Sobre Joe Biden. Além de que,
claros e lúcidos. De Teresa de Sousa e de Nuno Severiano Teixeira, a deste
último, na referência às medidas económicas e sanitárias de Biden, assemelhando-se a uma história de
fadas.
I ANÁLISE : Biden, um radical? Não. Apenas alguém que
compreendeu o seu tempo
No último ano, o debate sobre a
reforma do capitalismo juntou-se ao debate sobre a reforma da democracia.
TERESA DE SOUSA PÚBLICO, 2 de Maio de 2021
1. Joe
Biden tem uma agenda profundamente reformista, disso não há hoje a menor
dúvida. A visão que tem sobre o futuro da América é profundamente
transformadora. Mas,
se insistirmos em olhar para os seus primeiros 100 dias na Casa Branca a partir
dos rótulos e dos conceitos políticos com que nos habituámos a pensar nos
últimos 40 anos, talvez não seja possível avaliar com justeza aquilo que ele
representa. Creio que
a chave para entender Biden está, provavelmente, no momento em que ele chega ao
poder. O mundo viveu
duas crises profundíssimas em pouco mais de uma década. A crise financeira de 2008, que fez
implodir o coração do sistema financeiro internacional e que contagiou o mundo
inteiro. A
crise pandémica, que pôs em evidência alguns dos maiores defeitos
estruturais do sistema capitalista que vigora nas democracias liberais.
2. Há
40 anos, Reagan e Thatcher foram os
pais de uma profunda revolução conservadora, que libertou as economias
desenvolvidas do Ocidente dos excessos e dos constrangimentos de um Estado
demasiado pesado, demasiado interventivo na economia e na vida das pessoas,
demasiado dependentes de sindicatos com força para defender os direitos
adquiridos contra qualquer ideia de mudança. O chamado neoliberalismo nasceu
dessa revolução conservadora que colocava muito maior responsabilidade nas
escolhas individuais, privatizava sectores inteiros da economia, libertando-a
do excesso de regulamentação, confiava aos mercados a distribuição dos
recursos, ao mesmo tempo que reduzia drasticamente os impostos (muito elevados)
das empresas e da riqueza. O
corte foi mais radical no Reino Unido e nos Estados Unidos, embora
em ambos os casos as conquistas sociais mais importantes tenham sido
preservadas. As
democracias europeias do continente acabaram, elas próprias, por reformar os
seus generosos modelos sociais por razões de sustentabilidade, mas também
devido a uma forma diferente de olharem para alguns direitos adquiridos. Clinton, Blair e, depois deles, a generalidade dos partidos
socialistas e sociais-democratas europeus adaptaram os respectivos programas
às virtudes da economia de mercado e do liberalismo económico, pondo a tónica
na educação e na formação para combater as desigualdades e garantir a igualdade
de oportunidades.
Mas, como quase sempre acontece, os efeitos perversos destas mudanças
transformadoras acabaram por tomar conta do sistema. As
desigualdades aumentaram brutalmente, incluindo nos países mais igualitários.
Os rendimentos das classes médias viram-se “espremidos” e estagnados pela
desindustrialização acelerada e pelos novos empregos nos serviços, parte deles
precários e mal pagos, compensados durante algum tempo pelo crédito fácil e
barato que lhes permitia alguma ilusão de bem-estar. Os mercados financeiros libertaram-se da economia
real e criaram uma bolha sem princípio nem fim, a chamada “economia de casino”,
que acabou por explodir em 2008, com as consequências que conhecemos no sistema
financeiro e na economia da maior potencia mundial.
3. Na crise
de 2008, foram os Estados (ou seja, os contribuintes) que salvaram a banca. Chegou a haver
um rebate de consciência política sobre a necessidade de corrigir os excessos
dos mercados e perder dois minutos a pensar se o seu funcionamento o mais livre
possível era a forma mais inteligente de distribuir recursos. Todos ainda nos
lembramos da célebre confissão
de Alain Greenspan no Congresso americano, reconhecendo que se tinha
enganado sobre a racionalidade dos mercados. Muita gente, nas democracias mais desenvolvidas,
pagou duramente os custos desta crise, que deu origem a uma Grande Recessão, que
só não se
transformou numa Grande Depressão graças
aos mecanismos de intervenção e almofadas sociais criados pelos Estados depois
da guerra. No entanto,
quando tudo voltou progressivamente à velha normalidade, descontando a
correcção de alguns excessos com mais regulamentação dos mercados financeiros,
as verdades anteriores foram rapidamente recuperadas. As profundas
desigualdades sociais não foram nem de perto nem de longe corrigidas. Os níveis
de precariedade mantiveram-se, como se manteve o empobrecimento relativo de boa
parte das classes médias. Mas, sobretudo, a luta pela competitividade económica
entre países não alterou as suas regras fundamentais, a primeira das quais a
“corrida para o fundo” dos impostos aplicados sobre os lucros, as mais-valias e
os ricos. O debate existia, mas não tinha força para alterar o curso das
coisas. A globalização económica reduzia drasticamente a margem de manobra dos
governos nacionais.
As
consequências políticas da Grande
Recessão, essas,
conhecemo-las bem. A força do populismo, do nacionalismo e da demagogia
ganharam fôlego inesperado e foram ocupando o terreno político das democracias
liberais. De Berlusconi a
Trump, passando pela segunda
vida da Frente Nacional de Le Pen e incluindo as democracias mais igualitárias e
protectoras da Europa do Norte.
4. A pandemia foi um grito de alarme. Sobre a vulnerabilidade
humana, incluindo nas sociedades mais ricas e mais avessas ao risco. Sobre o
papel fundamental que desempenham pessoas quase invisíveis a troco de salários
irrisórios. Sobre a ideia de pertença, não apenas a uma comunidade
nacional, mas à comunidade humana. Sobre as desigualdades e a falta de
oportunidades. Sobre o papel fundamental do Estado. No último ano, o debate sobre a
reforma do capitalismo juntou-se ao debate sobre a reforma da democracia. Nas páginas dos jornais mais liberais, como nos debates
dos think-tanks e nas academias, foram caindo tabus. Os parâmetros do debate intelectual mudaram, como
tinham mudado antes da revolução conservadora dos anos 1980. Faltava o
salto para o domínio da política. Joe Biden tomou em mãos a tarefa, conseguindo surpreender-nos
quase todos os dias. Não é um radical nem nunca foi, ao longo da sua vida
política de quase 50 anos. Teve a visão para compreender o seu tempo, a ambição
de querer transformá-lo e a audácia de o fazer, assumindo todos os riscos que
essa transformação necessariamente comporta. Precisamente
na democracia mais poderosa do mundo, o que lhe dá uma força transformadora que
vai muito para além das fronteiras da América.
Não
se trata de estar de acordo com todas e cada uma das suas políticas. Trata-se
de entender o seu sentido e os seus objectivos. Por que razão a democracia mais
antiga e mais poderosa do mundo deve aceitar desigualdades sociais enormes,
condenar uma minoria de origem africana à condição de cidadãos de segunda,
considerar que a liberdade de cada um é incompatível com uma rede universal
abaixo da qual ninguém deve cair, ou que os muito ricos (1 por cento que detém
20 por cento da riqueza produzida) não podem pagar impostos mais altos? Convém, além disso, olhar para a realidade com a
devida atenção. A subida do
IRC, que Biden defende para financiar mais
apoios sociais, dos 17 fixados por Trump (o valor mais baixo de que há memória)
para 28 por cento, deixa este imposto ainda abaixo do nível a que estava nos
mandatos de Obama e de Bush, e muito abaixo de Reagan ou de Clinton. Pergunta seguinte: como vão reagir os
americanos? Um vasto
inquérito da Pew Research nas quatro grandes economias ocidentais (EUA, Reino
Unido, França e Alemanha), publicado
em Abril, revela várias coisas interessantes. Por exemplo, em
qualquer destes países uma maioria considera que o sistema económico tem de
mudar muito ou bastante, dos 70% de franceses, aos 50% de americanos,
britânicos e alemães. Em que sentido? Maiorias nos quatro países
consideram que deve haver mais apoio do Estado à formação
profissional, à construção de habitação social, aos mais pobres, bem como um
aumento dos impostos sobre os mais ricos. As percentagens nos EUA não divergem
fundamentalmente das europeias. Nada disto é surpreendente. Vivemos,
provavelmente, o fim de uma era e o início de outra, prosseguindo o caminho das
reformas que é parte essencial da vitalidade das democracias capitalistas. Biden pode ser o improvável protagonista desta mudança.
Tem uma oportunidade. Quer aproveitá-la. É um visionário. Não é um radical. Se
tiver sucesso, a humanidade talvez possa encarar o futuro com alguma esperança.
TÓPICOS: OPINIÃO ESTADOS UNIDOS JOE BIDEN DONALD TRUMP EUROPA EUA REINO UNIDO
COMENTÁRIOS:
Artur Silva EXPERIENTE: Concordo com o essencial da análise do passado
sócio-económico-político das últimas décadas. Sobre o papel do Biden, acho que
ainda é cedo para avaliar e espero para ver…. O artigo ganhava muito caso se
centrasse nisso e não no Biden. zav60.911576 EXPERIENTE: O que o capitalismo/democracia liberal tem de bom é,
por intermédio dos seus media, conseguir dar-nos a falsa esperança de que a
tendência crescente para nos transformar em quase escravos, às vezes sofre
alguns recuos: «A subida do IRC, que Biden defende para financiar mais apoios
sociais, dos 17 fixados por Trump (o valor mais baixo de que há memória) para
28 por cento, deixa este imposto ainda abaixo do nível a que estava nos
mandatos de Obama e de Bush, e muito abaixo de Reagan ou de Clinton»… e não é por
acaso que a Teresa de Sousa resolveu quedar-se no Reagan. A verdade é que a
tendência, desde os anos 70, da “subida do IRC” nas presidências democratas
nunca conseguiram repor as “descidas” adoptadas pelos republicanos. mendescostamj. 945505 INICIANTE: Texto muito bom e que valeu muitíssimo a pena ler.
Obrigada T.S pela clareza na análise e avaliação da política nos USA que se
reporta também a vivências nossas aqui em Portugal e na União EUropeia. Nortuguês EXPERIENTE: Oxalá Biden consiga atenuar esta mentalidade liberal
que ficou de Reagan e Thatcher. Mas com os nazis-republicanos ainda com tanto
peso não vai ser fácil. AARR EXPERIENTE: América, América, América! Que arrogância na qual todos
acabamos por alinhar. Os outros americanos que não vivem nos Estados Unidos são
cidadãos de segunda ou de terceira? Não tenho dúvidas que implicitamente é isso
que pensa uma maioria dos políticos e do povo nos Estados Unidos. Mas nós não
devíamos alinhar nisso e aceitar essa arrogância e esse desprezo pelos
restantes americanos. Níqui INFLUENTE: Eu também não entendo, eu não tenho nada a ver com os
americanos. Mas o pensamento dos portugueses não é surpresa, primeiro é um país
pobre e com complexo de inferioridade, por isso sempre olha para nórdicos,
pinta se o cabelo loiro etc. Por não falar da tv, onde o Paulo Portas por
exemplo tem um quarto de hora na TVI cada domingo, e francamente parece o
embaixador dos EUA, sempre a elogiar os americanos e a falar mal dos chineses.
Independentemente dos seus erros intelectuais na análise. Essa admiração do
Biden parece-me bastante absurda e infantil (tal como era no caso do Obama, ele
também foi o contrário do que tanta gente pensava). Só porque está a copiar
alguns programas da China (investimento na educação, ciência etc.), não
significa que os EUA mudem. Os EUA são reféns da sua constituição antiquada.
