segunda-feira, 25 de maio de 2020

Arrumações



As ideias muito bem estruturadas de António Barreto servem para bem estruturarmos as nossas, relembrando e melhor fixando o que por nós passou. Mas ninguém é senhor da verdade absoluta, se é que isso existe, e a capacidade humana de redenção e de reconstrução, e afinal de mudança constante, como sempre se apregoou, lembra que o homem é o ser mais reorganizador deste mundo, que há sábios nele, inventores de mais esquemas de vida e de morte e que isto nunca fica por aqui. Quem marca muito o passo, embora avance devagarinho, às arrecuas tantas vezes, é o nosso país, com travões de mão e de pé para quem tem veleidades de avançar trabalhando a valer, os obstáculos surgindo, a emperrar, ainda que sejam só os burocráticos. Hoje ouvi Marques Mendes, na sua forma impaciente de expressão em furacão, mas até correcta, condenar o mês e meio de férias que se avizinham para os tribunais, quando todos têm estado de férias de quarentena. Dei-lhe razão. E nunca sairemos da cepa torta, por este caso retratar bem a nossa condição lusa de ir sempre adiando, empurrando com a barriga, como se diz. Parece que a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, era a favor da redução das férias dos Tribunais, mas logo a esquerda protestou e o governo cedeu, que o governo é pacífico e não lhe fazem mossa os processos, até convém adiá-los. Não, não se importa de usar a barriga para os seus chutos amortecidos. Afinal os dinheiros por cá vêm de fora, e por isso até temos uma poluição diminuta, graças a Deus, pelo menos física.

