Das
sociedades ocidentais, plenas de pruridos e de escrúpulos auto acusatórios, de
gente elegante que difunde ideias igualitárias enquanto trabalha afanosamente e
sofismadamente para uma cada vez maior desigualdade…
Um texto bem claro de Ernesto Galli della Loggia, publicado
no Corriere della Sera de 3 de Abril de 2021, traduzido por David
Martelo no seu excelente blog “A BIGORNA”. Com os meus
agradecimentos a João Sena que mo
enviou.
Mas conquanto concorde com a tese da tal
ignorância – e não só da História – de uma sociedade que se movimenta hoje em
redor de uma caixinha artificial, não já de Pandora, mas estigmatizadora e alienante
- penso que o que move os destruidores – das estátuas e dos símbolos vários do
passado atroz - para além da defesa dos princípios igualitários, custe o que
custar, é mesmo sofisma: de falsa virtude, nos do politicamente correcto, de
fúria destruidora nos agravados do presente, por conta de um passado que lhes
foi imposto.
O NOSSO
DELÍRIO SUICIDA
Ernesto Galli della Loggia
O que é que sucedeu para que se chegasse a aceitar, ou mesmo a
muitas vezes promover, o derrube das estátuas de Colombo e de Churchill,
considerando-os patifes inapresentáveis? A pensar que ensinar as obras de Homero,
de Dante e de Shakespeare, ou a executar a música de Mozart, constituísse uma
discriminação ofensiva para quem tem uma cor de pele diferente do branco? Para
que se difundisse a ideia de que a nossa história não seja mais do que um
cúmulo de erros e de horrores? De onde é que vem este delírio suicida do “politicamente correcto” que
está a devastar a imagem que o Ocidente tem de si próprio, contribuindo para o
paralisar ideologicamente no palco mundial?
As origens são muitas mas, na minha
opinião, uma sobressai sobre as demais: a crassa ignorância da história – antes
de mais da própria história – que, agora, invade as nossas sociedades. Um fruto, por sua vez, daquela revolução que se
verificou, a partir da segunda metade do século passado, na formação
escolástica e universitária, especialmente entre as elites políticas, mas não
só: isto é, quando o direito
e a economia lograram substituir o velho edifício de base
histórico-humanística, tornando-se sempre mais o âmago do percurso formativo.
Entretanto, por outro lado, mesmo o direito e a economia se
libertavam progressivamente do fundo histórico que, até então, tinha sido
também o seu (veja-se, por
exemplo, a progressiva marginalização das matérias históricas nas faculdades de
jurisprudência).
Tudo isso significou que começámos a
perder a dimensão do passado. Não só a
ignorar os factos ocorridos, que já não é pouco, mas sobretudo a esquecer que o
universo dos valores também é um universo histórico, o que quer dizer que é
sujeito a modificações profundas com o passar do tempo.
Pelo que aquilo que hoje nos parece
inconcebível – como a condição de inferioridade da mulher ou o trabalho
infantil – dois ou três séculos atrás era coisa comummente aceite como a mais
óbvia normalidade: tanto na nossa cultura como em qualquer outra do planeta. O mesmo se diga da tortura, da violência e
da guerra. A conquista, a sujeição de outras populações, a sua redução à
escravidão, foram, por séculos e séculos, por milénios, a regra universalmente
seguida não só pelos europeus mas por todas as civilizações e povos da terra.
Por todas, a começar por aquelas que hoje apontam o dedo acusador contra “os
brancos”.
O tráfico de escravos para a América
teria sido impossível, por exemplo, se, previamente, não houvesse vastas redes
de traficantes árabes e de alguns reinos indígenas africanos dedicados à
captura de alguns milhões de súbditos desgraçados no interior do continente,
justamente para depois os venderem aos negreiros ingleses, holandeses e
franceses que os esperavam na costa.
Não se vê mesmo por que
razão, portanto, a unânime condenação que hoje se abate sobre estes últimos não
deva estender-se também aos primeiros. No entanto, nunca vemos o dedo dos
activistas ou dos media ou de qualquer instituição universitária ocidental apontado
à civilização islâmica ou às culturas indígenas africanas que sofreram (e as
segundas ainda sofrem!!) a escravidão, nem mais nem menos do que a cristã e
americana em particular.
A verdadeira diferença (de resto decisiva)
esteve no facto que devido aos conhecimentos científico-técnicos de que a
civilização europeia foi, por quatro ou cinco séculos, a única a possuir,
dispôs de um poderio e de uma hegemonia que nenhuma outra civilização logrou
desfrutar. Mas é possível imaginar que, em condições análogas, o
reino do Daomé ou o bei de Tunes se teriam comportado de modo muito diferente?
2 Esta ausência de conhecimento e,
consequentemente, de sentido histórico, revelou-se absolutamente decisiva na
construção do paradigma da “vítima”, por seu turno basilar, seja pelo
nascimento como pela legitimação pública do “politicamente correcto”. De facto, isto é sentido como o justo
reconhecimento compensatório pelos erros sofridos no passado por quem pertença
hoje a um grupo sexual, social, étnico ou nacional (mulheres,
homossexuais, pretos, descendentes dos povos habitantes das ex-colónias) dos que foram objecto de semelhantes
erros.
Não só é evidente, todavia, que
na história assim como não existem ‘direitos’ tão-pouco existem ‘culpas’,
sobretudo quando relacionados com qualquer coisa de tão genérica como a cultura
ou a civilização – porque, de outro modo, seríamos obrigados a fazer a soma
algébrica de uns e de outros e, com o resultado, compilar uma grotesca
classificação final –, mas é verdadeiramente bizarro que o “politicamente correcto”, sabe-se lá
porquê, pareça sempre dizer respeito exclusivamente às culpas, às prepotências
e às discriminações que constelaram o passado europeu e nunca a quaisquer
outros.
Deveria
considerar-se, em suma, que na história não podem ter lugar os nossos critérios
morais actuais. Critérios
morais actuais que nós tendemos, pelo contrário, a projectar no passado: não só
porque do passado sabemos e entendemos sempre menos, mas também porque,
paradoxalmente, enquanto demonstramos grande inclinação para reconhecer a
legitimidade a quem pede ressarcimento pelos presumidos erros então sofridos,
por outro lado, e bem pelo contrário, estamos sempre mais propensos a agir como
se isso nunca tivesse acontecido, como se não tivesse havido consequências que
não podem ser canceladas de um dia para o outro.
Para
lá da ideologia do progresso, toda orientada para o futuro, outros impulsos,
igualmente fortíssimos, vão hoje em tal direcção. À frente de qualquer outra, parece-me, a irresistível jurisdização de cada vez maior
número de âmbitos da nossa vida quotidiana, com o proliferar de sempre novas
normas que, tanto psicológica como culturalmente, não fazem mais do que reduzir
continuamente não só o espaço do hábito e da tradição, mas, em geral, o peso de
qualquer coisa que seja “anterior”, de qualquer passado, ainda que muito
recente.
Não o é exclusivamente, mas a
actual e dominante jurisdização, fundada, obviamente, no princípio da igualdade
e com a sua produção em jacto contínuo de direitos, serve para radicar a ideia
absolutamente central na construção do “politicamente
correcto” – que qualquer acção ou comportamento, desejo ou modo de vida
de todo o indivíduo deva, necessariamente, tender a revestir a forma de um
“direito” e, naturalmente, ser tutelado juridicamente enquanto tal. Em particular no tocante ao âmbito dos relacionamentos
interpessoais e sexuais. Deste
modo, a obrigação do ressarcimento histórico e a dimensão do direito fundem-se
num dispositivo ideológico que tem do seu lado, a força invencível que sopra do
ar dos tempos.
Publicado
no Corriere della Sera de 3 de Abril de 2021. Ernesto
Galli della Loggia (1942) é historiador, académico e editorialista do jornal
italiano Corriere della Sera.
Tradução
de David Martelo – Abril de 2021
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