De David Martelo, em “A
BIGORNA”
DE NOVO “A GRANDE ILUSÃO”
A Guerra de 2034
Até que chegou o momento em que o crescimento da força de Atenas deixou de poder ser ignorado e a sua própria Liga passou a ser o objectivo das suas intromissões. Pensaram, então, que já não podiam suportar essa situação por mais tempo e que chegara o momento de se lançarem com todo o ânimo contra a potência hostil, e, se possível, destruí-la através da guerra que iam iniciar. Tucídides
Nos primeiros anos do século XX, a
manifesta desconfiança que se desenvolvera entre as principais potências
europeias, acompanhada de uma patente corrida aos armamentos, deu origem a um
acalorado debate na imprensa e na literatura da época, na maior parte dos casos
com tonalidades nacionalistas e belicosas.
No meio desse arrebatado debate, fez grande sucesso a obra A Grande Ilusão, do
escritor e jornalista britânico Norman
Angell, publicada pela primeira vez em 1910 e reeditada, em
1912, numa versão actualizada. Angell argumentava que a rivalidade no capítulo dos
armamentos, em curso na Europa, «especialmente a que se desenvolve entre
a Inglaterra e a Alemanha – não pode continuar indefinidamente. O resultado
líquido do esforço de cada parte para igualar os da outra é que, ao fim de um
certo tempo, a posição relativa de ambos é a que tinham inicialmente, e, os
enormes sacrifícios feitos de nada serviram».(1) Angell enfatizava, depois, que, na interdependência
económica àquela época existente entre as grandes potências, uma guerra
acarretaria prejuízos igualmente severos para ambas as partes. Como o autor
partia do cândido princípio de que os responsáveis políticos não deixariam de
reconhecer essa verdade, concluía pela inutilidade de haver uma guerra. Numa
obra posterior, publicada em 1912, Angell, respondendo
a Winston Churchill,
que o criticara por, segundo ele, ter escrito que o perigo da guerra se tornara
uma ilusão, replicou que «não era o risco de uma guerra que
se tornara uma ilusão, mas sim a ideia de que daí decorria algum benefício. [...] No que me diz respeito, nunca escrevi uma
linha, nem, tanto quanto é do meu conhecimento, alguém o fez, sustentando a
ideia de que a guerra é impossível. Bem pelo contrário, sempre insisti, com a
maior ênfase, que a guerra é não só possível como extremamente provável, e
assim será enquanto nos mantivermos tão ignorantes sobre o que com ela é
possível obter e a menos que utilizemos as nossas energias e esforços para a
evitar, em vez de orientarmos esses esforços para que ela aconteça. O que os
antibelicistas no seu conjunto proclamam, não é que a guerra é impossível ou
improvável, mas sim que é impossível colher dela algum benefício». (2) Feita esta
introdução, importa esclarecer que o texto que vão ler é uma abordagem
actual ao risco de uma guerra entre os EUA e a China, para a qual considero que
o conceito sublinhado no parágrafo anterior se mantém perfeitamente válido. Direi mesmo mais, ainda mais válido do que em 1912. O leitor
poderá recordar-se de que, já em Dezembro de 2020, a propósito da conhecida
expressão “a armadilha de Tucídides”, aqui deixámos uma primeira aproximação ao
tema, num artigo com o título DA
ARMADILHA DE TUCÍDIDES À IMPRESCINDIBILIDADE DA VITÓRIA.
(1) ANGELL, Norman, The Great Illusion, p. 3. (2) ANGELL,
Norman, Peace Theories and the Balkan War, pp. 81-82.
