domingo, 17 de maio de 2020

Tudo bem planeado



Só nos resta agradecer a Salles da Fonseca este esforço de reconstituição de um périplo passado, extraordinariamente sobrecarregado, que certamente prepararia o corpo e a alma juvenis para uma vida futura marcada pela curiosidade, o destemor e o gosto de viver e de transmitir, alegremente e sem pedantismo, tanto disso que viveu e a que o seu pensamento justo acrescentou de reflexão sadia e ainda crente.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 16.05.20
Passados que são 59 anos da viagem, há «coisas» que se me passaram e uma delas foi Grenoble. Que me perdoem os grenoblois. Mas, em compensação, lembro-me relativamente bem de Avignon cuja ponte procurei. Julgo tê-la visto à distância quando passámos por uma outra mais nova do que ela, a da cantiga. Dada uma vista exterior pelo maciço palácio papal, quase fortaleza, acampámos algures.
E mesmo que fosse andar um pouco para trás, o nosso Comandante achou que se justificava darmos um salto a Nice onde, como não podia deixar de ser, passámos pela Promenade des Anglais onde vimos o célebre Negresco em que não pernoitámos mas que me levou a lembrar de Isadora Duncan, do Bugatti e do fatídico cachecol – história que sempre me pareceu inverosímil. E, por baixo da famosa balaustrada, vimos a praia de areia pedregosa que logo comparei com as nossas areias finas. De facto, não será pelas praias que se justifica que um português vá ao estrangeiro já que temos as melhores do mundo. E, ao fim de todos estes anos que decorreram entretanto, confirmo que as praias estrangeiras que aparentam ser melhores que as nossas, têm águas pejadas de crocodilos de água salgada, medusas letais e tubarões de voracidade criminosa. Em Nice não há nada disso mas também não há areia como as nossas. Mas há o resto e é isso que arrasta multidões. Nietzsche, um habitué de Nice que eu não imaginava num tal mundanismo. Mas sobreviveu miraculosamente a um tremor de terra que destruiu a pensão em que habitualmente se instalava. Saiu ileso do meio dos escombros fazendo humor com o facto de o tinteiro ter saltado para fora da mesa em que escrevia. Na dúvida, passou a ir para Turim onde o solo mexeu menos enquanto por lá andou.
E nós, seguindo para Cannes, decidimos não prosseguir até Saint Tropez fingindo que a Brigitte Bardot não estava lá. E, inflectindo para o interior, fomos ver as margaridas e outras espécies da típica flora regional da qual se fazem as essências de grande parte dos perfumes franceses. Ao todo, de Nice a Monpellier, foram 350 quilómetros que nos puseram no destino ao final da tarde. Com os 260 quilómetros que tínhamos feito de Avignon a Nice, este foi um dia de esticão para o nosso Conducător[i].
Procurámos assento, armámos a tenda e pernoitámos. Estávamos nas redondezas de Montpellier, num camping em que conseguimos encontrar lugar.
Se de Montpellier pouco retive, daí a 250 quilómetros não pude deixar de me encantar com Carcassonne, a cidade museu da História do Sul de França. Em qualquer esquina esperávamos cruzar-nos com os Mosqueteiros do Rei mas deviam estar em missão alhures. Foi aqui que cátaros e calvinistas ficaram manchados de sangue. Este, o cenário de episódios muito dramáticos da História de França e não só. Assim foi que me lembrei dos Berengários de Aragão e, logo, do irmão da nossa Rainha Santa Isabel que morreu pelos cátaros numa batalha travada naquelas paragens por onde andávamos. Lembrei-me dos franciscanos milenaristas que também por ali pregaram e que, expulsos, vieram para Alenquer por convite da mesma Rainha Santa e que por cá ficaram até os Açores serem descobertos e povoados para lá indo prestar culto ao Espírito Santo – fé que se mantém: no princípio, foi o tempo do Pai; seguiu-se o tempo do Filho e agora estamos no tempo do Espírito Santo.
E se de tanta coisa me lembrei, por certo que de muita me esqueci.
Sim, foi difícil consolidar esta parte de França pois por aqui passaram tempos de Teologias conflituantes. E a pergunta é: como seria hoje a nossa Civilização se os resultados das pelejas físicas de então tivessem sido outros?
Felizmente, era hora de rumar a Toulouse, la ville rose, ali à frente, a uma centena de quilómetros
(continua)
Maio de 2020   Henrique Salles da Fonseca
«lider», em romeno
COMENTÁRIOS:
