quarta-feira, 6 de maio de 2020

E ASSIM VAMOS ANDANDO



E aprendendo, com Salles da Fonseca, sobre o próprio grupo viageiro, e sobretudo sobre a força admirável de povos educados segundo modelos de rigor e racionalidade que nos deixam desejosos de que fôssemos, também, assim, trabalhadores, capazes, como os holandeses, de arrancar terras ao mar, ou, como os alemães, de reorganizar rapidamente a terra desfeita pela guerra…

HENRIQUE SALLES DA FONSECA      A BEM DA NAÇÃO, 04.05.20
Foi depois de almoçarmos no «camping» nas cercanias de Amesterdão que nos lançámos a caminho de Alkmaar para atravessarmos o dique do Zuidersee e chegarmos a Zurich. Sim, na Holanda há uma cidade homófona da da Suíça mas esta a que nos dirigiríamos situa-se na Frízia. E lá estamos de novo a falar de vacas. Mas estas são malhadas de branco e preto e vocacionadas para a produção de leite, não de filet mignon como as nossas visitantes espanholas de há uns dias atrás. Ao todo, esta etapa seria da ordem dos 150 quilómetros, 32 dos quais sobre o dique.
E vamos lá nós perceber aquela gente… O Zuidersee é um golfo do Mar do Norte que se estendia por ali dentro até ao centro da Holanda mas o nome significa literalmente «Mar do Sul» (zuider = do Sul; see = mar). Muito bem, admito que tenham sido os donos das vacas leiteiras a baptizar o dito mar que, em relação a eles (mas só a eles) se estende no sentido do Sul. Relativamente a todos os outros holandeses, o Mar do Sul situa-se a Norte. Mas quem somos nós para lhes afinar as bússolas? O que interessa é que todos sejam felizes. O golfo já foi muito mais vasto do que o é actualmente e as suas margens primitivas fazem parte dos territórios ganhos ao mar. Daí, a importância fundamental do dique por que passámos. E se aquela grande obra começou por ser um dique que sustinha as investidas do Mar do Norte, depois de algum tempo passou a ser uma barragem pois os níveis das águas de cada lado passaram a ser diferentes. A muralha passou a barrar a entrada das águas do mar naquela zona que tinha sido um seu golfo. Daqui, o ditado que apregoa que «Deus fez o mundo e os holandeses fizeram a Holanda»[i] (e os portugueses fizeram os mulatos).
Em meados de 1961, Zurich – esta, por que passámos à saída do dique – de cidade tinha o nome pois era, na nossa escala de valores urbanos, uma vila nem grande nem pequena, antes pelo contrário. Bonita, muito bem arranjada a fazer jus à paisagem envolvente que, como o resto da Holanda, me encantou. Uma particularidade que aqui notei pela primeira vez: a erva dos campos era pujante e ruminável até ao alcatrão, sem as bermas carecas típicas da Península Ibérica mais setentrional. A partir desta constatação, passei a observar o mesmo em toda a Europa por onde fomos passando e sobre que contarei…
Perguntado em inglês, um súbdito holandês respondeu-nos cortesmente que por ali não havia nenhum parque de campismo mas que avançássemos em direcção à fronteira alemã que logo lá encontraríamos o que procurávamos. Daquela Zurich a Bremen seriam cerca de 330 quilómetros. Ainda o Sol ia alto, foi decidido avançar até à fronteira a cerca de 10 quilómetros e perguntar a um guarda (se os houvesse) onde seria o parque de campismo mais próximo. Sim, havia guardas fronteiriços que não se cansavam muito com o trabalho e o «camping» mais próximo ficava ali logo à frente, já na Alemanha, a menos do que ao alcance de um tiro de arcabuz. E se a medição da distância parecia reminiscente de uma vintena de anos antes, o ambiente fronteiriço era sereno se não mesmo amistoso. Não sei como eles se entendiam mas nós, na Holanda falámos inglês e na Alemanha falámos alemão.
Era cedo, o Sol ia no ar, assentámos acampamento, demos uns quantos dedos de conversa e vimos a noite chagar. Era igual às que tínhamos visto do outro lado da fronteira. A paisagem é que, sendo verde e bem tratada, não era mignone como no país das vacas leiteiras, das túlipas e da rainha Juliana.
Ainda hoje estou para saber se foi esta rainha que inventou a sopa.
(continua)
Maio de 2020    Henrique Salles da Fonseca
HENRIQUE SALLES DA FONSECA      A BEM DA NAÇÃO, 05.05.20
