terça-feira, 5 de maio de 2020

E que é que o título da crónica releva?


Digo, para quem governa – e se governa. Fonética, ortografia, morfologia, sintaxe, a ortografia naturalmente orquestrada pela etimologia, pela fonética também, forjam o quadro de uma gramática resultante nobre de uma evolução natural e gradual, que não pode ser golpeada aleatoriamente por fazedores libertinos apressados, como foi o tal AO90, que a mediocridade generalizada de governações mais preocupadas com as curvas – e curvaturas – económicas, da nossa irremediável mendicidade, insiste em manter, espécie de mesa censória de um tribunal inquisitorial que não se enxerga a si próprio, opressivamente e estultamente mantedor do erro. Um texto brilhante, de Maria Mafalda Viana, severo e rico de sugestões, uma vez mais perdidas na escumalha de uma governação que aboliu a consciência do escrever e do falar sem erros, que a cada passo nos põem os cabelos em pé…

Cultura-Ípsilon:   OPINIÃO:  

Num tempo em que seria impensável voltarmos as costas à Europa, voltar-lhe as costas com esta grafia imposta em Portugal parece-me não só contraditório, como insensato.
MARIA MAFALDA VIANA      PÚBLICO, 5 de Maio de 2020
A língua de um país é o seu património imaterial mais rico. Dele dependem alguns dos “sub-patrimónios” imateriais para os quais ela é “materia prima” – permita-se-me a flagrante contradição –, como é, por exemplo, em Portugal, o fado. De facto, são inigualáveis vozes como é a de Amália, enchendo de alma uma sala de espectáculo inteira, ou como é, mais recentemente, a voz peculiar, morena e densa de Ana Moura. Mas a língua entra numa outra categoria de valores.
Como outras línguas europeias, a língua portuguesa “vem-se formando, há séculos, a par das línguas de Espanha (de que se foi também contagiando), à beira do latim, que muito cedo, em registo falado, entra nestas paragens hispânicas, não escapando, entretanto, ao contágio da tonalidade árabe, ainda hoje perceptível em muitas palavras de uso quotidiano. A certa altura, curiosamente em tempo simultâneo dos começos da projecção do português para outras partes do mundo, mas também da entrada de certo colorido de alguns novos vocábulos distantes, ela desenvolve-se na sua estrutura, que se organiza com certa regularização morfológica e sintáctica, muito por acção dos gramáticos, mas também por proximidade cada vez mais estreita com o latim escrito (de autores como Virgílio, Ovídio, Cícero, Plínio…), cuja influência é decisiva na Literatura Portuguesa. Atingindo um ponto vigoroso a partir do Renascimento, o latim manter-se-ia ainda por alguns séculos no horizonte literário, até que, aos poucos, começa a rarear na educação, sendo hoje no nosso país uma raridade a leitura daqueles autores em língua latina. A presença do latim no português implicaria ainda o contágio mais longínquo e rarefeito do grego que teria já ecoado em costas ibéricas, onde uns compatriotas de Ulisses tinham aportado para trocas comerciais. Mas o sopro do grego nas línguas europeias dá-se sobretudo porque, a partir do século III a. C., ele se entranhara na língua latina que o sorvera como uma esponja, e isso daria às obras daqueles autores um rosto irreversivelmente helenizado, que mudaria a face da Literatura Europeia.
Horácio não exagera ao aludir com subtileza à efectiva vitória militar romana sobre a Grécia, que implicara uma vitória também para o vencido. Esta é ainda hoje a realidade. Um conjunto significativo de palavras do domínio da poética e da filosofia conhecidas nos nossos dias por muitos jovens que concluem os estudos secundários na Europa e demais Ocidente foram forjados no latim mediante este contacto com o grego.
Nestas línguas se modelam de forma incipiente ideias como uma valorização do outro e estrangeiro bem como a de que será possível estabelecer relações de amizade com os outros povos, entre outras formas, mediante as figuras de Ulisses e de Eneias, de tal modo que, em Portugal, haviam de marcar a epopeia camoniana, onde chegariam ainda mais longe, num tempo em que o conhecimento do mundo se alargava.
Nada disto, juntamente com aspectos trazidos pela matriz cristã dos Evangelhos nos é alheio enquanto povo que se revê numa série de valores estimados na Europa. Tudo isto, vertiginosamente sintetizado, exemplifica parte significativa da matéria de que é feito o património da língua escrita, que, sendo de natureza diferente da oralidade, transporta toda uma dimensão secular da língua.
