Um texto que nos enche as medidas, na
precisão das suas referências, na reflexão apoiada nas leituras próprias, na ousadia
da sua expressão, provando que nem toda a sociedade se deixa embrutecer pelo
medo. Felizmente há sempre um Paulo
Tunhas a distinguir-se da hipocrisia social dominadora, e a arriscar-se, por
isso, no fanatismo das convenções de momento... Bem-haja por isso.
O verdadeiro Grande Irmão /premium
É em nome do Eu – Eu, Eu, Eu – que a
liberdade do discurso (“expressão” é um conceito mais ambíguo) é limitada dia
após dia, num enclausuramento progressivo. Já estivemos mais longe do 1984 de
Orwell.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 27 mai
2021
Tudo, a pouco e pouco, se vai
tornando mais apertado, vigiado e regulamentado: a liberdade, a linguagem, o pensamento.
Cada semana nos traz novos exemplos, cada um apimentado com uma certa cor
local, mas todos eles convergindo num ponto único: o de uma
censura generalizada que visa interditar a liberdade do discurso em nome da
necessidade de proteger a célebre “auto-estima” quer de certos grupos étnicos,
quer da subjectividade individual erigida em lugar de permanente queixa contra
a indiferença alheia e a incompreensão do mundo. Desenganem-se aqueles que pensam que tudo isto não
passa de uma conjuntural e provisória loucura destinada a desvanecer-se sob o
efeito de um sopro de bom-senso vindo de um qualquer lugar, ou
auto-destruindo-se como resultado dos seus próprios exageros. Não. Foi algo
que veio para ficar e que apresenta todos os sinais de uma tendência poderosa e
praticamente incontrolável que varre tudo à sua frente. Não pretendo que
seja impossível encontrar pequenos lugares de resistência a essa tendência
generalizada, mas estou certo que eles se pagarão com um cada vez maior
isolamento e com uma indisfarçável solidão.
Os
Estados Unidos estão, como de costume, na vanguarda das ideias e é o seu
exemplo que inspira o que se passa hoje em dia em Inglaterra e por essa Europa
fora. A França, por exemplo, distingue-se do resto apenas pela forma
particularmente virulenta como o chamado “islamo-esquerdismo” aí se manifesta.
Mas, no essencial, é a mesma coisa. E quem fala da Inglaterra e da França, fala
da Europa democrática inteira, inclusive do nosso pequeno Portugal, onde os
elementos mais arcaicos do Bloco de Esquerda – aqueles que vêm das várias
formas da herança política do marxismo – paradoxalmente funcionam ainda como
obstáculo ao pleno desenvolvimento da nova ideologia woke, apesar do Bloco a exprimir abundantemente, ao ponto
de isso se ter transformado na sua imagem de marca.
Fiquemo-nos
por alguns exemplos dos últimos dias, que são tudo menos exaustivos.
A mayor de Chicago, Lori Lightfoot, do
Partido Democrata, é negra. Apoia, é claro, o Black Lives Matter. Mas não se
fica por aí. Para combater o “racismo estrutural” ou “sistémico”, tomou uma
curiosa decisão: conceder apenas entrevistas individuais a jornalistas negros
ou, grande sinal de tolerância, mestiços. Todas as críticas que lhe haviam sido
feitas enquanto mayor, declarou, provinham de um enviesamento racial. E
ela já perdeu a paciência para educar homens brancos. A extraordinária decisão
foi acatada sem grandes protestos na cidade. De resto, os programas que a
Câmara de Chicago tem lançado, reforçados agora pela insistência do Presidente
Biden em políticas centradas na “equidade”, já abundam em critérios que
determinam a exclusão racial daqueles que têm a pele branca. Ficam
surpreendidos com o gesto de Lori Lightfoot? Deviam ficar ainda mais
surpreendidos com a tranquila aceitação que a comunidade testemunha a esse gesto.
Ela não o teria tomado se não soubesse que, nos Estados Unidos dos nossos dias,
quase ninguém a censuraria por isso. A restrição da liberdade do discurso,
ainda por cima motivada por preconceitos racistas, está ali bem instalada. Como
notou a escritora francesa (e negra) Rachel Khan, um novo segregacionismo, com
as suas particulares neuroses, tomou conta dos Estados Unidos, e com ele a
intolerância e o totalitarismo.
Tanto
a decisão de Lori Lightfoot
quanto a naturalidade como foi acolhida só se explicam pela difusão
generalizada da tese do “racismo sistémico” ou “estrutural” posta a circular
pela socióloga Robin DiAngelo. De
acordo com a tese, tudo, sem excepção, na nossa sociedade testemunha da
pervasividade do racismo branco, tão presente nos comportamentos claramente
racistas quanto naqueles que aparentemente contra estes se insurgem, desde que
atribuídos a brancos. De facto, quando um branco se afirma não-racista está,
sem ter consciência disso, a exorbitar de racismo (é a “fragilidade branca”), já
que pretende ocultar o facto de que a sociedade como um todo se encontra
estruturada de forma racista, ao ponto de a expressão “racismo branco” aparecer
como naturalmente pleonástica: todo
o racismo é branco e todo o branco é racista.
