segunda-feira, 24 de maio de 2021

Para o que lhe deu!


Só o Dr. Salles, para contar histórias de uma gesta portuguesa que mais ninguém sabe ou deseja saber e muito menos contar. Um relato como já se não lê em parte nenhuma, pelo menos os leigos como eu, que me limitei a papaguear acções e nomes e datas, onde a Tailândia não entrava e se consideravam as aventuras de Fernão Mendes Pinto - que esse sim, chegou ao Japão - em todo o caso, fruto de muita imaginação, de tão ousadas e estapafúrdias… É certo que encalhámos em Timor…  Mas o Dr. Salles é assim como uma espécie de último abencerragem… Devia citar a bibliografia, embora poucos se aproveitassem dela, nos tempos que correm.

De Ceuta, sim, dizia-se que fora a primeira conquista portuguesa no Norte de África, onde foram armados os filhos de D. João I, e mais umas coisas a propósito do Infante “Santo”, onde já se enfiou Tânger e outras conquistas, para vingar D. Fernando, que padeceu em Fez. Mas de Ceuta se fala hoje, a propósito de uns “migrantes” juvenis, sem glória mas com a coragem da fuga de África …

POR CEUTA E MAIS ALÉM... (1)

HENRIQUE SALLES DA FONSECA               A BEM DA NAÇÃO, 23.05.21

Este texto foi solicitado pelo jornal «O Heraldo», de Pangim, Goa, onde aguarda publicação.

* * *

Leão e Castela nunca viram com bons olhos a independência de Portugal e desde o bafordo do vale do Vez, de tudo têm feito para acabar com essa «rebeldia». Já do mesmo se tinham queixado os romanos relativamente aos lusitanos e tal qual se diga dos soviéticos em relação às colónias portuguesas.

À falta de dimensão local, ibérica, impunha-se o alargamento da área de influência e o inerente ganho de recursos que permitissem suportar a sempre latente necessidade de enfrentamento da agressão castelo-leonesa.

E foi assim e por essa causa que nasceu a «aventura» ultramarina portuguesa iniciada por D. João I em Ceuta no já distante dia 21 de Agosto de 1415 e com epílogo no Largo do Carmo, em Lisboa, no dia 25 de Abril de 1974.

De início, a mistificação foi pelo encapotamento da aquisição de dimensão política pelo alargamento da fé no âmbito da Cruzada do Ocidente; no final, a mistificação foi pelo encobrimento da entrega das remanescentes colónias portuguesas ao Império Soviético pela conquista das falaciosas «mais amplas liberdades».

Mas, entretanto, ocorreram «coisas» interessantes, umas, importantes, outras…

O início da «aventura» fez-se a partir de Tavira (e não de Sagres) onde em 1430 já existia o «Hospital do Espírito Santo» (ainda hoje formalmente existente) cuja principal missão consistiu na assistência a quem andava em campanha no norte de África. Mas a partir do momento em que as navegações se começaram a estender para além do Cabo Bojador, deixou de ser útil transportar os doentes para Tavira e assim foi que começou a instalação de hospitais de proximidade em relação às ocorrências que geravam necessidades de assistência clínica ou mesmo cirúrgica. E foi desse modo que foram instalados 17 hospitais entre Tavira e Baçaim cuja missão principal foi a de prestar assistência aos tripulantes e passageiros na «rota da Índia» mas também dispensando cuidados aos nativos de cada uma das ditas 17 localidades.

Assente pé em Goa e desenvolvido o comércio até então exclusivo de muçulmanos, foi fácil dar a volta até Coromandel onde se deparou a riqueza fantástica do Estreito das Pérolas e sua base logística no extremo norte do Ceilão, a Península de Jafna, ou seja, o Jafanapatão na linguagem típica dos portugueses de então. E o comércio das pérolas mudou de intermediários, no que foi um rude golpe em inúmeros interesses até então por ali estabelecidos. A missão evangelizadora foi entregue a franciscanos e jesuítas no que se revelou um processo de conversões em massa como não se esperava nem se julgava possível. Era um povo dócil que a nada opunha resistência e que os portugueses tomaram por indolência congénita. As querelas – e houve-as várias a ponto de termos sido «obrigados» a depor um Rei e a colocar outro no tronoeram instigadas por povos vindos do centro da ilha mas, a pouco e pouco, fomos nós, os portugueses a adoptar a indolência e quando os holandeses chegaram para nos tirarem o negócio das mãos, fomos evacuados de padiola e muitos morreram na viagem até Goa. Passado o tempo que a História narra, foram os holandeses que não opuseram resistência aos ingleses e estes levaram o gin que tomavam com quinino e não foram apanhados pela indolência. O preço das pérolas media-se em doses letais de paludismo. Entretanto, chegáramos ao extremo sul do Ceilão em busca de mais comércio e não tardou muito para nos vermos envolvidos na política local com reinos agredidos a pedirem-nos protecção contra reinos agressores. Eis como o Rei de Candi, D. Filipe Jamasinha Bandara, nos pede protecção, nós lha dispensamos, ele assegura o trono mas morre logo de seguida de causas tidas por naturais. O filho e sucessor natural, D. João de Áustria Cândia, sendo criança, não foi confirmado no trono pelo Conselho do Reino e foi substituído pelo tio, irmão do Rei acabado de morrer. E, para aplanar problemas sucessórios no reino, foi D. Lourenço de Almeida, «o gigante loiro», filho do Vice-Rei D. Francisco de Almeida e que viria a morrer em Diu, que foi encarregado pelo Conselho de Estado de levar o não-Rei para longe. Para Goa onde a vida continuou. Mas essa é outra história

