sexta-feira, 15 de maio de 2020

«Nunca mates o Mandarim!»



Foi o que disse Teodoro, pouco antes de morrer, depois de se ter abotoado com os grossos cabedais daquele, que lhe vieram parar às mãos por ter tocado uma campainha, ao seguir o conselho de uma história - “Brecha das Almas” - que lia sonolentamente, no seu quarto de pensão da D. Augusta, conselho corporizado por um fulano vestido de negro que o induziu a tocar mesmo a campainha. A verdade é que Teodoro, reconhecendo as verdades do figurão de negro que soubera tão persuasivamente descrever a vida injusta de amanuense pelintra que levava, tocou a campainha e enriqueceu, vivendo à grande, de todos invejado e naturalmente passando a ser explorado com o servilismo próprio destes casos. Bem que se arrependeu, coitado, e quis reparar o mal feito à família do mandarim, como expiação, mas saiu-se mal, maltratado que foi lá na China. Vem o caso, que acho que já contei, e que é de todos sabido, a propósito das reflexões de Manuel Loff, que me escaparam na altura, faz hoje oito dias, mas a sua actualidade elegante mantém-se, tal como a dos conselhos de Teodoro, ao morrer, sobre o sabor valioso do pão que “as nossas mãos ganham dia-a-dia”, alguns mesmo amassando-o à vista de todos, em programas recentes das nossas televisões de distracção diária, nada a ver, pois, com o pão que o diabo amassou da história de Teodoro, e que era o dele antes da ajuda do mesmo diabo no uso da campainha.
De facto, nunca, como agora, sentimos tanto a verdade das afirmações de Manuel Loff sobre a nossa cidadania simbólica e bem protegida pelo nosso governo, acantonados na nossa casinha tão modesta como a Milu disse que a dela era, e de que o Teodoro afinal deve ter tido saudades, pois tentou fingir-se pobre e voltar à casa de hóspedes da D. Augusta, e ao seu trabalho de amanuense, mas, julgando-o falido, foi de todos novamente enxovalhado - (o que o fez, por desforço, retomar o rico bago do mandarim chinês e a vida de estadão que ele lhe proporcionara).
Da nada lhe valeu o arrependimento final, para mais com alucinações, como de nada valerá o queixarmo-nos da vida confinada que levamos, cidadãos que somos, todavia, bem-mandados, como escreveu Manuel Loff, e que, por o sermos, formamos uma cidadania essencialmente simbólica, sobretudo passada na casinha. Ou na rua, tanto faz, o simbolismo é que conta. O governo zela por nós, e manda que nos confinemos e que usemos máscara, para se não nos notarem os esgares da preocupação, engulamos, pois, o ar que expiramos para a máscara, cozinhemos assim o nosso futuro, cidadãos do mundo, ainda que preferíssemos uma campainha providencial para liquidar um mandarim dos bons. Mas não sei se seria suficiente a riqueza deste, para nos agasalhar e proporcionar o alimento e o bem-estar futuros.

