Em tempo de modorra enclausurada, sabe bem viajar pela
Europa, ainda que em pinceladas evocativas, que recorrem certamente a
apontamentos diarísticos, com tanta precisão de dados que nos são oferecidos e
nos seduzem e ensinam, afinal.
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A
BEM DA NAÇÃO, 02.05.20
Diz o meu
amigo que sabe tudo, o Google, que de Saumur a Paris ainda hoje são 322 quilómetros. Porquê ainda hoje? Porque é essa a distância tanto
pela estrada antiga, a que usámos então, como pela nova autoestrada. Ao
passarmos por Le Mans, não ouvimos
os motores a rugir e, também por isso, seguimos em frente rumo a Paris.
Antes de
chegarmos junto da luz da cidade, ainda era dia, parámos em frente do palácio
de Versailles mas as
bilheteiras já estavam fechadas. Cada um de nós disse ou pensou «fica para a
próxima». A minha ainda não chegou. Notei o tamanho (exagerado) das pedras
da calçada no largo fronteiro ao palácio. Não seria fácil fazer uma «intifada»
mas não foi por isso que deixou de haver sarilho em 14 de Julho de 1789.
Pernoitámos
num parque de campismo próximo de Maison Laffitte a uma vintena de quilómetros da Torre Eiffel. Porquê
ali? Porque naquela localidade casa sim-casa sim, há cavalos, picadeiros,
qualquer coisa relacionada com hipismo e esse era o tema da nossa viagem. Era ali que vivia regularmente e tinha os seus
cavalos o grande mestre e medalhado olímpico em Dressage Henri
Saint Cyr[i] que, apesar do nome, era sueco e Coronel do
Exército do seu país. Apesar de termos encontro marcado com ele, ficámos
a saber que um qualquer inesperado acontecimento o obrigara na véspera a voar
para Estocolmo (???). O ajudante dele ficou incumbido de nos apresentar as
desculpas do Mestre e de nos mostrar os cavalos. E assim foi:
apresentou-nos um cavalo que percebermos estar muito bem ensinado mas o
«intérprete» não era ainda capaz de pisar a sombra do Mestre. Não seria por
falta de Mestre que aquele ajudante não pudesse fazer-se um grande campeão. Não
lhe soubemos o nome, não lhe seguimos o rasto.
Levantado o
acampamento, demos uma volta pelos grands boulevards, subimos à Torre
Eiffel, vimos a
fachada principal da Opéra e das Galeries
Lafayette, passámos à
porta do Louvre e não
soubemos que a Gioconda tivesse saído para ir comer um croissant.
E ala que
estala direitos a Bruxelas que naquelas
épocas ficava a quase 400 quilómetros de distância.
(continua)
Abril de 2020
Henrique
Salles da Fonseca
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HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A
BEM DA NAÇÃO, 03.05.20
Saídos de Paris, teríamos quase 400 quilómetros pela frente até Bruxelas pelo que, dado o adiantado da hora, o nosso
Comandante decidiu – e nós aplaudimos – assentar num parque de campismo
que parecesse aceitável. Se a memória não me atraiçoa muito, digo que ficámos
algures não longe de Amiens mas…
Chegámos a
Bruxelas um pouco depois da hora do almoço depois de uma viagem muito calma
porque só tínhamos programa marcado no dia seguinte.
Desta vez,
demos uma volta a pé pelo centro histórico e deu para imaginar o Imperador
Carlos V a passar pela Grand Place que naquele dia estava toda embandeirada
por qualquer motivo que me passou. É claro que também fomos ver o Manneken Pis
mas não vimos o Euratom que era no sentido oposto ao do nosso local de pernoita
e apetecia-nos instalarmo-nos calmamente em vez de continuarmos a andar por
aqui e por ali.
No dia
seguinte, passagem pelo monumento de Waterloo a caminho da casa de um cavaleiro amador
de dressage, Henry Peters, que nos
recebeu em casa com um bem simpático pequeno-almoço. Que diferença
relativamente ao outro Henri perto de Paris que se pisgou para a Suécia para lá
ir salvar a monarquia. Seguiu-se uma apresentação do seu cavalo mais
adiantado no picadeiro descoberto circundado pelo jardim da casa. Vimos uma
equitação muito mais serena do que esperávamos de quem fazia competição.
Sem entrar em matérias enfadonhas para quem não é da «arte», basta referir que a
equitação de competição implica uma tensão desportiva que os praticantes da
equitação clássica abominamos. Enquanto o Senhor Peters nos mostrava o seu belo cavalo lazão claro, o
tratador estava ao nosso lado mas um pouco mais atrás e quando o patrão
executava um «piaffer»[i], ele imitava o exercício como se quisesse associar-se
emotivamente ao que o «seu» cavalo estava a fazer. Concluída a apresentação, o
cavaleiro apeou-se e deu um rebuçado ao cavalo (devia ser um torrão de
açúcar) e deixou-o seguir solto em direcção ao tratador que lhe deu duas
cenouras. Cavalo feliz, cavaleiro civilizado, tratador fantástico.
Saímos satisfeitos, despedimo-nos e seguimos viagem.
Amesterdão,
Roterdão e Haia, a trempe que
nos esperava.
De Bruxelas a Amesterdão seriam cerca de 200 quilómetros mas foi decidido que, sendo Amesterdão o ponto a partir do qual continuaríamos viagem,
fizéssemos um relativamente pequeno desvio dando um «saltinho» a Roterdão e a Haia. Confesso que Roterdão se me varreu mas da Haia recordo uma certa influência marítima, uma cidade
simbólica por ser a capital holandesa onde acontecem todos os cerimoniais da
realeza mas economicamente menos pujante que as outras duas. Este
«saltinho» foi suficiente para eu considerar a Holanda o país mais bonito que
eu alguma vez vira. E, na continuação, confirmei esta opinião.
Regressados
ao itinerário principal, era final do dia quando assentámos arraiais nas
cercanias de Amesterdão e foi então que me recordei de uma história que ouvira
ao meu tio, o escritor Branquinho da Fonseca. Contava ele que, desorientado, pedira ajuda a um
passante a quem informara que tinha combinado encontrar-se com a minha tia
junto de uma ponte ao que o tal ajudante replicara que esse era sem dúvida um
«bom» ponto de referência pois Amesterdão tem mais de 200 pontes. Com o seu
típico sentido de humor, apontava para a minha tia que estava ao seu lado e
dizia – Como se vê, encontrámo-nos junto da ponte.
Dada uma
volta pela cidade para ficarmos com uma ideia, pareceu-me que tudo tinha sido
desenhado a régua e esquadro antes de assentarem o primeiro tijolo e de
estrearem a primeira pá na escavação do primeiro canal. Passámos frente ao Rijks
Museum – não o fazermos
seria um escândalo – e fizemos outra coisa que, essa sim, deu para recordar
para sempre: passámos de carro por baixo de um navio. Sim, passámos
num túnel por baixo de um dos canais mais importantes no momento em que ia a
passar um navio. Assim como se no cais da Rocha do Conde de Óbidos, no
Porto de Lisboa, houvesse um túnel em vez da ponte móvel na Doca do Espanhol.
Isto, sim, foi muito mais giro para a rapaziada, nós, do que a colecção de
quadros do Rembrandt.
Amanhã, outra
coisa inesquecível..
(continua)
Maio
de 2020
Henrique
Salles da Fonseca
[i] - Trote no
mesmo terreno, cadenciado e com momento de suspensão em cada diagonal, um dos
ares a que os não iniciados associam ao «cavalo a dançar»
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