segunda-feira, 10 de maio de 2021

Como um vaticínio


O receio de Abraracourcis, de que o céu lhe caísse em cima.

Estamos hoje transformados no chefe da aldeia gaulesa, para essa questão dos medos. Trata-se, é certo, de um puro retorno terrestre, um lixo caseiro, esse da queda, não direi de superior qualidade, sendo de fabrico preferencialmente chinês. Por enquanto, o bom Deus ainda vai controlando o seu espaço, quando resolver agir será decididamente mais eficaz. Contentemo-nos, por ora, com os detritos e os vírus chineses, por muito temíveis que pareçam, mas menos graves do que se Jeová se meter ao barulho.

Haverá mais quedas descontroladas de lixo espacial, avisa especialista. “É gritante a falta de legislação”

Ao PÚBLICO, Miguel Gonçalves fala numa falta de ética chinesa na sua política espacial e uma possível premeditação de reentradas descontroladas de fragmentos na atmosfera.

DANIELA CARMO

PÚBLICO, 9 de Maio de 2021

Nos últimos dias, as atenções da comunidade espacial – e não só – voltaram-se para o foguetão lançado da China a 29 de Abril do qual um segmento acabou por se desintegrar ao reentrar na atmosfera terrestre, na madrugada deste domingo. Os restos do engenho caíram no oceano Índico, perto das Maldivas, anunciou a agência espacial da China. Há cada vez mais lixo no espaço, o que tem implicações de segurança, ambientais e também políticas, diz o comunicador científico Miguel Gonçalves, antigo coordenador da Sociedade Planetária em Portugal.

Qual era o risco real de o segmento do foguetão chinês cair em terra, e não no mar? 
Na última órbita que era conhecida antes da reentrada na atmosfera, este primeiro estágio do foguetão chinês estaria a percorrer 90% da sua órbita em oceano. Portanto, desde o início que sabíamos que, do ponto de vista probabilístico, era muito difícil um qualquer fragmento cair em terra sólida e ainda mais difícil seria cair em cima de alguém. A comunidade astronómica e aeronáutica não estava propriamente preocupada com destroços destes poderem cair em cima de alguém

Este é o primeiro grande exemplo de fragmentos de foguetões ou lixo espacial a voltar à Terra?

Não é a primeira vez que temos estas entradas não controladas de foguetões ou partes de foguetões na atmosfera. Aliás, a China tem até um currículo muito pouco abonatório neste tipo de temáticas. Eles tiveram um módulo anterior que também teve uma entrada descontrolada, assim como outros pedaços de foguetões com entradas descontroladas. A China faz isto – e, provavelmente, vamos ter no futuro também a indústria espacial privada a ter estes comportamentos  – porque se está a aproveitar de algo gritante, que é a falta de legislação espacial para detritos espaciais.

E existe algum controlo?

O que existe são apenas e só panaceias políticas, ou seja, não servem absolutamente para nada. Não há actualmente nenhuma estrutura política suficientemente forte para poder averiguar, monitorizar e até penalizar as nações que usam e abusam de entradas descontroladas de pedaços com grandes massas. Sabemos que a atmosfera consegue destruir grande parte destas estruturas, mas também temos registo de pedaços que sobrevivem, caem nos oceanos e depois dão à costa

Como se chegaria a essa política espacial?

As Nações Unidas têm um gabinete para o espaço, mas, desde a sua fundação, na década de 1950, é apenas uma entidade muito passiva, de pareceres técnicos e recomendações, sem poder efectivo. Não acredito que se consiga atingir um acordo global, pelo menos entre as principais potências espaciais. Isto porque todas elas têm os seus próprios planos espaciais e, por isso, acho muito difícil que nos próximos tempos consigamos ter uma política espacial maioritariamente aceite pelos Estados.