No Sri Lanka actual, fala-se uma certa forma de português na costa leste, em Trincomalee e em Batticaloa.

Chegara, entretanto, a hora de «passar além da Taprobana», a hora de o comércio florescer entre todas as partes banhadas pelo Mar de Andaman, de o português ter passado a ser a língua franca de toda aquela vastíssima zona e de Filipe de Brito e Nicote, natural de Lisboa, ter sido eleito Rei da zona central da Birmânia, ter governado durante 12 anos com grande proveito para os seus súbditos e ter sido morto à frente das suas tropas em defesa da sua capital contra o tradicional inimigo a norte de cujo temor popular resultara a sua eleição.

Estava Portugal a braços com a Guerra da sua própria Restauração contra os Habsburgos de Espanha quando os holandeses tomaram Malaca e escravizaram os portugueses lá residentes e os deportaram para Batávia (Jakarta) com o intuito de os fazer de capatazes dos sub-escravos locais nas plantações de seringueiras, as árvores da borracha. Mas os escravos portugueses solidarizaram-se com os escravos indonésios e os holandeses não encontraram outra solução que não a de negociarem a alforria dos portugueses. Assim foi que estes reconquistaram a liberdade, ganharam um território próprio que passaram a habitar e a administrar, onde se fala português e que ainda hoje, plenamente integrado na bela malha urbana de Jakarte, continua a ser o «bairro dos portugueses», Tugu. Curiosamente, tanto em Malaca como em Jacarta ainda hoje se falam formas específicas de português enquanto que de holandês pesa a memória.

Entretanto, os comerciantes portugueses haviam navegado pelo Golfo do Sião, subido o rio Praia e feito comércio em Ayutaiah e em Bangkok. Os proveitos bilaterais desse comércio e relações de amizade levaram o Rei do Sião a oferecer ao seu «irmão», o Rei de Portugal, ali representado por Afonso de Albuquerque, um local fronteiro a Bangkok para instalação duma feitoria. As relações entre os dois países têm sido de tal modo exemplares que nesse local ainda hoje se localiza a Embaixada de Portugal junto do Rei da Tailândia.

(continua)

Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS;

Anónimo 23.05.2021 : Muito bom. Bela lição. Obrigado

Anónimo, 23.05.2021: Muito bom. Bela lição. Obrigado Caro Sr. Henrique, Quando 1+1=3 Um dia gostaria de poder visitar esses países de que fala no seu blog, inclusive e principalmente Timor, seria um dos sítios para a minha lua de mel se a Maria também assim desejasse, claro. Ao visitarmos uma vez na vida esses locais, podemos não ficar com a ideia real sobre os locais, só voltando, vivendo e vendo segunda vez as coisas por outro prisma. Mas a dimensão do mundo é tão enorme que, normalmente não gosto de voltar aonde já estive, porque haverá certamente coisas novas e das boas para assistirmos e presenciarmos junto das pessoas certas.
Desde que o Gil Eanes conseguiu passar o Cabo Bojador em Marrocos, tudo se tornou possível. Curiosamente ainda hoje, se repararmos bem ao longo da costa d' África estão muitos barcos esquecidos, naufragados, encalhados que deram à costa em alturas de turbulência e que já nunca mais ninguém mexeu, e por ali ficaram eternamente ganhando ferrugem ao tempo... Quando o saudoso Prof. José Hermano Saraiva falava de história, Portugal ouvia e aceitava, sem contrapor, mesmo não tendo vivido na era de que ele falava. - seja como for, o que interessa é o cumprimento dos direitos humanos internacionais e da Constituição Portuguesa no sec. XXI que é das melhores do mundo. Cumprimentos
Bráulio Raposo

Anónimo 24.05.2021: Belíssimo 'tour d'horizon' da epopeia dos Descobrimentos. A maneira como o Dr. Sales da Fonseca sobrepõe os factos históricos no contexto e locais contemporâneos, estabelece um elo entre o passado e o presente, permitindo o leitor a 'viver' a História. Aguardo impacientemente a sequela. Muito obrigado. António Fonseca


Nenhum comentário: