Foi o que disse Teodoro, pouco antes de
morrer, depois de se ter abotoado com os grossos cabedais daquele, que lhe vieram
parar às mãos por ter tocado uma campainha, ao seguir o conselho de uma
história - “Brecha das Almas” - que lia sonolentamente, no seu quarto de pensão
da D. Augusta, conselho corporizado por um fulano vestido de negro que o
induziu a tocar mesmo a campainha. A verdade é que Teodoro, reconhecendo as verdades
do figurão de negro que soubera tão persuasivamente descrever a vida injusta de
amanuense pelintra que levava, tocou a campainha e enriqueceu, vivendo à
grande, de todos invejado e naturalmente passando a ser explorado com o
servilismo próprio destes casos. Bem que se arrependeu, coitado, e quis reparar
o mal feito à família do mandarim, como expiação, mas saiu-se
mal, maltratado que foi lá na China. Vem o caso, que acho que já contei, e que
é de todos sabido, a propósito das reflexões de Manuel Loff, que me
escaparam na altura, faz hoje oito dias, mas a sua actualidade elegante
mantém-se, tal como a dos conselhos de Teodoro, ao morrer, sobre o sabor valioso
do pão que “as nossas mãos ganham
dia-a-dia”, alguns mesmo amassando-o à vista de todos, em programas
recentes das nossas televisões de distracção diária, nada a ver, pois, com o
pão que o diabo amassou da história de Teodoro, e que era o dele antes da ajuda
do mesmo diabo no uso da campainha.
De facto, nunca, como agora, sentimos
tanto a verdade das afirmações de Manuel
Loff sobre a nossa cidadania simbólica e bem protegida pelo nosso governo, acantonados
na nossa casinha tão modesta como a Milu disse que a dela era, e de que o
Teodoro afinal deve ter tido saudades, pois tentou fingir-se pobre e voltar à
casa de hóspedes da D. Augusta, e ao seu trabalho de amanuense, mas, julgando-o
falido, foi de todos novamente enxovalhado - (o que o fez, por desforço,
retomar o rico bago do mandarim chinês e a vida de estadão que ele lhe
proporcionara).
Da nada lhe valeu o arrependimento final,
para mais com alucinações, como de nada valerá o queixarmo-nos da vida
confinada que levamos, cidadãos que somos, todavia, bem-mandados, como escreveu
Manuel Loff, e que, por
o sermos, formamos uma cidadania essencialmente simbólica, sobretudo passada na
casinha. Ou na rua, tanto faz, o simbolismo é que conta. O governo zela por
nós, e manda que nos confinemos e que usemos máscara, para se não nos notarem
os esgares da preocupação, engulamos, pois, o ar que expiramos para a máscara,
cozinhemos assim o nosso futuro, cidadãos do mundo, ainda que preferíssemos uma
campainha providencial para liquidar um mandarim dos bons. Mas não sei se seria
suficiente a riqueza deste, para nos agasalhar e proporcionar o alimento e o
bem-estar futuros.
OPINIÃOCORONAVÍRUS
Cidadania simbólica
O sentido de comunidade não está no
medo paralisante. Está na cidadania plena. E se esta se manifesta na rua, é na
rua que está a cidadania.
PÚBLICO, 7 de Maio
de 2020
Entrámos na pior crise económica e
social desde 1929, na de mais rápido agravamento, na mais global (ela é, ao
contrário da de 2007-15, e até da de 1929, simultânea em todas as economias à
escala planetária), e, aparentemente, uma grande parte dos portugueses parece
querer enfrentá-la em silêncio e resignação. Em
(re)confinamento, prescindindo de cada vez mais direitos. É o que se deduz
da nova campanha contra a forma como a CGTP assinalou o 1.º de Maio, depois da
retórica fascizante (desculpem, mas em rigor não há outro termo adequado) da
campanha contra as comemorações do 25 de Abril.
