sexta-feira, 8 de maio de 2020

Histórias com personagens de suspense



Histórias de vida real, comportamentos insólitos, sobretudo a segunda, prova de mundos um tanto irreais que lembram, de certo modo, o universo estranho de “O Barão” de Branquinho da Fonseca, tio-avô de Salles da Fonseca - mau grado o despretensionismo posto no retrato de uma vivência real, com reacções de adolescentes de diversa educação e cultura, guardadas na memória para sempre.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA    A  BEM DA NAÇÃO, 06.05.20
Camarata de três beliches, seis ocupantes. Nós eramos cinco, o último a caber foi um retardatário que não ficou na história. Significa isto que era alguém perfeitamente normal que não se distinguiu pela positiva nem pela negativa. Ou seja, não era nem cantor da Ópera de Berlim nem membro encartado de alguma estrebaria. Lembro-me, isso sim, de o nosso Comandante ter determinado que, desde que ele estivesse presente, só falaríamos alemão mesmo entre nós, os portugueses. Tudo correu sobre esferas a ponto de não me lembrar de quem ele era.
No primeiro dia do curso, formatura na «parada» da Escola para prelecção quanto às regras gerais seguida de distribuição de cavalo a cada aluno. A égua que me coubera dois anos antes tinha ido para o campo a fim de criar. Desta vez coube-me uma égua meio sangue árabe. Tratava-se de um processo de aligeiramento da raça dos cavalos de Hannover de modo a poderem ser mais maleáveis e competitivos. Esta primeira fase através do sangue árabe veio a ser complementada com o sangue inglês no que resultou num tipo de cavalo actualmente considerado o melhor no mundo desportivo. Há décadas que os hannoverianos são a raça mais representada nos Jogos Olímpicos – seguidos, no Dressage nos últimos anos, pelos lusitanos.
O professor de equitação já não era o de dois anos antes, o Senhor Hansen, que sabia de equitação e ministrava as aulas a cavalo de modo a poder exemplificar a qualquer momento. Desta vez, tínhamos um «rapazola» que sabia de cor o manual de instruções (o livro da Federação Equestre Alemã) e não devia gostar de montar pois nunca o vimos a cavalo a não ser nas vésperas do concurso hípico que se realizou na cidade e em que ele tinha que participar por exigências curriculares. Passo ao lado das matérias técnicas da equitação para não maçar os leitores não iniciados mas digo apenas que o círculo é a base da equitação, que dois anos antes montávamos sempre em círculo no picadeiro e que desta vez nunca recebemos ordem para o fazer. Eu circulava sempre que me parecia conveniente e lá estava o professor a perguntar ironicamente onde é que eu ia. De tarde, o Director sentava-se na tribuna a ver os alunos que ele convidava a montarem outros cavalos. Perguntado, pedi para montar a mesma égua que me tinha sido distribuída para as aulas da manhã. E foi de tarde que consegui pô-la no autoequilíbrio, nas marchas laterais, no recuar e a saída a galope a partir do passo. No final, já saía a galope a partir da paragem. Todo o cavalo com sangue árabe precisa que tenhamos muito mais cuidado com o seu dorso do que com os dos outros cavalos e o trabalho nas aulas de manhã não era o mais conveniente para esta minha nova amiga. Da tribuna, o Director não dava ordens, apenas intervinha se algum de nós cometia um erro. Desta vez, o cavalo dele foi atribuído a uma aluna sueca que era claramente a melhor cavaleira entre todos nós. Passados 59 anos, também o nome dela se me varreu. O professor de condução de atrelagens era o mesmo de dois anos antes, o Senhor Kreutzer. Sabia ensinar e gostava de nos dar as aulas, a nós, portugueses, em francês pois aprendera a língua durante os dois anos que estivera em França como prisioneiro de guerra e que, entretanto, praticava raramente. As lições de condução eram feitas na cidade e sempre pelo mesmo percurso que os cavalos já tinham decorado. Nós, os alunos, só tínhamos que os deixar andar ou parar conforme o tráfego automóvel. Eles, os cavalos, sabiam exactamente onde deviam andar a passo e onde podiam trotar; o galope não fazia parte do currículo para o exame deste grau de bronze. Nem o piso das ruas da cidade seria apropriado ao galope. Nunca mais pratiquei, esqueci quase tudo. Pena.
Concluído o curso, fizemos os exames de equitação e de atrelagens e trouxemos as belas medalhas do tamanho de um relógio de pulso e respectivas miniaturas para pregar na lapela. De bronze, habilitavam-nos a participar em competições regionais na Alemanha. Nenhum de nós os cinco o fez.
Onde estarão as minhas que há décadas as não enxergo…?
Prometo não voltar a incomodar os leitores com mais equitações até porque há outras coisas para contar. Amanhã há mais.