OPINIÃOCORONAVÍRUS
Cidadania simbólica
O sentido de comunidade não está no medo paralisante. Está na cidadania plena. E se esta se manifesta na rua, é na rua que está a cidadania.
PÚBLICO, 7 de Maio de 2020
Entrámos na pior crise económica e social desde 1929, na de mais rápido agravamento, na mais global (ela é, ao contrário da de 2007-15, e até da de 1929, simultânea em todas as economias à escala planetária), e, aparentemente, uma grande parte dos portugueses parece querer enfrentá-la em silêncio e resignação. Em (re)confinamento, prescindindo de cada vez mais direitos. É o que se deduz da nova campanha contra a forma como a CGTP assinalou o 1.º de Maio, depois da retórica fascizante (desculpem, mas em rigor não há outro termo adequado) da campanha contra as comemorações do 25 de Abril.
Por mais cuidados com que a CGTP tenha convocado umas poucas centenas de pessoas para a rua, por mais respeito pelas regras de distanciamento, este segundo surto de indignação facebookeira continua a sair dessa estranha (sobretudo perigosa para a democracia) religião do confinamento, ou seja, a tese de que ele não é apenas um instrumento de uso racional, mas uma distopia político-moral, na qual se entende que sai da comunidade quem sair do confinamento para exercer os seus direitos, como se fosse um terrorista pelo terror social que estes indignados dizem que provoca.
Marcelo, que sabe bem que o universo político em que se move é este, e que tinha achado, no 25 de Abril, que “é precisamente em situações excepcionais que se impõe costumes e rituais” como os dos feriados “essenciais”, veio agora, com ânimo salomónico, colar-se ao surto e prescrever à CGTP - e a todos nós - uma comemoração “simbólica” do Dia dos Trabalhadores. Que fizesse como a Igreja, “que já cá anda nisto há muito tempo [sic]”, e assinalasse o 1.º (como o 13) de Maio, de forma “simbólica”. Ou seja, fechados em casa.
Há mais de um milhão de trabalhadores em layoff? Façam aí umas coisas bonitas nas redes sociais e já está! Quase 400 mil desempregados? Dêem-lhes três minutos online e façam likes; deve chegar para ser “simbólico”. Trabalhadores que, não ficando atrás de um ecrã caseiro, vão todos os dias trabalhar para a assegurar o direito à saúde, a limpeza, os transportes, a produção e a distribuição do que todos comemos, consumimos, precisamos - e o dia era deles? Ficassem em casa a cumprir a parte que lhes cabe do confinamento.
O jurista e constitucionalista que temos como Presidente, e com ele demasiada gente, presume que todos já somos simples portadores de uma cidadania simbólica. Depois de os três decretos de emergência que assinou, e que viu aprovados por todos os maiores partidos salvo o PCP, terem suspendido direitos dos trabalhadores, presume agora que deveria suspender-se o direito de manifestação. No que este tem de liberdade de expressão, Marcelo redefiniu-o como direito simbólico. Querem os cidadãos protestar? Não o façam em público, e, sobretudo, peçam licença à polícia e à DGS (a de Saúde, ainda não a de Segurança) para protestar. Esta é a distopia do confinamento, (mal) entendido como abandono obrigatório do espaço público, como se nele tivesse deixado de ser possível ser-se trabalhador, ser-se cidadão.
É urgente regressar ao espaço público, à cidadania plena, reapropriarmo-nos da dignidade que o vírus, afinal, não nos roubou, mas que demasiada gente dela quer prescindir
Uma cidadania suspensa, simbólica, que se adequa à perfeição ao que o sociólogo canadiano Engin F. Isin chamava em 2004 o cidadão neurótico (agradeço à Isabel Menezes a referência), “neurótico porque se governa a si próprio através das suas ansiedades, cidadão porque o governo de si próprio [se limita] a procurar calibrar a sua conduta com a da [comunidade]”. Neste contexto, o poder político “governa através da neurose”, com cidadãos que, em vez de serem “capazes de avaliar alternativas com relativo sucesso para evitar ou eliminar riscos”, trata como gente que, perante uma grande diversidade de riscos, se mostra “ansiosa, em stress e cada vez mais insegura, solicitada a gerir a sua própria neurose”. Em suma, aquilo que há dias um comandante da GNR definiu como o “dever de cada um ser o polícia de si próprio.”
No momento em que a pandemia desencadeou uma crise social de consequências bem mais graves, a longo prazo, que as provocadas pelo vírus, e quando nos repetem um discurso pseudoprofético de que estamos a entrar num novo mundo, é urgente regressar ao espaço público, à cidadania plena, reapropriarmo-nos da dignidade que o vírus, afinal, não nos roubou, mas que demasiada gente dela quer prescindir, e obrigar os outros a fazê-lo. O sentido de comunidade não está no medo paralisante. Está na cidadania plena. E se esta se manifesta na rua, é na rua que está a cidadania.
Historiador
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