Anónimo 16.05.2020: Apesar de a eventual ausência de Brigitte Bardot em Saint Tropez tenha servido de argumento para lá não ires, vejo que, por alguma razão, eventualmente freudiana, não deixaste de admirar as margaridas. Será que isso teve a ver com o picante (como então se dizia) filme por ela protagonizado “Desfolhando a Margarida”, que a nossa censura, sempre tão eficiente, daqueles inícios da década de 60, nos deixou imaginar (apenas) o que seria o striptease da protagonista? Falando a sério: também já coloquei a mim mesmo, várias vezes, a tua pergunta – Como seria a nossa Civilização se determinados eventos históricos tivessem tido outro desenlace? Desde logo, o que seria da área mediterrânica se a batalha naval de Lepanto, entre turcos e venezianos (e não só), no século XVI, tivesse sido ganha pelos turcos? Aquela batalha não se teria caraterizado, então, pelo fim da expansão islâmica no Mar Mediterrâneo. Abraço, Henrique. Carlos Traguelho
Anónimo 16.05.2020: : Brilhante relato de viagem mesmo sem a BB que nessa época ainda parava o trânsito.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 17.05.20
Chegada a Toulouse à hora de um almoço tardio, assim como que à espanhola. E, já que em occitano (a língua do sul de França) esta cidade se chama Tolosa, que fique claro que nada tem ela a ver com Navas de Tolosa onde em 1212 se travou «a batalha» de que resultou o princípio do fim do Califado almóada. Muito interessante, sim, mas nada disto tem a ver com Toulouse. Adiante…
Foi aqui que me lembrei dos visigodos que assentaram nesta região durante muito tempo, do pastel (que foi o antepassado do índigo) e do Caravelle, o avião. Para além, claro está, do famoso Lautrec.
Eram horas de partida, seguiríamos pelo sopé francês dos Pirenéus, passaríamos à margem de Pau, a cidade onde nasceram os grandes prémios automobilísticos franceses mas para nós, gente de cavalos, aquela era a cidade do comerciante que enviou muitos trotadores para Portugal. Portanto, bem ou mal, para mim, Pau era a capital dos trotadores. Vimo-la ao longe, pela nossa esquerda. Tomámos o caminho de Hendaye onde pernoitaríamos ao fim de uma jornada com 350 quilómetros.
Nas redondezas da fronteira, aproveitámos um camping em França pois não tínhamos visto nenhum do lado espanhol. Já nos sentíamos quase «em casa» e, como os cavalos, estávamos «com a crença na cocheira».
No dia seguinte, entrando pela Espanha dentro, esperavam-nos alguns esticões quilométricos pelo que havia que dividir as etapas tão bem quanto possível para que o nosso Conducător não se martirizasse muito.
Levantado arraial ao mesmo tempo que o Sol, passámos a fronteira e fizemo-nos à estrada por ali fora… San Sebastian ficou-nos à direita e vá de pormos Vitória  à frente do tablier. Chegámos cedo, eram só 180 quilómetros desde a fronteira. Mas como desta vez iríamos por Madrid, não era justo pedir mais 250 quilómetros. Ficámos em Burgos num local que, em princípio, não teria vacas por perto. Contudo, o nosso Comandante já estava impaciente por chegar a casa e a meio da noite deu ordem de levantamento do arraial. Chegámos a Madrid pela alvorada e, sem pararmos, lembrei-me da «Alborada del Gracioso» de Ravel. Calei-me, não assobiei nem cantarolei, lembrei-me apenas. E assim foi que nos atirámos a mais 400 quilómetros até Badajoz. E, aí, faltavam 40 quilómetros para chegarmos ao fim da nossa viagem, Stª Eulália, herdade de Font’Alva.
Chegámos pela tardinha e quem mais mereceu louvores foi o fidelíssimo «pão de forma», essa formidável carrinha Volkswagen que ao longo de 7660 quilómetros apenas pediu que se lhe desse algum combustível.
E é chegado o momento de dizer que sempre que citei o «nosso Comandante», era ao meu saudoso tio Engenheiro Fernando Sommer d’Andrade que me referia. Depois desta viagem, foi ele que trouxe para o nosso hipismo o modelo de certificação desportiva que encontrámos na Alemanha, foi ele que fez construir o picadeiro coberto (que tem o seu nome) na Sociedade Hípica Portuguesa, em Lisboa, assim dando o arranque para a constituição do maior centro hípico português e foi ele que nos proporcionou, aos rapazes, uma visão inicial do mundo para além dos curtos horizontes que tínhamos até então.
Passados 59 anos, deste grupo de viajantes, também já nos falta o Nan, o mais novo de nós, os rapazes.
Aos dois Fernandos, pai e filho, eu digo:– Adeus, encontrar-nos-emos de novo, esta é a nossa fé.
FIM
Maio de 2020
Henrique Salles da Fonseca
Quilómetros na volta, de Ivrea a Stª Eulália (Elvas):
Ivrea– Grande São Bernardo ~ 120 kms
Grande São Bernardo – Montreux ~ 80 kms
Montreux – Genève ~ 80 kms
Genève – Grenoble ~ 145 kms
Grenoble – Avignon ~222 kms
Avignon – Cannes – Nice ~260 kms
Nice – Cannes  - Monpellier ~ 330 kms
Monpellier – Carcassonne ~ 150 kms (litorl)
Carcassonne – Toulouse -~95 kms
Toulouse – Pau ~ 200 kms
Pau – Hendaye ~ 150 kms
Hendaye – San Sebastian ~ 30 kms
San Sebastian – Vitória – 100 kms
Vitória – Burgos - Madrid ~ 360 kms
Madrid – Badajoz ~ 410 kms
Badajoz – Stª Eulália ~ 35 kms
TOTAL DO REGRESSO ~ 2767 Kms
TOTAL DA IDA ~ 4893
TOTAL DA VIAGEM ~7660 Kms



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