nos momentos críticos, esteve sempre do lado certo.

Apresentam-se agora à sucessão dois juízes de carreira com 40 anos de magistratura e, sinal de refrescamento e novidade, a primeira candidata mulher, não oriunda da carreira judicial, que entrou na magistratura em 2007 pela quota reservada a juristas de mérito. Não me cabe aqui manifestar preferência, até porque não posso votar. Mas considero importante dizer que o próximo – ou a próxima – presidente do STJ deve ser alguém com espírito “arejado”, capaz de perceber o que significa liderar a justiça na segunda década do século XXI, num mundo que não é igual ao dos anos 80, quando as suas estruturas fundamentais foram concebidas. Alguém que interprete a necessidade de se começar a discutir a reforma da justiça a partir de dentro, na cultura, na mentalidade, nos métodos, na linguagem e na mensagem, nas rotinas e na organização. Essa liderança simbólica tem de partir do STJ e não vai acontecer se quem for eleito encarar o cargo como uma medalha de fim de carreira e se limitar a repetir o que já foi feito, enquanto o tempo avança e nos deixa para trás.

Chegados aqui, há que dizer que o ritual da eleição do presidente do STJ já não cumpre as exigências do tempo e de uma democracia participativa, transparente e responsável. Em 2021, é inconcebível que a quarta figura do Estado seja eleita sem programa, sem debate e escrutínio público, por um colégio de 63 colegas, em ambiente fechado à sociedade, com base em critérios de conhecimento e preferência pessoal. Ninguém sabe o que pensam os três candidatos sobre a justiça e a sua função no equilíbrio dos poderes do Estado, sobre a gestão e disciplina dos juízes, sobre a organização dos tribunais, enfim, sobre coisa nenhuma, como se o assunto respeitasse apenas às paredes do STJ e aos juízes que lá trabalham.

Disse-me um jornalista que nem sequer conseguiu ter acesso às cartas que os candidatos escreveram aos colegas a pedir o voto. Surreal. Se é assim, também não se percebe como é que a comunicação social, que às vezes perde tempo com coisas irrelevantes, desiste de ir mais fundo para cumprir a missão de informar, nem que tenha de ser insistente e incómoda. Deixo aqui, portanto, um desafio aos três candidatos: mostrem-se, arrisquem, organizem um acto público onde possam debater ideias e projectos e dizer aos portugueses porque querem presidir ao STJ e o que farão se forem eleitos. É assim que se começa a conquistar respeito e confiança.

Presidente da Direcção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

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