sexta-feira, 22 de maio de 2020

Nem burkas nem máscaras



Pelo Carnaval, a propósito dos bailes de máscaras, creio que caídos em desuso, havia sempre quem referisse a máscara que cada um de nós transporta no rosto que esconde frustrações ou hipocrisias, envoltas em sorrisos. Eram máscaras em sentido abstracto, mas as máscaras de hoje são bem concretas e a mim causa horror a mascarada que vai por essas ruas do mundo, de gente que engole o ar que expira, incómodo e sujo, com o trapo a cobrir o nariz e a desfigurar as gentes. Será passageira esta seca? Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma… será que esta transformação veio para ficar? Não, prefiro a máscara abstracta segundo a banalidade que se afirmava a rir, nos carnavais de outrora. Ao menos essa não embacia os óculos.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA   A BEM DA NAÇÃO, 20.05.20
Por vezes, é bom sermos confrontados com ideias contrárias às nossas convicções mais ou menos profundas, mais ou menos importantes. Mas esse confronto que não seja sistemático que é para não… não quê? … não atirarmos com os «aparelhos» ao ar.
Assim foi que há dias alguém me enviou uma mensagem que, em resumo, dizia que o uso da máscara era um triunfo do Islão sobre o Ocidente e assim foi também que, ao ler uma biografia de Nietzsche, fiquei a saber que ele considerava perversa a exegese cristã. Então, por ironia das circunstâncias, eu que sempre fui contra as burkas e vestimentas quejandas, dou agora por mim a pugnar pelo uso universal das máscaras e eu, que sempre fui contra a não interpretação dos textos sagrados, dou por mim agora a ter que meditar um pouco mais sobre a perversão exegética.
Claro está que as burkas e suas variantes mais ou menos rigorosas são instrumentos da misoginia muçulmana destinadas a humilhar a mulher que, consideram eles, é um ser inferior. Contudo, um dos absurdos deste pensamento é o facto de os homens se estarem a classificar a si próprios como filhos de seres menores. Com a evidência de que, ao abrigo das Leis de Mendel, ao filho de um ser menor não corresponder muito provavelmente um ser superior, o destino da «raça» sucessivamente miscigenada com seres menores, não poderá ser brilhante e, pelo contrário, conduzirá à menoridade completa. Portanto, ao fim de catorze séculos dessa doutrina, das duas, uma: ou eles já estão completamente diminuídos ou a doutrina está errada – até porque as Leis de Mendel, essas sim, estão correctas. Obviamente, a ideia da inferioridade feminina é um sofisma. Quanto ao uso universal – mais ou menos temporário - da máscara, não tem qualquer objectivo de subalternização de ninguém e, pelo contrário, pretende ser uma defesa contra o vírus que por aí anda a mando dos chineses. Obviamente, o Islão nada ganhou sobre o Ocidente e quem divulgou essa ideia absurda perdeu uma boa oportunidade para estar quieto. Já quanto à exegese, temos que reconhecer que o estilo parabólico de muitos textos fundacionais de várias religiões e a própria evolução do estilo literário e da capacidade de entendimento humano, não é compatível com a mera literalidade desses textos estaminais (cujas formas literárias podem hoje ser consideradas desactualizadas para não lhes chamar primitivas), a exegese é indispensável. E se, ao longo dos séculos, essas interpretações foram sucessivamente virtuosas ou perversas, é de esperar que a inteligência do homem moderno consiga expurgar o mau e fazer a apoteose do virtuoso. Mas exegese, sempre. Portanto, o Senhor Friedrich Nietzsche não tinha razão – mas eu estou em crer que se ele tivesse conhecido o actual Sunismo, talvez também concordasse comigo no sentido de que as religiões não podem ser seguidas à letra.
Maio de 2020  Henrique Salles da Fonseca     Tags: avulsos
COMENTÁRIOS:
J.S.M.suave e nas tintas 21.05.2020: É caso para dizer: glória à hermenêutica! Mas como ela nunca é tida nem achada, senão por uma imensa minoria (bendito paradoxo), estou tentado a concordar com Nietzsche: uma coisa é o virtuosismo intrínseco das ideias, outra, bem diferente e muito mais complexa, é a sua prática - e, sobretudo, as suas consequências: mais ominosas num determinado momento, mais virtuosas noutro (na senda do milenar dilema ontológico: essência vs existência). Podemos, se me permite, aplicar o mesmo princípio às ideologias (sem confundir os conceitos - o que seria uma estultícia tonta), cujos resultados são, invariavelmente, os mesmos! Parafraseando Jorge Luís Borges: "A democracia é um erro estatístico, porque na democracia decide a maioria e a maioria é formada de imbecis. As ditaduras fomentam a opressão, as ditaduras fomentam o servilismo, as ditaduras fomentam a crueldade. Mas o mais abominável é que elas fomentam a idiotia."
Henrique Salles da Fonseca 21.05.2020: : Parafraseando Churchill, "a democracia é o pior regime político com excepção de todos os outros". Resta a solução platónica da democracia apenas para os letrados. No caso actual só para quem tivesse aproveitamento em Exame de Estado na conclusão do Ensino Obrigatório. Cumprimentos HSF

Nenhum comentário: