Edifício mistificatório, puro brinquedo
juvenil, consequência de uma quarentena propícia ao rebuscamento tortuoso de uma
hipótese de conserto irreal e vistoso, que outros criaram e se pretende
repescar numa arrogância tonta, de seguidismo literário poético que fez as suas
épocas, com Vieira e Pessoa, prova de desassossego e também vaidade, então como
agora, mas que não deixa de repousar na eterna apatia para uma efectiva capacidade
de trabalho honesto e racional que decididamente nos define. Trata-se de
seriedade, não de laracha pedante, o apelo à reconstrução.
O findoísmo, o novo sebastianismo português
Não estando na origem desta crise, o capitalismo estará na génese da sua cura através
da ciência, partilha de informação e cooperação entre Estados, que só o
capitalismo consegue eficazmente potenciar
JOSÉ MIGUEL GOMES
CAMPOS COSTA
OBSERVADOR, 02 mai
2020
Tido
como desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578, D. Sebastião deixou um legado profético aos portugueses, uma
herança destinada a perdurar mais do que a vida do jovem rei, a ir, também,
além dela em termos de simbolismo e significância no nosso imaginário colectivo.
Como
impacto de efeito imediato, emergiu a miragem de um regresso nobre e
salvador de D. Sebastião, irrompendo por uma ainda hoje famosa manhã de
opaco nevoeiro, qual panaceia não só para os problemas advindos do seu
desaparecimento, mas também para os defeitos do Reino, que na segunda metade do
século XVI já não se revestia da opulência e grandiosidade das primeiras
décadas desse século. O Reino perdera, então, o paladino da sua esperança,
o jovem líder de uma nova geração, trilhando caminho para o que viria a ser
uma nova panóplia de dívidas e o domínio castelhano a partir de 1580, com
a dinastia filipina, até 1640.
Esta imediata reacção, expectante do
regresso do Rei-Salvador, foi sendo continua e misticamente nutrida até se
transformar num messianismo mirabolante e miraculoso, catapultado pelo Padre
António Vieira e genialmente reconstruído, ou recapturado pelo sempre genial
Fernando Pessoa na sua Mensagem.
Ambos tenderam para uma interpretação sebastiânica da História de Portugal,
diferente em forma e conteúdo, ainda que sob a mesma cúpula: a
preconização do Quinto Império, lusitanamente capitaneado. Fernando Pessoa,
entre muitos outros, deu voz a este Quinto Império teorizado pela Renascença
Portuguesa, almejando um patriotismo esquecido, perdido num campo de batalha
numa praia africana, um reinado além-material: um império espiritual e
civilizacional. “Grécia, Roma, Cristandade,/ Europa – os quatro
se vão/ Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade/ Que morreu D.
Sebastião?”, escreve Fernando Pessoa na Mensagem,
no papel de estafeta que nos vem apresentar um regenerado culto messiânico.
À
semelhança do que aconteceu na passada crise financeira, vimos
reunirem-se, como consequência da pandemia que temos vivido, as condições
fundacionais – insatisfação com a situação política actual e um desejo de
mudança, de salvação face ao actual panorama sanitário – para que o camaleónico sebastianismo português
se metamorfoseie uma vez mais. Metamorfose essa copiosamente defendida e
proclamada pelas inúmeras vozes que pressagiam o “fim do capitalismo” ou o
“fim do neoliberalismo”, derivado do surgimento e expansão da COVID-19.
O sebastianismo é, assim, incorporado no contemporâneo findoísmo. Os sebásticos findoístas, que fitam “com
olhar sphyngico e fatal,/ O Occidente, futuro do passado (…)”, parecem ter como Quinto Império o
ressurgimento de um passado fausto, um passado heróico onde o capitalismo não
tivera espaço para se enraizar e crescer, e se desdobrar nas suas consequências
nefastas, como, por exemplo, o notório aumento da qualidade de vida do ser
humano, em termos gerais, e a promoção da sua liberdade política, social,
económica, de circulação, e tantas outras. O sistema
capitalista vigente tem bastantes falhas, conhecidas e apontadas, mas
certamente não terá sido a causa desta crise sanitária, ainda que tenha
acelerado a sua inevitável expansão através do seu carácter globalista. Inevitável, entenda-se, para quem não tem em especial
apreço um regresso a um passado mais limitado às fronteiras do país em que
nascemos, mais limitado às restrições dos berços. Não estando na origem desta crise, certamente o capitalismo
estará na génese da sua cura, através da ciência, partilha de informação e
cooperação entre Estados. Vectores
que, dentro das actuais hipóteses, só o capitalismo consegue eficazmente potenciar.
Verificamos, portanto, o findoísmo seguir a nuance patente em todos os mitos: a derrota do racional perante o emocional, a
adopção da crença em detrimento da razão.
Os
findoístas repescam o Mostrengo, o tal “(…) mostrengo que está no
fim do mar/ Veio das trevas procurar/ A madrugada do novo dia/ Do novo dia sem
acabar.”. Com o fim do capitalismo, e que mar
o é o capitalismo!, excitam-se com
a aurora desse novo dia eterno, anacrónico, iniciado com as badaladas que
indelevelmente comuniquem a morte do neoliberalismo, a morte da possibilidade
de uma liberdade plena, a morte do píncaro da independência dos indivíduos face
a um poder fortemente centralizado.
As badaladas têm vindo a ser anunciadas em vários momentos da história moderna
(e o seu apelo surgirá provavelmente em muitos outros no futuro), mas não
foram, felizmente, ainda cumpridas. Outras distintas vozes têm tido,
recentemente, um palco maior em Portugal: vozes conscientes da imperfeição do
sistema atual capitalista e das desigualdades que inflige ainda a demasiada
gente, em demasiados lugares. Vozes que, não obstante, urgem a uma maior
liberdade, acreditando que “Deus ao mar o perigo e abysmo deu,/
Mas nelle é que espelhou o céu.” Mar esse que
só poderá ser cruzado tendo como nau a liberdade. A liberdade, a “voz
da terra ansiando pelo mar.”
Como
é tradicional nos mitos, o sebastianismo, defronte de momentos históricos
pautados por uma crise substantiva, adapta-se a essa realidade do presente e
adquire a forma de uma esperança mapeada num futuro menos sofrível, mais justo
e abundante. Os findoístas justamente construíram a sua visão.
Eu desejo, na mesma onda, que “(…) outra vez conquistemos a Distância (…)”, mas
que vençamos esta Distância, o confinamento, a pandemia e o momentâneo poder
acrescido do Estado para a combater sem a isso nos habituarmos, sem disso
ficarmos dependentes.
“Que jaz no abysmo
sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.”
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.”
Desejar
poder querer mais liberalismo. Desejar não o fim do capitalismo, mas o seu
melhoramento.
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