Parece que a autora nunca ouvi do plano Biden, que já causou tanta pobreza na
América Latina e por isso a migração recente. O team do Biden está cheio dos
mesmos criminosos que já fizeram parta do team do Obama. Nada mudou. Não
importa quem é presidente dos EUA, sempre será um crápula. Está no dna dos EUA,
é um país horrível, o resultado de democracia num país cujo povo não presta. Roberto34 MODERADOR: Mais uma excelente análise. Sem dúvida que Biden tem
sido uma boa surpresa. Existe aqui uma excelente oportunidade para a UE e os
EUA moldarem a economia e a sociedade.
Rita Cunha Neves EXPERIENTE: Teresa de Sousa, uma vez mais, a revelar-se como uma
das boas razões para que eu continue a ser assinante deste jornal. Claro que
não concordo com tudo o que diz, mas na verdade diz coisas muito importantes.
Não concordo, por exemplo: i) que não valorize nas políticas actuais de Joe
Biden a influência que terá tido os compromissos que foi obrigado a fazer para
a sua eleição com os sectores mais à esquerda do PD; ii) que seja demasiado
benevolente com a chamada revolução conservadora de Reagan e Thatcher, ao
enfatizar que esta procurou libertar sectores inteiros da economia do excesso
de regulamentação, quando na realidade o que fez foi destruir alavancas
fundamentais do estado social iii) que afirme que os rendimentos das classes
médias viram-se “espremidos” e estagnados pela desindustrialização acelerada e
pelos novos empregos nos serviços, subvalorizando o desprezo total do
neoliberalismo pelas pessoas ao tratar o trabalho como mercadoria e os direitos
públicos básicos como sectores de mercado emergentes para o lucro; iv) que não
lembre que afinal o que diziam e dizem “malucos radicais” tem de ser tido em
linha conta e que a maior parte dos dogmas neoliberais que nos andaram a vender
nos últimos 30 anos não passam de uma falácia. M Cabral
INICIANTE: Excelente síntese. Carlos Fonseca EXPERIENTE: Lúcido e brilhante, como sempre. TS revela um
conhecimento profundo do passado e do presente da política, ou melhor, da
macropolítica a nível mundial. Quanto á demonstrada ineficácia económica e
social do neoliberalismo, TS dá uma aula soberba ao JMT, ao Cotrim e aos
'observadores' que estão na medra. Rebelde INFLUENTE: Leu bem? Belo
artigo. Armando Heleno INFLUENTE: Quem quiser estar actualizado não necessita de ler
grandes compêndios, basta acompanhar, aqui no Público a Srª Drª Teresa de Sousa
e fica com matéria para longas conversas com os amigos. GMA EXPERIENTE: Espera-se que o amorfismo em que a UE, a nossa Europa,
parece mergulhada (que outra coisa seria quando um burocrata menor como o Sr.
Charles, está no topo da pirâmide, qual representação real do Princípio de
Peter?) não deixe o Presidente sem o parceiro deste lado do Atlântico. Roberto34 MODERADOR: Charles Michel não tem grande poder. Neste aspecto
Úrsula tem muito mais poder porque gere o poder executivo da UE. Charles Michel
apenas gere os assuntos do Conselho Europeu. Mas o que mais precisamos é de
realmente uma Federação Europeia. GMA EXPERIENTE: Caro Roberto, não se trata apenas de poder; trata-se
também, e talvez sobretudo, de exemplos que determinam a confiança, as
percepções. E sabe-se o peso destas. Roberto34 MODERADOR: Sim tem toda razão. Não desvalorizo obviamente o peso
do exemplo e das percepções.
Jonas Almeida INICIANTE: Um artigo em cheio! Como insiste TdS aqui uma 2a vez,
Biden percebeu bem o papel que a História lhe estende: pôr o neoliberalismo na
gaveta na América. A razão é simples, não há nem democracia, nem justiça, nem
prosperidade nesse caminho. Daqui sugiro o salto para a análise do império
neoliberal que persiste cada vez mais extremo, pelo director emérito do
Instituto Max Plank para o estudo da sociedade, em Colónia, Wolfgang Streeck,
no Le Monde Diplomatique, "Democracy a challenge to the European project -
The EU is a doomed empire". Começa assim "What is the European Union?