Aqui entra também um outro factor na equação que é importante realçar: a indústria espacial privada está cada vez mais pujante, e não é só nos Estados Unidos da América. Elas também têm que ser ouvidas quando for construída uma legislação. Não consigo encontrar vontade política e técnica por parte das agências e das nações espaciais para que isso chegue a bom termo

Milhares de detritos no espaço

Segundo Miguel Gonçalves, desde que a guerra espacial começou, em 1957, a “quantidade de lixo espacial é crescente e os números são cada vez mais assustadores”: Lançaram-se 6050 foguetões para o espaço;  Há 28.170 detritos espaciais verificados regularmente pela Space Review, uma publicação online sobre a exploração e desenvolvimento espacial; Já foram documentadas 560 explosões, anomalias ou colisões entre fragmentos espaciais; Existem cerca de 34 mil objectos espaciais com mais de dez centímetros, que se deslocam a uma velocidade de sete quilómetros por segundo (um parafuso com dez centímetros que circule a essa velocidade pode destruir, por exemplo, uma janela da Estação Espacial Internacional); Há 128 milhões de objectos com um tamanho compreendido entre um milímetro e um centímetro, que mesmo assim criam estragos."

É, por isso, expectável que episódios semelhantes se repitam? 

Vamos continuar a assistir a este tipo de incidentes. Provavelmente, nos próximos tempos, vamos assistir a cada vez mais reentradas de lixo espacial. Temos todo um conjunto de gerações de grandes satélites que estão perto de acabar a sua vida ou que já acabaram e já estão em processo de decaimento orbital. Em termos de probabilidades, é muito complicado que este tipo de detritos consiga atingir alguém ou criar grandes danos, uma vez que vivemos num planeta composto em grande parte por oceano. A probabilidade é que o material seja primeiro muito destruído pela atmosfera e aquilo que sobreviver caia em água ou em áreas desertas

Temos um problema de pegada ambiental espacial gravíssimo cuja tendência é para se agravar porque estamos a lançar cada vez mais satélites e já estão anunciadas mega constelações de satélites. Estamos a criar um autêntico ninho de vespas, colmeias de satélites em órbitas próximas da Terra que podem causar alguns problemas. 

Por não existir uma legislação? 

Precisamente por não existir legislação, além de que estas mega constelações são um perigo também para a investigação científica. Quando falamos de fotografias de astronomia observacional, do cosmos e do universo profundo, ou seja, fotografias de longa exposição, temos frequentemente, e cada vez mais, rastos destes satélites que interferem na investigação científica. Além disso, ajudam no aumento da poluição luminosa

Quanto mais satélites colocarmos lá em cima, maior é a probabilidade de poderem bater entre si, o que pode dar origem a uma cascata em efeito dominó junto de vários satélites e isso contribui para que haja ainda mais lixo. Esperemos que nada disso aconteça

Já tivemos relatos de avisos de colisões mais ou menos iminentes em que tiveram de ser feitas correcções orbitais. A própria Estação Espacial Internacional já teve vários registos de correcções orbitais precisamente para não embater em lixo espacial.

Bill Nelson, administrador da NASA, criticou a actuação da China a nível espacial, acusando o país de “não cumprir os padrões responsáveis em relação aos detritos espaciais”.

Há uma “guerra diplomática” entre os EUA e a China?

As “relações espaciais” entre os EUA e a China não andam boas. Aliás, a China não tem participação na Estação Espacial Internacional desde o início por veto norte-americano. As declarações de Bill Nelson entendem-se do ponto de vista do que é a política espacial norte-americana, mas arrisco-me até a dizer que as sanções e medidas mais duras só acontecerão quando e se um destes detritos cair em solo americano. 

Aliás, os próprios EUA podem voltar a ter episódios de entradas descontroladas com que não estão a contar. De uma maneira geral, as nações espaciais têm telhados de vidro. 

O que é que está, então, em causa? 