OPINIÃO
Esquerda! Direita! Volver!
A esquerda sozinha não consegue resolver os problemas nos próximos anos. A direita sozinha também não. Muito menos um só partido. Não custa reconhecer o inevitável.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 24 de Maio de 2020
Vinte anos são poucos para qualificar um século. Mas não se pode negar que o XXI começou mal! As duas primeiras décadas são aflitivas. No mundo inteiro.
Logo no inicio, as Torres de Nova Iorque. A partir daí, o terrorismo islâmico instalou-se. E quase inspirou outros que se seguiram. A invasão do Iraque foi exemplo de desastre. Na Líbia e na Síria, as guerras atingiram inimagináveis graus de violência. As democracias árabes, esperança precoce, transformaram-se rapidamente em desastres autoritários. As guerras de drones, conduzidas pelas nações mais poderosas, sobretudo pelos Estados Unidos, trouxeram uma nova arma de que a humanidade não se vai orgulhar.
As alterações climáticas marcaram o planeta, muitas das suas consequências são já irremediáveis. Perante elas, a incapacidade humana é a mais evidente realidade. Alguns desastres ditos “naturais” deixaram recordações perenes.O furacão Katrina de Orleães mostrou a vulnerabilidade do país mais rico do mundo. O tsunami asiático revelou a amplitude possível da devastação. Os piores incêndios florestais da história da humanidade queimaram a Califórnia, a Amazónia e a Austrália, assim como a Grécia e Portugal. As piores secas e as mais severas inundações ficaram na memória de gente.
As crises financeiras abalaram o mundo. Gigantescas falcatruas revelaram a infinita capacidade criminosa do dinheiro. As crises das dívidas soberanas diminuíram a força das entidades políticas. A UE exibiu a sua debilidade política. As migrações ilegais em massa e a procura de refúgio político na Europa e na América serviram para revelar desumanidade e impotência. A desigualdade social atingiu graus inesperados, assim como o crescimento obsceno de fortunas em poucas mãos.
A crise (comercial, financeira e política) entre os Estados Unidos e a China ameaça o mundo inteiro e não dá sinais de ter um termo à vista. Consolidou-se o fiasco definitivo do socialismo e do comunismo, apenas sobrando, desse modelo político, um país, a China, que produziu a aliança improvável entre dois absolutos, o da ditadura política e o do capitalismo desenfreado. As ameaças à democracia chegam-nos de todos os lados, de quase toda a África e de grande parte da Ásia, dos Estados Unidos, do Brasil, da Venezuela e da Hungria. É crescente a perda de importância da nobre Europa e da sua União, em plena decadência política, como todos os fidalgos.
Em Portugal, fomos poupados a muitas desgraças, como seja, até agora, o terrorismo. Mas tivemos também a nossa quota-parte. Incêndios florestais como nunca se tinham visto. Vinte anos de crescimento económico quase zero. Partilhámos, até com excesso, as crises financeiras e de austeridade. Conhecemos a maior trapaça financeira da história do país. E talvez o mais corrupto governo de sempre.
A pandemia sanitária e a profunda crise económica e social que se vai seguir exigem excepcionais esforços de convergência. E até de patriotismo, conceito em desuso. Nenhum partido sozinho será capaz de resolver o que é necessário. A esquerda, sozinha, não tem soluções em liberdade. E talvez não tenha também para o investimento e o desenvolvimento. Por sua vez, a direita, sozinha, não tem soluções para a protecção social e a justiça. E talvez também não tenha para a liberdade.
E, no entanto, quando se pensa que as soluções políticas podem vir do esforço conjugado de várias forças, logo cai o Carmo e a Trindade! Bloco central não! A esquerda sozinha é que é boa. A direita sozinha é que é boa. Para a cultura política nacional, tudo o que não seja puramente esquerda ou direita cai mal. O “centrão”, o bloco da corrupção, o caldeirão central… Todas essas sol uções são malditas!
Ora, em democracia, já tivemos uma dúzia de anos de governos de direita sozinha, assim como outros tantos de esquerda sozinha. Também tivemos outros anos de um só partido ou de misturas. Uma coisa é certa: não há regras nem padrões. Já houve bloco central e governos de um só partido e governos só de esquerda e só de direita. Ninguém, nenhuma solução monopolizou o erro, o disparate ou fragilidade. As várias soluções mostraram tudo aquilo de que foram capazes: trabalho patriótico, crescimento, liberdade e honestidade… e o seu contrário! Não é possível dizer que o bloco central é necessariamente corrupto ou que a esquerda e a direita sozinhas são a instabilidade e a violação da liberdade.
Foi com governos de uma só cor que se assistiu aos desastres financeiros, às políticas de austeridade, a alguns dos piores episódios de corrupção e ao desenvolvimento da porta giratória entre o governo e os interesses. A destruição do sistema bancário e do que sobrava do capitalismo português foi metodicamente levada a cabo pela esquerda e pela direita, ora aliadas, ora a governar sozinhas.
Não se percebe por que razão é tão difícil encontrar soluções governativas de maioria alargada, sem união nacional. Tantos países, na Europa, tiveram de recorrer a essa solução e a maior parte não se arrepende. Dói ver a enorme atracção que tantos revelam pelos desastres dos outros, mesmo sendo os desastres do país! É tentador pedir boleia à desgraça das instituições e do povo para criar um salvador, pessoa ou partido. A direita pede um novo clima ético, uma nova atitude patriótica e a refundação da pátria, se preciso for. A esquerda reclama novos modelos sociais e políticos, uma democracia alternativa e um novo sistema político! Todos aspiram a aproveitar o desastre! Era bom pensar que, se desastre houver, muitos deles são capazes de naufragar também. Como é possível imaginar que a salvação, a liberdade ou o desenvolvimento nascem de milhões de precários e desempregados, de milhares de mortos e infectados, de falências e fraudes sem fim?
Quem havia de dizer que, nas esquerdas e nas direitas, encontraríamos um dia reminiscências das teorias de Schumpeter sobre a destruição criadora do capitalismo? Aflige ver a exigência de novos modelos de sociedade, de economia, de consumo e de Estado e acreditar que esses modelos, ou lá o que forem, estão à espreita de uma oportunidade para vingar por cima dos escombros da sociedade actual. Por cima do capitalismo e da democracia actuais, e até, ironia maior, por cima do esquerdismo actual.
A esquerda sozinha não consegue resolver os problemas nos próximos anos. A direita sozinha também não. Muito menos um só partido. Não custa reconhecer o inevitável. Mesmo quando este não nos agrade. Eis por que prever e prevenir são actividades nobres. Eis por que preparar-se é um dever.
Sociólogo
TÓPICOS