The closest concept I can come up with is a liberal empire, or better, a
neoliberal one." ... e segue daí, a análise incontornável a recordar o que
devíamos estar fartos de saber. Roberto34 MODERADOR: Se os EUA com Biden deixarão de ser um império
neoliberal (ainda se está para ver). E se a UE é realmente um império
neoliberal, então também o pode deixar de ser, elegendo os políticos adequados.
Mas não se preocupe porque a UE não é nenhum império e muito menos sob o jugo
neoliberal. A forma como a UE está lidar com esta crise é muito diferente da
forma como lidou com a crise anterior, desde logo pelo facto de se ir financiar
aos mercados para financiar a recuperação e a resiliência da sociedade Europeia,
algo impensável em 2012. A além disso, a UE não é nenhuma entidade divina, os
seus líderes são eleitos e portanto cabe sempre aos cidadãos Europeus ditar o
rumo da UE. Se não gosta daquilo que os cidadãos Europeus estão a fazer, fique
pelos EUA. Catarina Fiolhais INICIANTE: Coitado do pobre Joe! Como se o próprio tivesse alguma
noção do que faz ou diz ou daquilo que estas 'análises' de profunda sagacidade
dizem que ele é e faz. Louvo-lhe o esforço evidente que faz para tentar
conseguir ler em público e assinar o que lhe mandam. Um mero homem de palha e
joguete nas mãos da ultra extrema-esquerda e dos interesses dos gigantes
complexos industriais e comerciais americanos que, curiosamente, a financiam.
Se o presente tempo, na américa, é de alguém, é precisa e exclusivamente desses
abutres e extremistas. Só se foi isso que o pobre do Joe compreendeu, mas a
mera suposição de tal é por si só algo já amplamente abusivo. O que se
esperaria de análise séria, era um certo grau de pudor na efabulação doutrinante
e respeito mínimo pelo próprio pobre do Joe. GMA EXPERIENTE: "Iniciante" mas não em petulante arrogância,
esta Sra. Catarina, saudosista, já se vê, do "loiro" do QAnon. viana EXPERIENTE: Sempre a destilar ódio, é assim que "vive" a
extrema-direita. Na verdade, este comentário é um excelente presságio.
Demonstra que o que se está a passar nos EUA é mesmo a implementação duma
agenda progressista, com claro apoio popular. À extrema-direita só resta assim
continuar a rebolar--se na sua própria porcaria, mentindo descaradamente, e
tentando por todos os meios impedir que a Democracia funcione. Impedir o voto
de quem deles discorde. Porque se sabem minoritários, cada vez mais. Mas
acham-se no direito de mandar nos outros. Acabou. Podem espernear e gritar o
que quiserem. JLourenço INICIANTE: Mais um episódio de delírio trumpista ? à maneira da
Catarina Fiolhais. Luis Escudeiro INICIANTE: Teresa de Sousa, acho que fez uma boa análise de
conjunto e do improvável e até surpreendente papel de Joe Biden. Um alívio
depois de Trump.
II - OPINIÃO: Biden saiu melhor que a encomenda
Na política internacional, como na
política interna, Joe Biden pode marcar o início da era pós-pandémica e da
reinvenção necessária do capitalismo e da democracia.
NUNO SEVERIANO TEIXEIRA PÚBLICO, 5 de Maio de 2021
Durante a campanha eleitoral muitos
disseram que Biden estava cansado e fraco. Que seria um Presidente de transição
e que não deixaria marca na política americana. A sua única função seria abrir
o caminho à presidência de Kamala Harris. No fim do mandato ou, quiçá, a meio
do próprio mandato. Enganaram-se, redondamente. E os 100 dias de Biden,
Presidente, mostraram o contrário. Primeiro, Biden superou não só todas as
expectativas, como os próprios objectivos de curto prazo definidos no discurso
de posse: na luta contra a pandemia e na recuperação da economia.
Segundo, o discurso
dos 100 dias não só inscreveu uma marca política forte como
parece ter um significado de longo prazo: na política interna como na política
externa. Vamos por partes.