O problema é que não é a primeira vez que a China faz isto, ainda por cima, com grandes massas. A questão é também tentar perceber se eles estão a fazer isto de uma maneira planeada ou não. É muito difícil ter indicações oficiais por parte da agência espacial chinesa, mas o que se fala é que tudo isto pode ser uma estratégia delineada. Ou seja, se esta reentrada foi pensada desde o início para ser descontrolada porque eles sabem que a probabilidade de acontecer algum problema, de haver vítimas, é muito baixa. 

Porque é que a China iria adoptar essa estratégia?

 No fundo, uma entrada controlada deste tipo de objectos exige, por exemplo, mais combustível, mais correcções orbitais, exige toda uma quantidade de engenharia aeronáutica mais complicada. Portanto, se – isto é um pensamento muito simplista e tenho essa noção – a probabilidade de acontecer alguma coisa é extremamente baixa, então porque não apostar numa entrada descontrolada porque assim não têm que se preocupar com muito mais? 

Contudo, há aqui também uma questão de ética espacial, de procedimentos e de segurança aeronáutica que as outras nações tentam pôr em prática, mas que a China está a violar. Este fragmento que caiu colocou lá em cima o primeiro módulo da estação espacial chinesa e nós sabemos que vai precisar de mais viagens, mais lançamentos para continuar a construção modular, que funciona como um Lego. Vamos assistir a esses lançamentos e agora sim podemos fazer a pergunta: qual vai ser o procedimento e a estratégia da agência espacial chinesa com os futuros lançamentos? Vão também apostar em entradas descontroladas? 

tp.ocilbup@omrac.aleinad

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COMENTÁRIOS:

Fernando Toul.886923  EXPERIENTE: O fim descontrolado do Skylab, a primeira estação orbital da NASA, levou a que alguns pedaços daquele falhado laboratório caíssem em terra firme em Austrália, um deles caiu no tecto de uma casa, o que levou o seu jovem proprietário a ficar rico porque um jornal norte-americano prometeu recompensar com 10 mil dólares a quem encontrasse um pedaço do Skylab. Os casos não são únicos, uns são é mais falados que outros.                 Amélia - you're fired :)  MODERADOR: Skylab foi na década de 70 do século passado. E foi a 1ª notícia em todo o Mundo. E foi com o Skylab que se reviram uma série de regras para a segurança das pessoas na Terra. Para que isto não voltasse a acontecer. Até foi lançada uma série de sucesso mundial onde o herói era um sucateiro espacial que utilizava um foguete construído por ele próprio. Haa...e a aterrissar na vertical, como o SpaceX. De referir que o que aconteceu ao Skylab foi um acidente imprevisto, mas foi importante para conhecer um novo problema mundial. Ao contrário deste modelo de foguete espacial da China que é uma tragédia anunciada a cada lançamento. Já foram 2. Faltam 11. E com um faixa de queda a passar por cima de Lisboa. O que será um perigo para o sul de Portugal a cada lançamento... só mais 11.                  vinha2100 MODERADOR: Entrevista muito interessante. Deve ser duro aos trolls ouvir a verdade sobre o Estado pária que é a China. O mesmo que nos exportou esta pandemia que já provocou milhões de mortos. E que cada vez mais pessoas pensam que intencionalmente.          O_Vila_Nova  INICIANTE: Miguel Gonçalves, o comunicador!, que se ponha a toques que o senhor Ricardo quer lhe tirar o lugar.             mario.peixoto  EXPERIENTE: Infelizmente, como já é habitual, só serão tomadas medidas quando acontecer uma tragédia.             Ricardo INFLUENTE: (1) Não há nenhum tratado internacional vinculativo. Mas a nível interno a maioria dos países tem leis que obrigam tanto as suas agências públicas como as suas empresas privadas a tomar precauções para que o que lançam para o espaço não volte de forma descontrolada. Por vezes há falhas e perdem o controlo mas por regra fazem-se reentradas controladas. (2) Isto é a 2ª vez que um foguetão deste modelo faz uma reentrada descontrolada. Não há grandes dúvidas que a China está a fazer lançamentos sem margem de manobra para fazer uma reentrada controlada.

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