Só nos resta agradecer a Salles da Fonseca este
esforço de reconstituição de um périplo passado, extraordinariamente sobrecarregado,
que certamente prepararia o corpo e a alma juvenis para uma vida futura marcada
pela curiosidade, o destemor e o gosto de viver e de transmitir, alegremente e
sem pedantismo, tanto disso que viveu e a que o seu pensamento justo acrescentou
de reflexão sadia e ainda crente.
I - ANDA COMIGO –
24
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 16.05.20
Passados
que são 59 anos da viagem,
há «coisas» que se me passaram e uma delas foi Grenoble. Que me perdoem os grenoblois. Mas, em compensação,
lembro-me relativamente bem de Avignon cuja
ponte procurei. Julgo tê-la visto à distância quando passámos por uma
outra mais nova do que ela, a da cantiga. Dada uma vista exterior pelo maciço
palácio papal, quase fortaleza, acampámos
algures.
E
mesmo que fosse andar um pouco para trás, o nosso Comandante achou que se
justificava darmos um salto a Nice
onde, como não podia deixar de ser, passámos pela Promenade des
Anglais onde vimos o célebre Negresco
em que não pernoitámos mas que me levou a lembrar de Isadora
Duncan, do Bugatti e do fatídico
cachecol – história que sempre me pareceu
inverosímil. E, por baixo da famosa balaustrada, vimos a praia de areia
pedregosa que logo comparei com as nossas areias finas. De facto,
não será pelas praias que se justifica que um português vá ao estrangeiro já
que temos as melhores do mundo. E, ao fim de todos estes anos que
decorreram entretanto, confirmo que as praias estrangeiras que aparentam ser
melhores que as nossas, têm águas pejadas de crocodilos de água salgada,
medusas letais e tubarões de voracidade criminosa. Em Nice não há nada
disso mas também não há areia como as nossas. Mas há o resto e é isso que arrasta multidões. Nietzsche, um habitué de Nice que eu não imaginava num tal
mundanismo. Mas sobreviveu miraculosamente a um tremor de terra que destruiu
a pensão em que habitualmente se instalava. Saiu ileso do meio dos escombros
fazendo humor com o facto de o tinteiro ter saltado para fora da mesa em que
escrevia. Na dúvida, passou a ir para Turim onde o solo mexeu menos enquanto
por lá andou.
E
nós, seguindo para Cannes, decidimos
não prosseguir até Saint Tropez fingindo
que a Brigitte Bardot não estava lá. E, inflectindo para o interior, fomos
ver as margaridas e outras espécies da típica flora regional da qual se
fazem as essências de grande parte dos perfumes franceses. Ao todo, de Nice
a Monpellier,
foram 350 quilómetros que nos puseram no destino ao final da tarde. Com os 260
quilómetros que tínhamos feito de Avignon a
Nice, este foi um dia de esticão para o nosso
Conducător[i].
Procurámos
assento, armámos a tenda e pernoitámos. Estávamos nas redondezas de Montpellier, num camping em que conseguimos encontrar lugar.
Se
de Montpellier pouco
retive, daí a 250 quilómetros não pude deixar de me encantar com Carcassonne, a cidade museu da História do Sul de França.
Em qualquer esquina esperávamos cruzar-nos com os Mosqueteiros do Rei mas deviam estar em missão alhures. Foi aqui que
cátaros e calvinistas ficaram manchados de sangue. Este, o cenário de
episódios muito dramáticos da História de França e não só. Assim foi que me
lembrei dos Berengários de Aragão e, logo, do irmão da nossa
Rainha Santa Isabel que
morreu pelos cátaros numa batalha travada naquelas paragens por onde andávamos. Lembrei-me dos franciscanos milenaristas que
também por ali pregaram e que, expulsos, vieram para Alenquer por convite da
mesma Rainha Santa e que por cá ficaram até os Açores serem descobertos e
povoados para lá indo prestar culto ao Espírito Santo – fé que se mantém: no
princípio, foi o tempo do Pai; seguiu-se o tempo do Filho e agora estamos no
tempo do Espírito Santo.
E
se de tanta coisa me lembrei, por certo que de muita me esqueci.
Sim,
foi difícil consolidar esta parte de França pois por aqui passaram tempos de
Teologias conflituantes. E a pergunta é: como seria hoje a
nossa Civilização se os resultados das pelejas físicas de então tivessem sido
outros?
Felizmente,
era hora de rumar a Toulouse, la ville rose,
ali à frente, a uma centena de quilómetros
(continua)
Maio
de 2020 Henrique Salles da Fonseca
Tags: "viagens
na minha casa"
COMENTÁRIOS:
Anónimo 16.05.2020: Apesar de a eventual ausência de Brigitte Bardot em Saint
Tropez tenha servido de argumento para lá não ires, vejo que, por alguma razão,
eventualmente freudiana, não deixaste de admirar as margaridas. Será que isso
teve a ver com o picante (como então se dizia) filme por ela protagonizado “Desfolhando
a Margarida”, que a nossa censura, sempre tão eficiente, daqueles inícios
da década de 60, nos deixou imaginar (apenas) o que seria o striptease da
protagonista? Falando a sério: também já coloquei a mim mesmo, várias vezes, a
tua pergunta – Como seria a nossa Civilização se determinados eventos
históricos tivessem tido outro desenlace? Desde logo, o que seria da área
mediterrânica se a batalha naval de Lepanto, entre turcos e venezianos (e não
só), no século XVI, tivesse sido ganha pelos turcos? Aquela batalha não se
teria caraterizado, então, pelo fim da expansão islâmica no Mar Mediterrâneo.