Primeiro, a pandemia. Durante a
campanha eleitoral, Biden prometeu uma ruptura total com a atitude errática e
populista de Trump sobre a crise pandémica. E quando chegou à presidência
levava já um plano definido de combate à pandemia que pôs em prática de
imediato: uso obrigatório da máscara e um ambicioso plano de vacinação em
massa. Anunciou um milhão de
vacinas por dia e que chegaria aos 100 dias com 100 milhões de vacinados.
Vacinou dois milhões por dia e os Estados Unidos têm hoje mais de 243 milhões
de americanos vacinados de todas as idades. Isto é, quase 50% da
população americana. Na luta contra a pandemia, Biden ultrapassou todas
as metas. E anunciou para o 4 de
Julho, o dia da festa nacional americana, a imunidade de grupo. Mas não
foi menos rápido nem menos ambicioso na recuperação da economia. Fez aprovar no Congresso, com o apoio de
democratas e republicanos, um Plano de Estímulo à Economia no
valor de 1,9 triliões de dólares. O que, somado aos pacotes anteriores, atinge,
no seu conjunto, um valor de mais de 4 triliões de dólares. Injectados
directamente na economia americana: nos Estados, nas empresas e nas famílias,
que receberam na sua conta bancária 1400 dólares por pessoa do agregado
familiar. A dimensão do montante, a rapidez do processo e a injecção
directa do financiamento, associadas ao dinamismo do tecido empresarial
americano, puseram a economia a funcionar: criaram
1.3 milhões de empregos e as taxas de crescimento previstas só são comparáveis
às da era Reagan (6,4% em 2021, segundo o FMI).
Mas estes eram, apenas, os objectivos
de curto prazo. Porém, o discurso dos 100 dias parece projectar uma
marca histórica no longo prazo. Primeiro, na política interna.
Concretizado o Plano de Estímulo à Economia, Biden anunciou mais dois planos
num total de 4,1 triliões de dólares e com enorme impacto económico e
social: um Plano para as Infra-estruturas, destinado à
construção e revalorização das infra-estruturas e criação de emprego, e um Plano Família para garantir dois anos de pré-escolar
gratuito, estender a escolaridade obrigatória para os 14 anos, apoiar as
universidades públicas e financiar licenças de apoio à família.
Tudo
isto obrigará, certamente, ao aumento da despesa pública. Mas, afirma Biden,
não será feito nem à custa do aumento do défice nem à custa da classe média.
Será pago com um aumento de impostos sobre os mais ricos.
Os mais ricos, esclareça-se, são os que têm um rendimento anual superior a 400
mil dólares (332 mil euros) e que pagarão uma taxa máxima de 39,6%.
Mas que significado político terão estas
medidas? Primeiro, o regresso do Estado à economia e, segundo, a luta
contra as desigualdades e a marca social das suas políticas públicas. Biden pode
vir a ser o Presidente mais rooseveltiano desde Roosevelt. Segundo,
na política externa. Era óbvio que a política externa de Biden significaria uma
ruptura com a America First de Trump. Mas muitos pensaram que
seria apenas uma espécie de Obama 2. Ora, o que os 100 dias da
administração Biden mostraram é que também estes estavam enganados. Biden
percebeu que o mundo mudou e que a hegemonia americana, ontem incontestável, é
hoje disputada pelas potencias autoritárias. Trouxe de volta os princípios e os
valores tradicionais da ordem liberal americana: o reforço das instituições
multilaterais; a revitalização das alianças; e a defesa da democracia e dos
direitos humanos. Mas percebeu que não
perder a liderança global e garantir uma ordem liberal e democrática obriga a
uma outra política externa: mais assertiva e mais robusta. Na política
internacional, como na política interna, pode marcar o início da era
pós-pandémica e da reinvenção necessária do capitalismo e da democracia.
Professor catedrático da
Universidade Nova de Lisboa; director do Instituto Português de Relações
Internacionais
Nenhum comentário:
Postar um comentário