Um belo texto de João Carlos Espada, sobre a
história política e social dos últimos tempos. Um prazer de leitura, de uma
crónica de rigor, não despida da subjectividade dos bons princípios.
Lenine e outros bárbaros/premium
O alvo comum das barbáries comunista —
que impõe limites imparciais ao poder da vontade sem entraves, fascista e nazi
foi a tradição moral ocidental
Receio (mas não lamento) ter de admitir que
não sabia dos 150
anos do nascimento de Lenine, ao que parece registados no passado dia 22 de Abril.
Fiquei a saber pela imprensa que muitos assinalaram o aniversário do que
consideraram uma personalidade maior — uns porque concordam com o comunismo
que ele na prática inaugurou, outros porque, embora discordando dele, lhe
atribuem a génese da resposta do fascismo e do nazismo.
Receio (e de novo não lamento) ter de
discordar dos dois pontos de vista. A meu ver, Lenine foi um fanático menor e
semi-educado, fruto das grandes superstições ideológicas anti-ocidentais e
anti-liberais (de sinal político contrário) que emergiram na segunda metade do
século XIX — e que se transformaram no ópio dos intelectuais e dos
“desesperados” da primeira metade do século XX.
Essas duas
grandes superstições ideológicas anti-liberais foram o historicismo ateu de Marx e o niilismo
ateu de Nietzsche — em bom rigor,
como argumentou Leo Strauss, ambos devedores do doentio igualitarismo (também ateu) de Rousseau (tema que
terá de ficar para outra ocasião).
Marx e Nietzsche declararam solenemente ter
descoberto a relatividade (ou relativismo) de todos os valores. Segundo eles, todos os valores são apenas crenças
geradas pela época histórica em que as pessoas vivem. Não há, por isso, valores objectivos, ou supra-pessoais, de bem e
de mal, de verdade e erro, de decência e indecência. Tudo é relativo. Em Marx, tudo é relativo aos interesses de classe e ao
determinismo das chamadas “leis
científicas do desenvolvimento histórico” (em rigor, uma pura superstição oracular, como Karl
Popper demonstrou). Segundo essa superstição positivista, na época da
emergência do capitalismo os interesses e valores da burguesia eram
historicamente legitimados. Na época da emergência do socialismo colectivista,
os interesses e valores do proletariado são os valores certos, porque
historicamente legitimados. Daí que a revolução
e a “ditadura
do proletariado” fossem não só legítimas como
necessárias, uma vez que exprimiam a
etapa histórica inevitavelmente sucessora da “ditadura
capitalista” (que, sabe-se lá porquê, se apresentara como democracia pluralista
parlamentar).
Em Nitezsche, o relativismo foi de certa forma ainda mais radical. Tal como Marx, Nieztsche
declarou que não há bem nem mal objectivos; mas, diferentemente de Marx, não
aceitou que bem e mal fossem determinados pela época histórica (o que
considerou ser mais uma ilusão). Ser capaz de ver “para além do bem e do mal” seria
então a atitude distintiva dos “homens superiores”, em contraste com as pessoas
comuns, que ainda acreditavam no bem e no mal. E esses “homens superiores” (unicamente capazes de “olhar sobre o abismo” da
ausência de valores) iriam descobrir que afinal apenas existia uma “lei objectiva” — aquilo que Nietzsche
detestavelmente classificou como “vontade de poder” (“onde quer que encontre vida, encontro vontade de
poder”, foi a demente e vulgar máxima de Nietzsche, doentiamente citada e
aplicada pelo rude primitivismo nazi). Em
termos políticos, o alvo comum do relativismo ateu de Marx e do
niilismo ateu de Nietzsche foi a sociedade
livre, parlamentar, comercial e descentralizada — que eles ardentemente
denunciaram como sendo fundada na “ilusão moralista do mundo
burguês”, gerada pelo escrúpulo moral da cortesia (também
conhecida por “gentlemanship”) e ancorada na moral e religião judaica e cristã.
Foi em nome desta revolta comum
contra a ordeira e tranquila ordem liberal que o bolchevismo, o fascismo e o
nacional-socialismo nazi lançaram uma ofensiva ardente contra a civilização
ocidental.
Em certas paragens peculiares (em regra pouco
familiarizadas com o usufruto da experiência “capitalista” e liberal)
intelectuais semi-educados e asperamente ressentidos como Lenine, ex-socialistas como Mussolini, e simples marginais
desesperados como Hitler usaram habilmente o seu ódio à decência parlamentar
liberal para incendiar paixões populares fundadas na mais vulgar doença
igualitária da inveja. Vanguardas revolucionárias
destruíram sem piedade as velhas elites conservadoras e moderadas — que denunciaram
como “oligarquias” opressoras dos “trabalhadores”.
No lugar daquelas velhas elites parlamentares,
moderadas pelo escrúpulo moral cristão e por constituições mais ou menos
liberais, foi então instalado o poder dos “camaradas” em nome do “povo” — o poder
nu, sem entraves, sem “preconceitos”… e sem vergonha.
