sexta-feira, 7 de maio de 2021

Rebaixamento virtuoso


 Das sociedades ocidentais, plenas de pruridos e de escrúpulos auto acusatórios, de gente elegante que difunde ideias igualitárias enquanto trabalha afanosamente e sofismadamente para uma cada vez maior desigualdade…

Um texto bem claro de Ernesto Galli della Loggia, publicado no Corriere della Sera de 3 de Abril de 2021, traduzido por David Martelo no seu excelente blog “A BIGORNA”. Com os meus agradecimentos a João Sena que mo enviou.

Mas conquanto concorde com a tese da tal ignorância – e não só da História – de uma sociedade que se movimenta hoje em redor de uma caixinha artificial, não já de Pandora, mas estigmatizadora e alienante - penso que o que move os destruidores – das estátuas e dos símbolos vários do passado atroz - para além da defesa dos princípios igualitários, custe o que custar, é mesmo sofisma: de falsa virtude, nos do politicamente correcto, de fúria destruidora nos agravados do presente, por conta de um passado que lhes foi imposto.

 

O NOSSO DELÍRIO SUICIDA                                                                                        

Ernesto Galli della Loggia

O que é que sucedeu para que se chegasse a aceitar, ou mesmo a muitas vezes promover, o derrube das estátuas de Colombo e de Churchill, considerando-os patifes inapresentáveis? A pensar que ensinar as obras de Homero, de Dante e de Shakespeare, ou a executar a música de Mozart, constituísse uma discriminação ofensiva para quem tem uma cor de pele diferente do branco? Para que se difundisse a ideia de que a nossa história não seja mais do que um cúmulo de erros e de horrores? De onde é que vem este delírio suicida do “politicamente correcto” que está a devastar a imagem que o Ocidente tem de si próprio, contribuindo para o paralisar ideologicamente no palco mundial?

As origens são muitas mas, na minha opinião, uma sobressai sobre as demais: a crassa ignorância da história – antes de mais da própria história – que, agora, invade as nossas sociedades. Um fruto, por sua vez, daquela revolução que se verificou, a partir da segunda metade do século passado, na formação escolástica e universitária, especialmente entre as elites políticas, mas não só: isto é, quando o direito e a economia lograram substituir o velho edifício de base histórico-humanística, tornando-se sempre mais o âmago do percurso formativo.

Entretanto, por outro lado, mesmo o direito e a economia se libertavam progressivamente do fundo histórico que, até então, tinha sido também o seu (veja-se, por exemplo, a progressiva marginalização das matérias históricas nas faculdades de jurisprudência).

Tudo isso significou que começámos a perder a dimensão do passado. Não só a ignorar os factos ocorridos, que já não é pouco, mas sobretudo a esquecer que o universo dos valores também é um universo histórico, o que quer dizer que é sujeito a modificações profundas com o passar do tempo.

Pelo que aquilo que hoje nos parece inconcebível – como a condição de inferioridade da mulher ou o trabalho infantil – dois ou três séculos atrás era coisa comummente aceite como a mais óbvia normalidade: tanto na nossa cultura como em qualquer outra do planeta. O mesmo se diga da tortura, da violência e da guerra. A conquista, a sujeição de outras populações, a sua redução à escravidão, foram, por séculos e séculos, por milénios, a regra universalmente seguida não só pelos europeus mas por todas as civilizações e povos da terra. Por todas, a começar por aquelas que hoje apontam o dedo acusador contra “os brancos”.

 O tráfico de escravos para a América teria sido impossível, por exemplo, se, previamente, não houvesse vastas redes de traficantes árabes e de alguns reinos indígenas africanos dedicados à captura de alguns milhões de súbditos desgraçados no interior do continente, justamente para depois os venderem aos negreiros ingleses, holandeses e franceses que os esperavam na costa.

 Não se vê mesmo por que razão, portanto, a unânime condenação que hoje se abate sobre estes últimos não deva estender-se também aos primeiros. No entanto, nunca vemos o dedo dos activistas ou dos media ou de qualquer instituição universitária ocidental apontado à civilização islâmica ou às culturas indígenas africanas que sofreram (e as segundas ainda sofrem!!) a escravidão, nem mais nem menos do que a cristã e americana em particular.

 A verdadeira diferença (de resto decisiva) esteve no facto que devido aos conhecimentos científico-técnicos de que a civilização europeia foi, por quatro ou cinco séculos, a única a possuir, dispôs de um poderio e de uma hegemonia que nenhuma outra civilização logrou desfrutar. Mas é possível imaginar que, em condições análogas, o reino do Daomé ou o bei de Tunes se teriam comportado de modo muito diferente?

 

 2 Esta ausência de conhecimento e, consequentemente, de sentido histórico, revelou-se absolutamente decisiva na construção do paradigma da “vítima”, por seu turno basilar, seja pelo nascimento como pela legitimação pública do “politicamente correcto”. De facto, isto é sentido como o justo reconhecimento compensatório pelos erros sofridos no passado por quem pertença hoje a um grupo sexual, social, étnico ou nacional (mulheres, homossexuais, pretos, descendentes dos povos habitantes das ex-colónias) dos que foram objecto de semelhantes erros.

Não só é evidente, todavia, que na história assim como não existem ‘direitos’ tão-pouco existem ‘culpas’, sobretudo quando relacionados com qualquer coisa de tão genérica como a cultura ou a civilização – porque, de outro modo, seríamos obrigados a fazer a soma algébrica de uns e de outros e, com o resultado, compilar uma grotesca classificação final –, mas é verdadeiramente bizarro que o “politicamente correcto”, sabe-se lá porquê, pareça sempre dizer respeito exclusivamente às culpas, às prepotências e às discriminações que constelaram o passado europeu e nunca a quaisquer outros.

Deveria considerar-se, em suma, que na história não podem ter lugar os nossos critérios morais actuais. Critérios morais actuais que nós tendemos, pelo contrário, a projectar no passado: não só porque do passado sabemos e entendemos sempre menos, mas também porque, paradoxalmente, enquanto demonstramos grande inclinação para reconhecer a legitimidade a quem pede ressarcimento pelos presumidos erros então sofridos, por outro lado, e bem pelo contrário, estamos sempre mais propensos a agir como se isso nunca tivesse acontecido, como se não tivesse havido consequências que não podem ser canceladas de um dia para o outro.

Para lá da ideologia do progresso, toda orientada para o futuro, outros impulsos, igualmente fortíssimos, vão hoje em tal direcção. À frente de qualquer outra, parece-me, a irresistível jurisdização de cada vez maior número de âmbitos da nossa vida quotidiana, com o proliferar de sempre novas normas que, tanto psicológica como culturalmente, não fazem mais do que reduzir continuamente não só o espaço do hábito e da tradição, mas, em geral, o peso de qualquer coisa que seja “anterior”, de qualquer passado, ainda que muito recente.

Não o é exclusivamente, mas a actual e dominante jurisdização, fundada, obviamente, no princípio da igualdade e com a sua produção em jacto contínuo de direitos, serve para radicar a ideia absolutamente central na construção do “politicamente correcto” – que qualquer acção ou comportamento, desejo ou modo de vida de todo o indivíduo deva, necessariamente, tender a revestir a forma de um “direito” e, naturalmente, ser tutelado juridicamente enquanto tal. Em particular no tocante ao âmbito dos relacionamentos interpessoais e sexuais. Deste modo, a obrigação do ressarcimento histórico e a dimensão do direito fundem-se num dispositivo ideológico que tem do seu lado, a força invencível que sopra do ar dos tempos.

 

Publicado no Corriere della Sera de 3 de Abril de 2021. Ernesto Galli della Loggia (1942) é historiador, académico e editorialista do jornal italiano Corriere della Sera.

Tradução de David Martelo – Abril de 2021

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