Preservar a riqueza deste património que se vai conquistando à medida da passagem dos séculos e dá à nossa língua mais possibilidade e fineza no apontar o mundo é muito mais do que assinalá-la com um dia num calendário, onde ela tem o seu dia próprio e, em função disso, com mais ou menos criatividade, pode ser alvo de elogios públicos proferidos de um palanque. Do mesmo modo que para o dia do doente há que cuidar para que, dentro da organização da nossa sociedade, ele não fique esquecido e maltratado, para a língua portuguesa, há que cuidar de modo a preservarmos a riqueza das suas possibilidades singulares de dizer o mundo e, nele, o homem, de olhá-lo e entendê-lo de forma tão multifacetada quanto o permite a sua peculiaridade. É compreender que nada disto se compadece de uma visão da língua, plana, do aqui e agora; termos disponibilidade para parar e vermos a importância da luminosidade que emana de cada palavra, transformada pelos séculos num diamante multifacetado de contextos de uso e ocorrências variadas; cuidarmos para que, na sua decomposição, possa ser entendida possibilidade do dizer nela inscrita – tudo coisas que os alunos, não raramente, ouvem encantados. Haja saber e disponibilidade para lhas mostrarmos.
Preservar a riqueza deste património é, pois, amá-lo a ponto de termos a coragem de organizar a vida portuguesa em sociedade e a sua actividade de modo a fomentar de facto a leitura, seja no contexto escolar, onde os autores devem estar ainda muito mais presentes do que têm estado, seja pela disponibilização mais generalizada de edições anotadas (com o aparato abaixo da mancha de texto, a anotar de imediato muitas referências desconhecidas mas necessárias à compreensão) para o público em geral, de modo a que possamos ter o prazer de felizes e casuais encontros numa livraria com alguma edição de poesia medieval, de Fernão Lopes, do Cancioneiro Geral, Sá de Miranda e por aí fora… Custa dinheiro. Seguramente que sim, desde a feitura mais sistematizada dessas edições à sua presença efectiva nas livrarias, mas nenhum destes autores é menos património do que o material, de pedra, como a Sé de Braga, o Mosteiro de Alcobaça, os Jerónimos, os Clérigos… E não é argumento falar de tendências contra esta maré generalizadas pela Europa, porque basta ir a Espanha para encontrarmos as mais variadas edições deste tipo para cada um dos seus clássicos.
A grafia transporta a densidade dos séculos na simples articulação de determinado número de letras que, milagrosamente, até também falam, como cês e quejandos, tantas vezes cortados em palavras como “acto”, “acção” ou “actor”, e cuja súbita iluminação ocasionalmente permitida pela sua grafia é como a leveza desse “lenço” de Sophia, que é o tempo e pousa sobre a areia, vindo do fundo do mar. De outro modo, ficam amputadas e nelas insensível a noção de um “agir” (lat. agere). Tudo isto é tão grave quanto seria dispensarmos na nossa língua uma série de figuras como Ulisses ou o Velho-do-Restelo, raramente rico nas possibilidades que oferece no dizer (quando efectivamente o lemos).
E também este efectivamente, como uma miríade de outras palavras tornadas bizarras, teria efectivamente que se lhe dissesse…
A norma ortográfica introduzida em 1911, começara já este processo, mas o que mais recentemente foi introduzido – e nem teve, até ver, o acordo de todas as partes envolvidas –, com tal machadada originando uma completa desfiguração de muitas palavras flageladas, divorcia-nos de vez da Europa. Num tempo em que seria impensável voltarmos as costas à Europa, num tempo em que, mais do que tudo, nos importaria afirmar a nossa memória efectivamente europeia e fundada no moderno humanismo europeu, voltar-lhe as costas com esta grafia imposta em Portugal parece-me não só contraditório, como insensato.
E nada disto implica um divórcio do português do Brasil e de todas as outras variedades do português. Cantar “flor amarela, flor de uma longa esperaé sempre maravilhoso do prazer que dá, mas não seria honesto ignorar que aquele colorido do português não é o nosso. Sem um verdadeiro arranjo de músico profissional (o que já implica grandes mudanças!), ele perderia todo o encanto, se quiséssemos cantá-lo com a nossa pronúncia do português, e aí sim, o seu português não seria inteiramente compreensível. Do mesmo modo, o nosso fica completamente desfigurado com uma grafia mediante a qual, entre outros aspectos, fica estropiada a identidade do português europeu, que ….efectivamente é diferente. E uso este advérbio não para dar mais um meandro à oração ou certo balanço a projectar-lhe ritmo. Não. Digo-o porque cada uma destas variedades do português, efectivamente, se vai fazendo (do lat. facere) a si mesma e, para cúmulo de tudo isto, a uma facilidade (do mesmíssimo facere) vertiginosa…
A favor da língua portuguesa, se subimos ao palanque que lhe dá reconhecimento, desçamos também dele, façamos alguma coisa, cada um no seu contexto e situação. Possa cada um agir de acordo com aquilo que lhe permite a sua situação profissional ou até simplesmente de acordo com o que lhe permite a inexistência de semelhante situação.
Helenista

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