Maio de 2020    Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Maria Botelho, 06.05.2020: Continuam as saborosas crónicas do meu Primo, que neste confinamento necessário, leio com redobrado prazer :)
Henrique Salles da Fonseca 06.05.2020: Luís Mascarenhas gostou disto
Henrique Salles da Fonseca, 6.05.2020: Por mim, pode continuar a falar de equitações. Helena Salazar Antunes Morais
II - ANDA COMIGO - 14  - A FILHA DO LEITEIRO
HENRIQUE SALLES DA FONSECA      A BEM DA NAÇÃO, 07.05.20
A sueca que foi escolhida para, de tarde, montar o cavalo que, supostamente, era o do Director, montava inequivocamente bem, mas ninguém me convence de que a sua estética não pesou na balança da escolha. E, nesta perspectiva, tanto quanto me lembro, as opiniões eram unânimes: imbatível num raio de alguns quilómetros à sua volta. Quis, no entanto, o determinismo histórico que a maré das nossas atenções se desviasse dela e rumássemos alhures.
E, então, foi assim: havia uma aluna muito tímida e que não se aproximava de ninguém. Um verdadeiro «bicho do mato». É claro que chamou a atenção de todos os circundantes mas ninguém se sentiu em condições de ajudar. Éramos quase todos da idade dela e «Santos de casa não fazem milagres». Ou seja, não teríamos ascendente sobre ela para a convencer de que ninguém lhe faria mal. Até que o nosso Comandante, compadecido, sendo o mais velho da classe dos alunos, meteu conversa e ela não fugiu. Para espanto de toda a gente, ela começou a descontrair-se e a interagir com os outros alunos, com quase normalidade. Seria pouco mais velha do que eu, não era alta nem baixa, nem gorda nem magra, nem feia nem bonita, era totalmente banal. Mas tinha uma particularidade: era austríaca e gostava muito de um dia poder montar um cavalo lipizano. Do que a vi montar, creio que ainda lhe faltariam uns anitos para que o pudesse fazer num cavalo ensinado a sério. Mas isso é o que menos interessa para esta história.
O que mais interessa é que ela acabou por contar (quase a confessar) que era filha de mãe solteira, fruto duma relação menos ortodoxa com o Burgomestre (Presidente da Câmara Municipal) de Graz, a segunda mais importante cidade da Áustria, no tempo da anexação pela Alemanha durante o regime nazi. O pai era engenheiro e arquitecto e, apesar disso, vivia agora sob identidade falsa num arredor de Hamburgo a distribuir leite de porta em porta. O outro sonho dela era um dia conhecer o pai. Perguntada, que sim, tinha o telefone dele.
O nosso Comandante ofereceu-se para a levarmos num Domingo a conhecer o Pai. Ficou a pensar e passado um ou dois dias aceitou a oferta. Só que naquelas épocas faltavam umas décadas para aparecerem os telemóveis e seria necessário usar o telefone fixo da Escola, o que não era fácil dado o horário de funcionamento da Secretaria não coincidir com as horas a que o destinatário estaria contactável. Mas tudo se arranjou com a disponibilidade do nosso Director de abrir a Secretaria a hora apropriada para o efeito. Lembro-me perfeitamente de que só à terceira vez é que o contacto se estabeleceu. Foi então combinado o encontro para um determinado Domingo, num certo caféhaus na tal terrinha, pelo meio da tarde, sem mais testemunhas para além do nosso Comandante. Nós, os rapazes, já não tínhamos assistido ao telefonema prévio e não fizemos perguntas. Agora, na visita ao «leiteiro», não apareceríamos sequer pelo que o «pão de forma» tinha de ficar um pouco afastado.
Assim foi e apenas soubemos que, feita a apresentação, o nosso Comandante se retirou e veio ter connosco onde ela viria juntar-se-nos quando o encontro terminasse. Saímos do carro e ficámos por ali a cirandar até que, para nosso espanto, ela veio ter connosco acompanhada do pai. Foi como se nós, os rapazes, ali não estivéssemos e a despedida foi um mero aceno de cabeça do «leiteiro», um breve aceno da mão do nosso Comandante e outro do ex-«bicho de mato». Nem um «obrigado». Apeteceu-nos dizer os palavrões que calámos mas ela não se calou nos 120 quilómetros que nos separavam de Verden. Já então eu decidira vir a ser economista e não psiquiatra pelo que desliguei daquele desabrochar de um entupimento de anos e anos. A partir de então, ela passou a portar-se com toda a naturalidade e a concentrar-se na realização do outro sonho, montar um lipizano.
Em alemão diz-se «Glückliches Ende» quando os ingleses dizem «Happy End».
(continua)      Maio de 2020         Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIO:
Anónimo 07.05.2020: Uma história muito interessante e lindamente contada. Senti-me como se a beber ein limonade e a sonhar com zu solchen heißes schwedisch fraulein eu tivesse estado também por lá.

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