Abraço, Henrique. Carlos Traguelho
Anónimo 16.05.2020: : Brilhante
relato de viagem mesmo sem a BB que nessa época ainda parava o trânsito.
II - ANDA COMIGO
– 25
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO,
17.05.20
Chegada
a Toulouse à hora de um
almoço tardio, assim como que à espanhola. E, já que em occitano (a
língua do sul de França) esta cidade se chama Tolosa, que fique claro que nada tem ela a ver com Navas
de Tolosa onde em
1212 se travou «a batalha» de que resultou o princípio do fim do Califado
almóada. Muito
interessante, sim, mas nada disto tem a ver com Toulouse. Adiante…
Foi
aqui que me lembrei dos visigodos
que assentaram nesta região durante muito tempo, do pastel (que foi o antepassado do índigo) e do Caravelle, o avião. Para além, claro está, do famoso Lautrec.
Eram
horas de partida, seguiríamos pelo sopé francês dos Pirenéus,
passaríamos à margem de Pau, a cidade
onde nasceram os grandes prémios automobilísticos franceses mas para nós, gente
de cavalos, aquela era a cidade do comerciante que enviou muitos trotadores
para Portugal. Portanto,
bem ou mal, para mim, Pau era a capital dos trotadores. Vimo-la ao
longe, pela nossa esquerda. Tomámos o caminho de Hendaye onde pernoitaríamos ao fim de uma jornada com 350
quilómetros.
Nas
redondezas da fronteira, aproveitámos um camping em França
pois não tínhamos visto nenhum do lado espanhol. Já nos sentíamos quase «em
casa» e, como os cavalos, estávamos «com a crença na cocheira».
No
dia seguinte, entrando pela Espanha dentro, esperavam-nos alguns esticões
quilométricos pelo que havia que dividir as etapas tão bem quanto possível
para que o nosso Conducător não se
martirizasse muito.
Levantado
arraial ao mesmo tempo que o Sol, passámos a fronteira e fizemo-nos à estrada
por ali fora… San Sebastian ficou-nos à direita
e vá de pormos Vitória à frente do tablier.
Chegámos cedo, eram só 180 quilómetros desde a fronteira. Mas como desta vez
iríamos por Madrid, não era
justo pedir mais 250 quilómetros. Ficámos em Burgos num local que, em princípio, não teria vacas por
perto. Contudo, o nosso Comandante já estava impaciente por chegar a casa e a
meio da noite deu ordem de levantamento do arraial. Chegámos a Madrid pela
alvorada e, sem pararmos, lembrei-me da «Alborada del Gracioso» de Ravel.
Calei-me, não assobiei nem cantarolei, lembrei-me apenas. E assim foi que nos
atirámos a mais 400 quilómetros até Badajoz.
E, aí, faltavam 40 quilómetros para chegarmos ao fim da nossa viagem, Stª
Eulália, herdade de Font’Alva.
Chegámos
pela tardinha e quem mais mereceu louvores foi o fidelíssimo «pão de forma»,
essa formidável carrinha Volkswagen que ao
longo de 7660 quilómetros apenas pediu que se lhe desse algum combustível.
E
é chegado o momento de dizer que sempre que citei o «nosso Comandante», era
ao meu saudoso tio Engenheiro Fernando Sommer d’Andrade que me referia.
Depois desta viagem, foi ele que trouxe para o nosso hipismo o modelo de
certificação desportiva que encontrámos na Alemanha, foi ele que fez construir
o picadeiro coberto (que tem o seu nome) na Sociedade Hípica Portuguesa, em Lisboa, assim dando o arranque para a
constituição do maior centro hípico português e foi ele que nos proporcionou, aos rapazes,
uma visão inicial do mundo para além dos curtos horizontes que tínhamos até
então.
Passados
59 anos, deste grupo de viajantes, também já nos falta o Nan, o mais novo de nós, os rapazes.
Aos
dois Fernandos, pai e filho, eu digo:– Adeus, encontrar-nos-emos de novo, esta é a
nossa fé.
FIM
Maio de 2020
Henrique Salles da Fonseca
Quilómetros na
volta, de Ivrea a Stª Eulália (Elvas):
Ivrea– Grande São
Bernardo ~ 120 kms
Grande São
Bernardo – Montreux ~ 80 kms
Montreux – Genève
~ 80 kms
Genève – Grenoble
~ 145 kms
Grenoble – Avignon
~222 kms
Avignon – Cannes –
Nice ~260 kms
Nice –
Cannes - Monpellier ~ 330 kms
Monpellier –
Carcassonne ~ 150 kms (litorl)
Carcassonne –
Toulouse -~95 kms
Toulouse – Pau ~
200 kms
Pau – Hendaye ~
150 kms
Hendaye – San
Sebastian ~ 30 kms
San Sebastian –
Vitória – 100 kms
Vitória – Burgos -
Madrid ~ 360 kms
Madrid – Badajoz ~
410 kms
Badajoz – Stª
Eulália ~ 35 kms
TOTAL DO REGRESSO
~ 2767 Kms
TOTAL DA IDA ~
4893
TOTAL DA VIAGEM ~7660
Kms
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