COMENTÁRIOS:
joorge EXPERIENTE: Começou mal, olha grande descoberta. Vamos todos morrer, é outra igual. E no século anterior? Por esta altura (1920) já tinha terminado a mais sangrenta das guerras até então.
José Cruz Magalhaes MODERADOR: O título do artigo, assinado por Álvaro Barreto, evoca conotações de índole castrense e militarista, que não se poderão justificar pelo desenrolar da prosa, normalmente fecunda de considerações prévias e divagações diversas, sem esquecer as constatações do óbvio. O que o Estado de Emergência e o de Calamidade, que lhe sucedeu, demonstrou em toda a extensão, foi que tanto o Governo, dito de esquerda, como a oposição, conotada com a direita, estabeleceram um modus vivendi de suspensão de conflito e de colaboração institucional, em que não será desprezível, bem pelo contrário, o magistério da actividade presidencial. E esta plataforma, de apaziguamento e colaboração ao centro, já está garantida para 2021,pelo menos, com os apoios comuns à candidatura de Marcelo, a partir desta situação objectiva.
Jose MODERADOR: José Cruz Magalhães Não há governos de esquerda. Pode ocorrer em momentos muito excepcionais, pontos de indeterminação históricos, haver vestígios de esquerda em governos circunstanciais que rapidamente são de direita. Em Portugal há mais de 45 anos os governos são de direita e continuam sendo. A medida dos governos faz-se pelos resultados. Portugal avançou muito nos primeiros anos após abril. Fim do Império, guerra, prisões políticas, instrumentos de perseguição, prisão, tortura e morte, fim da censura, legalização dos partidos políticos, direito de expressão, associação, reunião, manifestação, greve, sindicatos, democracia pluralista. Fim dos agrários feudais, Escola e saúde pública... Com as políticas de direita perdemos a independência, caem as conquistas de abril, é dificultada a luta!
mário borges EXPERIENTE: O ex socialista (que na verdade nunca o foi) aqui a mostrar o El Dorado da democracia portuguesa. O Centrão! A eterna gamela dourada do jogo de cintura ou da dança das matrafonas para à vez ver quem fica com o país nas mãos. Na verdade ele tem um gostinho especial pelo PSD... O Movimento dos Reformadores bem tentou mas nunca lhe terão dado o cartão laranja de entrada. Mais um órfão da direita...
Jose MODERADOR: Uma lista de acontecimentos com características diferentes que para uns são defeitos e para outros são virtudes não diz quase nada do que foram estes 20 anos do século XXI. No mundo registaram-se avanços extraordinários em todos os aspectos da vida do planeta, sua biodiversidade, incluindo a humanidade. É isso que eu prefiro destacar. Morre-se menos de agressões fratricidas, espécies protegem-se mais, os tumultos naturais e sociais são mais previsíveis e moderados. A humanidade está mais capaz de subsistir, a esperança de vida aumentou, a mortalidade infantil diminuiu, há mais força laboral, maior rendimento per capita, mais capacidade de interacção com o resto da natureza com vantagens conjuntas. Face a isto fica mesquinho falar do PS, PSD ou dos dois "Dupond et Dupont". Isto vai, isto vai!
Manuel Marques INICIANTE: Podia fazer o favor de me informar em que planeta habita? Muito obrigado!
Pedro Augusto INICIANTE: Fico a pensar se vive no mesmo planeta que eu...
Alberto Pereira INFLUENTE: No século XIX um jornalista francês perguntou, a um politico português, porque razão os dois principais partidos, como eram muitos semelhantes, não se juntavam. A resposta, ainda hoje actual foi !"Juntos, não cabiam todo os interessados à mesa do orçamento." .....
Félix Carlos INICIANTE: “ … Não custa reconhecer o inevitável. “Custa, custa! Se não fosse tão custoso, já deveríamos ter no horizonte outra forma de vida. A navegação deve fazer-se mantendo o rumo, mas tem de se ter um objectivo a alcançar além do valor próprio já de si tão indeterminável. Os nossos comandantes, apesar dos avisos não deixam a navegação costeira que se torna mais temerária que a de alto mar. Será uma nova geração de exploradores a ousar cruzar as ondas da alma dos sem versos.
antoniofialho1 INICIANTE: Excelente texto de alerta, mas que infelizmente não passará disso mesmo. Logo que possa o mundo voltará ao que foi pois não sabe nem quer viver de outra forma. O mundo não é uno mas sim o conjunto de realidades que o compõem, sobretudo mas não necessariamente, os países. Se até dentro do próprio país se criam guetos, egoísmos nacionalistas, como se viu na forma o governo açoriano tratou os de fora, "todos presos 14 dias" mesmo estando saudáveis, com o silêncio do governo, PR, PGR, etc. percebemos que nas circunstâncias adequadas tudo é aceite. Cada país tem o seu rumo, e mesmo numa UE, como se viu nesta crise, é cada um por si, e todos os bem difusos, como o ambiente, a fome, a pobreza, etc, só importam se os afectar.
Mario Coimbra EXPERIENTE: Excelente. Tem todo a razão. A partilhar.
FPS INFLUENTE: Bravo, bravo António Barreto. Há que tempos não lia um texto seu com agrado. Um texto correcto e cheios de objectiva verdade. O séc. XXI ou muda de azimute (e de facto, a ocasião é de aproveitar a mãos ambas) ou é com certeza o princípio do fim num plano inclinado que ninguém conseguirá deter. A solução no bloco central? A crise económica que se prevê, vai exigir a coesão política que se verificou no ataque à crise sanitária que, isso já se sabe, foi um êxito... Um êxito que, camuflado embora, não passou na realidade de um bloco central em eficaz andamento. Desta vez, como não concordar com António Barreto?

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