Por
mais cuidados com que a CGTP tenha convocado umas poucas centenas de pessoas
para a rua, por mais respeito pelas regras de distanciamento, este segundo
surto de indignação facebookeira continua a sair dessa estranha (sobretudo
perigosa para a democracia) religião do confinamento, ou seja, a tese de que ele não é apenas um
instrumento de uso racional, mas uma distopia político-moral, na qual se entende
que sai da comunidade quem sair do confinamento para exercer os seus direitos,
como se fosse um terrorista pelo terror social que estes indignados dizem que
provoca.
Marcelo, que sabe
bem que o universo político em que se move é este, e que tinha achado, no 25 de
Abril, que “é precisamente em situações excepcionais que se impõe costumes e
rituais” como os dos feriados “essenciais”, veio agora, com ânimo salomónico,
colar-se ao surto e prescrever à CGTP - e a todos nós - uma comemoração
“simbólica” do Dia dos Trabalhadores. Que
fizesse como a Igreja, “que já cá anda nisto há muito tempo [sic]”, e
assinalasse o 1.º (como o 13) de Maio, de forma “simbólica”. Ou seja, fechados
em casa.
Há mais de um milhão de trabalhadores
em layoff? Façam aí umas coisas bonitas nas redes sociais e já está! Quase 400
mil desempregados? Dêem-lhes três minutos online e façam likes; deve chegar
para ser “simbólico”. Trabalhadores que, não ficando atrás de um ecrã caseiro,
vão todos os dias trabalhar para a assegurar o direito à saúde, a limpeza, os
transportes, a produção e a distribuição do que todos comemos, consumimos,
precisamos - e o dia era deles? Ficassem em casa a cumprir a parte que lhes
cabe do confinamento.
O
jurista e constitucionalista que temos como Presidente, e com ele demasiada
gente, presume que todos já somos simples portadores de uma cidadania
simbólica. Depois de os três
decretos de emergência que assinou, e que viu aprovados por todos os
maiores partidos salvo o PCP, terem suspendido direitos dos trabalhadores,
presume agora que deveria suspender-se o direito de manifestação. No que este tem de liberdade de expressão, Marcelo
redefiniu-o como direito simbólico. Querem os cidadãos protestar? Não o façam em
público, e, sobretudo, peçam licença à polícia e à DGS (a de Saúde, ainda não a
de Segurança) para protestar. Esta é a distopia do
confinamento, (mal) entendido como abandono obrigatório do espaço público, como
se nele tivesse deixado de ser possível ser-se trabalhador, ser-se cidadão.
É urgente regressar ao espaço
público, à cidadania plena, reapropriarmo-nos da dignidade que o vírus, afinal,
não nos roubou, mas que demasiada gente dela quer prescindir
Uma
cidadania suspensa, simbólica,
que se adequa à perfeição ao que o sociólogo canadiano Engin F. Isin chamava em 2004 o cidadão neurótico (agradeço à Isabel Menezes a referência), “neurótico
porque se governa a si próprio através das suas ansiedades, cidadão porque o
governo de si próprio [se limita] a procurar calibrar a sua conduta com a da
[comunidade]”. Neste contexto, o poder político “governa através da
neurose”, com cidadãos que, em vez de serem “capazes de avaliar alternativas
com relativo sucesso para evitar ou eliminar riscos”, trata como gente que,
perante uma grande diversidade de riscos, se mostra “ansiosa, em stress e cada
vez mais insegura, solicitada a gerir a sua própria neurose”. Em suma, aquilo
que há dias um comandante da GNR definiu como o “dever de
cada um ser o polícia de si próprio.”
No momento em que a pandemia desencadeou uma crise social de
consequências bem mais graves, a longo prazo, que as provocadas pelo vírus, e
quando nos repetem um discurso pseudoprofético de que estamos a entrar num novo
mundo, é urgente regressar ao espaço público, à cidadania plena,
reapropriarmo-nos da dignidade que o vírus, afinal, não nos roubou, mas que
demasiada gente dela quer prescindir, e obrigar os outros a fazê-lo. O sentido
de comunidade não está no medo paralisante. Está na cidadania plena. E se esta
se manifesta na rua, é na rua que está a cidadania.
Historiador
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