A
certo ponto desse artigo, imaginando uma guerra com os meios hoje disponíveis,
adiantei o seguinte comentário: As
medidas de guerra cibernética, cuja acção e danos causados configuram um enorme
ponto de interrogação, colocariam aos combatentes as mais paralisantes
surpresas, incapacitando equipamentos essenciais para a acção balística e para
o comando e controlo das operações. O ataque
iraniano, com mísseis balísticos, à base aérea de Ayn al-Asad, em 8 de Janeiro
de 2020, visando forças dos EUA ali estacionadas, como retaliação pelo atentado
que vitimou o general Qasem Soleimani, demonstrou a precisão dos meios à
disposição do Irão e a aparente incapacidade para proteger a base com sistemas
antimísseis, apesar de uma acção desse tipo ser absolutamente esperada. E,
provavelmente, a China seria capaz de fazer melhor. Passados cerca de dois
meses, tive acesso a um programa da série “60 minutos”, na SIC Notícias, no
qual eram entrevistados alguns militares dos cerca de 1.000 que ali
permaneceram depois do alerta de possível ataque missilístico. O programa em
causa ainda pode ser visto em https://www.youtube.com/watch?v=lGP7hZQuTL0 .
Ficamos, assim, a saber que desde o primeiro lançamento até à última explosão
decorreram 80 minutos. Os iranianos dispararam 16 mísseis, dos quais 11 tiveram
o seu impacto em Ayn al Asad. Os mísseis utilizados eram “de teatro” [theatre
ballistic missile – TBM], isto é, para objectivos entre 300 e 3.500 km. A impressão que se colhe do visionamento do
vídeo atrás referido é singularmente coincidente com o que afirmei no artigo
que escrevi em Dezembro de 2020, ficando-se com a ideia de que “não havia nada
a fazer”. E é esta sensação de inesperada
vulnerabilidade que nos permite transitar para o assunto seguinte. Em Março
do corrente ano, foi publicada a obra 2034 – A novel of the next world war, da autoria conjunta dos americanos Elliot
Ackerman e James Stavridis. Embora se
trate de uma novela, o facto de Ackerman ter cumprido, como marine, comissões
no Iraque e no Afeganistão, e de ter, posteriormente, trabalhado para a CIA,
acrescido da circunstância de Stavridis ser almirante da Marinha dos EUA e
ex-Comandante Supremo Aliado na Europa, fez-me admitir que, no meio
das fantasias que uma obra deste género sempre comporta, poderia vislumbrar
“nas entrelinhas” alguns indícios ou alguma matéria que viesse complementar as
ideias atrás mencionadas. Tendo feito
a descarga de uma edição Kindle da obra, procedi à sua leitura. Essencialmente,
a obra transporta-nos para o não muito distante ano de 2034 e, partindo de uma
situação bem actual – as pretensões de hegemonia naval do governo de Pequim no
Mar do Sul da China, por onde passa mais de um terço do comércio mundial –,
leva-nos ao incidente que provoca o início da guerra. Entretanto, ainda antes de entrarmos
no plano da ficção, importa recordar que a preocupação quanto a uma falsa
superioridade americana relativamente à China é um sentimento bem actual e que
foi expresso por vários autores. Poderia
citar vários exemplos, mas escolhi o que me parece resumir melhor a situação. É
um artigo de David Ignatius, publicado no Washington Post de 13-05-2020 (3) , no qual o autor começa por destacar o seguinte: “Em
jogos de guerra contra a China, levados a cabo na última década, os Estados
Unidos possuem um registo próximo da perfeição: perdemos quase sempre.” Trata-se de uma citação de um novo livro intitulado The
Kill Chain: Defending America in the Future of High-Tech Warfare, que constitui a crítica mais provocante à
política de defesa dos EUA de que tive conhecimento nos últimos anos. Foi
escrito por Christian Brose, ex-director
do pessoal do Comité das Forças Armadas do Senado e um conselheiro muito
próximo do senador John McCain. O livro não é apenas uma chamada de atenção, é
um alarme de incêndio na escuridão da noite.
É, pois, no âmbito desta realidade que partiremos para o patamar da ficção. 12 de
Março de 2034 – O
incidente de Wén Rui Uma flotilha de 3 destroyers da Marinha dos EUA sulca o
Mar do Sul da China, num patrulhamento destinado a afirmar a liberdade de
navegação naquela parcela do Pacífico. A Marinha Chinesa, seguramente, vigia a
flotilha através de drones e/ou satélites. Avistando uma coluna de fumo no
horizonte, o comando da flotilha decide aproximar-se e verifica que se trata de
uma embarcação de pesca que tem um incêndio a bordo. Uma secção é destacada
para prestar auxílio ao pesqueiro. Após a extinção do incêndio, os marinheiros
americanos apercebem-se de que a tripulação manifesta um comportamento
estranho, nada semelhante a uma expectável gratidão. Dir-se-ia que estão
aterrorizados. Do comando da flotilha vem a ordem para inspecção da embarcação.