Na economia, o inimigo dos desesperados comunistas, fascistas e nazis era o chamado
“capitalista”. Ele representava tudo o que os “camaradas” odiavam: o espírito moderado
do comércio, a independência e pluralismo da propriedade privada, a disciplina
auto-consentida de regras mercantis impessoais que os “camaradas” não
conseguiam controlar e comandar. Os “camaradas” ostensivamente odiavam a “mão
invisível” do mercado de Adam Smith — basicamente porque não
obedecia à “mão visível” dos poderes revolucionários de plantão.
No imaginário lugar do detestado “capitalista” foram
então colocados os “camaradas” — uns de punho fechado, outros de mão estendida. E o resultado não se fez
esperar: enquanto o ordeiro “capitalista” tinha de correr atrás do cliente
para tentar vender-lhe alguma coisa, o cliente tinha agora de correr atrás dos
“camaradas” — que podiam agora decidir por decreto político a quem iam vender
ou “distribuir” (e que, em regra, já pouco tinham para vender ou “distribuir”).
Este foi basicamente o
resultado das economias estatizadas pelos comunistas ou sob planificação
central dos nazis (que significativamente adoptaram a designação
“anti-burguesa” de “partido nacional-socialista dos trabalhadores alemães”). A urgência da estatização e da planificação central não podia esperar
pelas “gentilezas” do parlamentarismo burguês e liberal. Contra a chamada
“hipocrisia e formalidade” das regras impessoais do parlamentarismo
constitucional, bolchevismo, fascismo e nacional-socialismo pregaram a urgência
da “autenticidade revolucionária” em nome do “povo” (que eles em rigor
desprezavam) — a idolatrada “Revolução” e o chamado “estado total”.
As ideias têm consequências e os resultados não se
fizeram esperar: os velhos governos limitados — pela moral, pela
religião, pela lei e pelo Parlamento —foram substituídos por governos
ilimitados dos “camaradas”: cruéis, despesistas, castradores da iniciativa
civil descentralizada, em seguida simplesmente criminosos — e orgulhosamente
libertos dos “preconceitos morais burgueses e cristãos”. Em suma, talvez seja relevante
recordar que o alvo comum da barbárie comunista, fascista e nazi foi a
tradição moral ocidental — que impõe
limites imparciais ao poder da vontade sem entraves. De certa forma, tratou-se de
uma reedição (em versão
incomparavelmente mais brutal) da guerra da Esparta colectivista continental
contra a Atenas liberal, comercial e marítima do século V a.C. Esta é
uma razão adicional para recordar — contra o dogmatismo politicamente correcto
muito na moda nas universidades e na comunicação social — que a nossa
civilização liberal ocidental tem as suas raízes plurais em Atenas, Roma e
Jerusalém.
COMENTÁRIOS:
Rita Gil: Mais um excelente artigo de João Carlos Espada. Concordo inteiramente.
cardoso pereira: Desculpe mas não sabe o que diz.. o fascismo e o nazismo foram beber a sua
inspiração à tradição moral ocidental...não só inspiração, mas apoios de toda a
ordem. Informe-se por favor..
josé maria: Lenine e outros bárbaros, ou seja todos os ditadores, incluindo Salazar.
Jose Maria Brissos > josé maria: comparar salazar com lenine é o mesmo que comparar o
cu com a feira de castro José Montargil: Muitos professores
universitários continuam a vomitar das cátedras essas teorias panfletárias do
marxismo. Onde se nota mais é nas bibliografias dos seminários ou anos
lectivos. Felizmente hoje em dia os profes
mais novos já não são tão dogmáticos, tão pêcêpê ,como eram nas décadas de
1970/80/90. Hoje em dia são mais adeptos do BLOCO e têm uma capa de
modernização. Enganam com a descontracção e a proximidade e não se tratam por
camaradas e aparentemente têm uma vida mais normal, menos clubística. Mas a
Universidade continua a ser um dos focos que envenenam quem lá anda com um
marxismo corriqueiro, de trazer por casa, agora com novos modelos, novas capas
que são estas políticas actuais do politicamente correcto e outras muito em
voga hoje em dia. Tudo que o que não controlam são contra.
vitor guerra: É difícil gostar-se do estalinismo, mas o homem foi uma figura maior na
galeria do século XX.O conceito de dialéctica histórica, levada ao radicalismo
absoluto.
José Montargil > vitor guerra: Na galeria dos assassinos e déspotas tem um lugar
maior. Ele e o Hitler foram gémeos. Antes pelo contrário. Eu
diria antes, que a origem comum das barbáries comunista, fascista e nazi foi...
o marxismo. E o marxismo é um produto da decadência da tradição moral
ocidental. Ceci explique cela.
cardoso pereira: Antes pelo
contrário: Que disparate... o marxismo esteve na origem do fascismo e do nazismo? E já
agora porque não do budismo e do naturalismo?
Rita Gil > cardoso pereira: Que disparate! Se a Revolução
Russa não tivesse acontecido, muito provavelmente não teria existido nem
Fascismo, nem Nazismo.
João Pensamentos: Enquanto historiador essa efeméride passou-me ao lado, felizmente. Detesto
os quatro ”ismos" da história do século XX e dos dois que ainda persistem
no século XXI.
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