Como
é bom de ver, não é só a ideia como um todo que é absurda. Os seus efeitos
práticos são fantasticamente perniciosos em todos os domínios. Vejam o caso da polícia. Se um polícia branco prende um negro, por muitas
razões que tenha para o fazer, a acusação de racismo cairá logo sobre ele,
impiedosa. E, de acordo com a doutrina, ele está, de facto, a ser racista,
conscientemente ou não. Quando
recentemente a activista negra Sasha Johnson foi alvejada em Londres
(encontra-se em estado crítico no hospital), logo a dirigente trabalhista e
deputada Diane Abbott, muito próxima do antigo líder Jeremy Corbyn, denunciou
um crime de ódio racista. Acontece que a investigação policial parece concluir
que a bala que lhe acertou foi uma bala perdida numa rixa entre dois gangs
constituídos por negros. O que poderia ser visto como um desmentido da acusação
de Abbott, se deixado nas mãos de um discípulo ou discípula de Robin DiAngelo
imediatamente será visto, por artes mágicas da dialéctica do “racismo
sistémico”, como uma sua indirecta confirmação, já que tudo está decidido à partida. Deixo a quem me lê a tarefa de imaginar o curso dos
argumentos.
Até
aos mais ínfimos detalhes. Como, por exemplo, no caso das chamadas
“micro-agressões”. Seguindo o exemplo de várias outras universidades do Reino
Unido, a A fortuna extraordinária dos termos “sistémico” ou
“estrutural” é, de resto, prodigiosa. Um documento recente da Igreja de
Inglaterra apela a que a Igreja assuma o seu “pecado estrutural (structural sin)”.
E certamente que não faltarão por aí teses dedicadas ao “pecado sistémico” em
Santo Agostinho. Assim vão os tempos. Assim os tempos cada vez mais serão, não
tenham dúvidas. A Universidade de
Cambridge elaborou uma
lista muito extensa de potenciais ofensas que permitirão aos estudantes denunciarem o
comportamento de colegas e professores. A lista compreende um vasto
conjunto de “micro-agressões”. Por exemplo, se um professor franzir o
sobrolho numa conversa com um estudante negro, isso será imediatamente tomado
como uma “micro-agressão” susceptível de ser denunciada e convenientemente
punida. O que é importante é que nada possa, em nenhuma
circunstância, ferir a “auto-estima” de qualquer minoria, étnica ou outra. Na Califórnia, as escolas são encorajadas a
guiarem-se, no ensino da matemática, por um documento intitulado: “Um
caminho para o ensino equitativo da matemática: desmantelando o racismo no
ensino da matemática”. A defesa
da equidade, tão cara a Joe Biden, passa aqui pela destruição do mito da
objectividade, que perpetua a supremacia branca e a opressão das minorias
através da convicção que existem “respostas certas” e “respostas erradas”. Ora,
não há respostas certas nem respostas erradas. Dois mais dois não têm de ser
quatro: podem ser cinco ou um balão azul. Pretender o contrário é fazer prova
do mais abjecto racismo sistémico.
E chegamos aqui a um ponto essencial. E esse ponto essencial é o da redução da
necessária luta pela igualdade entre entre negros e brancos, ou entre homens e mulheres, a uma defesa extremada da
subjectividade como lugar por excelência de todas as virtudes. Da subjectividade individual e daquilo que se poderia
chamar a subjectividade colectiva
das minorias. Tudo o que se possa opor a essa subjectividade – em
grosso, aquilo que Freud chamava a prova da realidade – é visto como o inimigo
a abater. Se alguém
lembrar que nenhuma sociedade pode sobreviver, para continuar a falar como
Freud, se se reger apenas pelo princípio do prazer sem qualquer limitação pelo
princípio da realidade, tal proposição é imediatamente vista como demonstrando
o tal pervasivo racismo sistémico. Nenhum exemplo disto é talvez tão bom
como o título do programa que Harry – o velho Taki, na Spectator, chama-lhe Prince
Halfwit; eu chamo-lhe Príncipe Tadinho – e a horrenda Oprah Winfrey têm em conjunto:
The Me You Can’t See, “O Eu que não podes ver”. Está tudo aqui. O
egotismo primário. A afirmação de uma verdade superior na profundidade do
“detestável Eu” de que já falava Pascal. A delícia obscura da auto-exposição, sem distância
irónica alguma por relação a si mesmo. A vontade nihilista de abolir um mundo
que se recusa a reconhecer-nos como o seu centro indisputável. “O Eu que não
podes ver” é “O Eu a que deves obedecer”.
É em nome desse Eu – o Eu de
cada um e o Eu colectivo das minorias – que se constitui um mundo de censura, todo ele concentrado na busca dos
“crimes de ódio”, tão latamente entendidos que abarcam praticamente tudo o que
se quiser. É em nome desse Eu – Eu, Eu, Eu – que a
liberdade do discurso (“expressão” é um conceito mais ambíguo) é limitada dia
após dia, num enclausuramento progressivo da palavra. Francamente, já estivemos muito mais longe
do 1984 de Orwell. Pode-se
ouvir a polícia do pensamento a subir as escadas do nosso prédio. E ficamos a
saber quem é o Grande Irmão: é o Eu invisível, aquele que não podemos ver. Face
à sua omnipotência – como em Orwell e na grande canção esquecida de David Bowie
– We Are the Dead.
LIBERDADE DE
EXPRESSÃO LIBERDADES SOCIEDADE LIBÉRIA AFRICA
OCIDENTAL ÁFRICA MUNDO POLITICAMENTE
CORRETO
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