Daí resulta a descoberta de o pesqueiro ser um navio-espião (admitamos
que semelhante ao da foto que abaixo publico) com o porão pleno de equipamentos sofisticados.
Embarcações chinesas, no recife Whitsun Reef, no mar do Sul da China, no
passado 27 de Março. (EL País – 08-04-2021) Cometida esta intrusão, a China
decide dar uma lição à Marinha dos EUA. Por um golpe de guerra cibernética,
as três unidades navais americanas são cercadas e ficam, de
repente, sem comunicações e com os ecrãs dos
equipamentos completamente negros. Os sistemas de armas deixam de funcionar.
Dois dos destroyers são afundados e só um, muito danificado, é deixado a
flutuar, para que os sobreviventes possam contar o que se passou. Segue-se a guerra,
com a réplica dos EUA. Feita esta
breve descrição do ‘início da guerra’, passo a expor as seguintes impressões
da descrição que os autores fazem de um conflito EUA-China, com intervenções,
em patamares diferentes, da Rússia, do Irão e da Índia: • Os EUA gastam
verbas astronómicas na aquisição de material ultra-sofisticado; a China e a
Rússia, não podendo competir nessa maratona financeira, apostam na guerra
cibernética para incapacitar a operação desse mesmo equipamento; o Irão aparece
como aliado da China (4) ; a NATO é referida como apática e de Israel não é
feita qualquer referência; • Na confrontação naval que vai prosseguir no
Mar do Sul da China, os chineses começam por ‘desligar’ todos os equipamentos
dos navios americanos (ecrãs negros), deixando-os cegos, surdos e mudos;
seguidamente, como se estivessem num exercício, afundam 37 dos 40 navios da
força de dois carrier battle groups, incluindo os dois porta-aviões; • No
próprio território dos EUA, a incapacitação de equipamentos tão vulgares como os
telemóveis, as caixas multibanco ou a não-aceitação das passwords dos
computadores, deixa a Casa Branca em descontrolado sobressalto; • Incapazes
de replicar no patamar convencional, a resposta dos EUA a uma derrota naval,
seguida da invasão de Taiwan, vai ser a destruição de uma grande cidade chinesa
com arma nuclear táctica, transportada por aviões antigos, desprovidos de
tecnologia sensível à guerra cibernética; seguida da retaliação chinesa sobre
duas cidades americanas; • Os vectores balísticos parecem imparáveis, não
havendo qualquer referência a sistemas antimíssil (tal como no caso atrás
referido, no Iraque); • Os EUA não empregam forças terrestres; • Incapazes
de gerir a loucura que haviam protagonizado, EUA e China aceitam a mediação da
Índia e põem fim à guerra. • O Conselho de Segurança é reestruturado e a
Índia ascende à primeira linha das potências mundiais. Já não
são unicamente, portanto, as questões morais da perda de milhões de civis, numa
guerra “sem retaguarda” e sem a eficácia dos abrigos para civis, do tempo da
2.ª Guerra Mundial. Já não é, apenas, a inutilidade geopolítica da
confrontação, sem qualquer forma de concretização do conceito de ‘vitória’.
Dir-se-ia que estamos muito para além disso, no patamar da impraticabilidade da
guerra de elevada intensidade e da pouca fiabilidade da tecnologia. Pode ser
que seja uma boa notícia.
Deus tenha piedade deste país quando alguém que não
saiba dos assuntos militares tanto como eu sei vier a sentar-se a esta
secretária. General Dwight Eisenhower (5)
(4) No
plano da realidade, é forçoso recordar que os ministros de Negócios
Estrangeiros do Irão e da China assinaram, no dia 27 de Março de 2021, em
Teerão, um acordo de cooperação com a duração de 25 anos. (5) BOB HERBERT, Ike Saw It Coming, In New York
Times, 27-02-2006.
David Martelo – Abril de 2021
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