Parque de campismo todo por nossa conta. Pareceu-nos que lá no outro extremo estava uma autocaravana com aspecto de que estava lá a título permanente ou abandonada. Assentáramos perto da Portaria e das casas de banho. À falta de uso, oxalá que funcionassem. Funcionavam, estavam limpas e se quiséssemos água quente que avisássemos o guarda para ele acender o termoacumulador com antecedência. Tudo bem, entrámos na Alemanha com o pé direito.
No dia seguinte seria a última etapa até ao destino, a Escola da Associação dos Criadores de Cavalos de Hannover, em Verden, onde eu estivera dois anos antes.
Dali, onde estávamos, a fronteira com a Holanda, a Bremen seriam 320 quilómetros e de Bremen a Verdem seriam mais 45. Para chegarmos a horas de podermos escolher camarata e beliches, não poderíamos mandriar. Mas como a mândria não era o nosso timbre, levantámos arraial ao mesmo tempo que o Sol e metemos rodas à estrada.
Agricultura até à berma das estradas. Dois anos antes, ainda vira lavrar com arados puxados por cavalos mas desta vez já não vi senão máquinas. Isto significa que a agricultura não é a parente pobre da economia mas sim a sua base de sustentação: o agricultor produz sabendo de antemão que vende a preços convenientes, ganha dinheiro e investe em equipamentos e produtos correntes  produzidos pela indústria que faz crescer os serviços e assim sucessivamente
Chegados a Bremen, demos uma volta pela cidade que nada tinha de especial para mostrar a não ser a mim. É que, dois anos antes, eu vira ainda ruínas dos bombardeamentos aéreos da guerra de 39-45 e naquela volta já não vi ruínas nenhumas nem nada que se parecesse. E voltei a lembrar-me de uma característica dos alemães que notara na minha visita anterior: alemão vive para trabalhar. E a minha confabulação continuava com a ideia de que latino trabalha para viver. Muitos e muitos anos mais tarde, estudei um pouco a causa desta realidade e fiquei a saber que as teologias protestantes de Calvino e de Lutero afirmam que o trabalho agrada a Deus e que só com efectivo contributo para o bem-comum se alcança a salvação eterna (e não pelo «comércio das bulas»). Mas isto aprendi eu muito mais tarde e naquelas épocas limitei-me ao conhecimento empírico de uma realidade que não sabia explicar. E estava ainda mais longe do Übermensch[i] de Nietzsche que, umas décadas depois da sua morte, veio a influenciar os nazis com a mitológica superioridade germânica.
Mas, na verdade, em dois anos desapareceram por completo os vestígios da guerra e de certeza que não foi sentados numa tasca a fumar narguilé que eles, os alemães, ressurgiram das cinzas como a Fénix. Mas não será só a teologia que é decisiva nesta realidade: o facto de há muitas gerações não haver analfabetismo adulto, é por certo determinante na capacidade individual e colectiva de relançamento de vidas destroçadas. Os pobres de espírito, sim, estendem a mão a caridade por falta de desenrascanço, o empirismo do «know how» inglês e do «Fachwissen» alemão.
E, quando menos esperávamos, estávamos a ver a torre da grande igreja de Verden, aquela que eu sempre achei que tinha dimensão de catedral, tema que nunca investiguei.
Chegados ao estacionamento fronteiro à Escola, logo apareceu o Director que ainda era o meu conhecido Fritz Meyer Stocksdorf que, do «alto» do seu 1,60 m, nos deu as boas-vindas e nos conduziu à Secretaria para os procedimentos administrativos convenientes. Entretanto, nós, os rapazes, fomos logo à procura da camarata em que eu ficara dois anos antes e, como era meu desejo, estava livre e à espera de que a ocupássemos. Só depois desta marcação de território é que fomos ao «pão de forma» buscar os nossos pertences. Era o dia 31 de Julho de 1961, véspera do 1 de Agosto em que começaria o nosso curso de equitação e condução de atrelagens para no final fazermos os exames da Federação Equestre Alemã e passarmos a ter as inerentes medalhas de bronze. Naquelas idades, aquilo era importante para nós.
(continua)
Maio de 2020     Henroque Salles da Fonseca
[i]- Literalmente, «sobre-humano» mas no sentido de «homem superior»

COMENTÁRIOS:
Anónimo 04.05.2020: Zuiderzee por contraponto com o Nordzee do tempo em que ambos eram mares. Hoje, de facto, só o Mar do Norte continua a ser mar. Abr. Jorge
Henrique Salles da Fonseca 04.05.2020: Super interessantes estas suas crónicas. Helena Salazar Antunes Morais

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