E que não se
ficará, na lista referida por Maria
João Avillez, pelas simplezas dos dados
políticos. Dela constarão também os dados domésticos, pessoais - horas dos
banhos (na praia), das compras nas bancadas do peixe e dos legumes, do pendurar
no arame a sua roupa lavada, tudo, enfim, o que dignifica uma vida humana, a
nada alheia, como é convencional dizer-se, mas que Terêncio disse primeiro,
embora ainda sem televisão à vista, é claro, quando o escreveu há mais de 2000
anos, em peça de amores de filhos e de ralações de pais, tal como hoje
acontece, embora com peripécias de reconhecimentos mirabolantes que dramaturgos
posteriores seguiriam, para darem alegria ao público, com os seus finais
felizes. Nas nossas peças de hoje, a população aprecia presidentes como actores
comuns e prestáveis, e acompanha o nosso nas suas andanças televisionadas em
espaços abertos ou nos mercados de peixe ou legumes mais fechados, e até há
quem lhe faça desconto nos preços, ou lhe ofereça produtos à borla, que ele
fora comprar para, com o seu exemplo, pôr em marcha a economia nacional. O
mesmo faz com a restauração, (digo o nosso presidente), dos primeiros a
arrostar o coronavírus nos restaurantes, docilmente seguido pelas câmaras, hora
do arranque da economia nacional, em falência. Marcelo, um traço de união num
país domesticado. Para que precisa Maria João Avillez de separar as águas, de
dividir entre esquerda e direita, se todos estamos mais aconchegados num centro
amigo, sem coliseu embora, a céu aberto, esperando o cibo?
A lista de Marcelo /premium
Rui Rio desajudou. Foi um susto
descobrir-se que acha que o PSD é social-democrata. Como tal, não vê “vantagem”
em que o partido seja motor de arranque de um grande e vencedor espaço político
à direita.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR,
21 mai 2020
1De
início a estranheza era quase invisível no espaço público. Nem podia ser de
outro modo, a arena começara a pertencer-lhe por inteiro, Belém tinha o segredo
e o exclusivo da sua ocupação. Com o desenrolar das coisas e dos dias, a
estranheza transformou-se em incredulidade: Marcelo esquecera-se da direita? A
garantia da sua muda fidelidade autorizava-lhe a indiferença?
Passou
tempo. O governo somava cativações para apresentar serviço em Bruxelas e
brilhar no burgo enquanto se solidificava a ficção narrativa sobre Passos
Coelho e a media rejubilava com um país “descomprimido” (e com os
telefonemas de Marcelo para os telemóveis directos dos jornalistas, cujos
variam aliás conforme as “saisons”).
A
vida mudara para o rosa, nem era preciso perguntar pela direita: não constava.
Passou
mais tempo: a incredulidade galopou para a irritação. Que opção presidencial era aquela que
ignorava a metade do país que ia do PSD até ao fim da metade? E que casamento
com as esquerdas era aquele que aparentemente apenas cuidava dos convidados da
boda deixando á porta os fieis da primeira hora? Eles e os seus valores, as
suas convicções, os seus lugares políticos? A sua matriz cultural e
civilizacional e a representação de tudo isso? Mas a irritação não passava
disso. Era dócil, pouco audível, passiva. Inorgânica. Inútil, portanto.
2E
assim o tempo se deixou estar.
Pelas más razões, bem entendido: a direita, porque se ia dissolvendo em
incapacidades várias e contradições graves; Marcelo porque tinha mais com
que se preocupar, (com a esquerda justamente). O que restava da direita estava
já no seu bolso e podia sempre dizer para si mesmo que a direita era ele embora
não parecesse.
Ah
e depois havia os estouvadamente contentes e os imprudentemente felizes.
Cito-os porque mesmo que nunca se possa contar com eles para nada de sério, são
muitos e votam. Estavam felizes e contentes com as selfies, a
“descompressão”, o “desanuviamento”; um presidente sempre mesmo ali ao pé da
mão; o falso fim da austeridade; a surpresa do mago Centeno que, quem havia de
dizer ? um dia, num conveniente ápice, passaria a mau da fita; e havia o resto,
afectos, feriados, a proximidade e tutti quanti. Era enfim uma nunca vista
(embora por ambos desejada) unanimidade entre Marcelo e Costa (e os
imprudentemente felizes nunca desgostaram da unanimidade, talvez lhes dê menos
trabalho).
E
assim se esteve. Não um, mas dois, três, quatro anos. Mas há por onde escolher
para, entre coisas boas, falar também de desânimo: a indiferença e a
letargia da sociedade civil face ao estremecer de alguns dos seus alicerces
civilizacionais; a inoperância dos agentes económicos diante da falta de
sustentabilidade da economia, a passividade perante um país que nunca cresce, a
clamorosa falta de investimento público, o rasto de miséria, solidão e atraso
deixado pelos inesquecivelmente trágicos incêndios de 2018… Nada estorvou, nada
se evitou, nada se reviu. As “contas estavam certas” como se isso fosse tudo, a
vida continuou. Poderosa para a esquerda, inexistente para a direita que
deixara de funcionar.
3É
certo que Rui Rio mal chegou, desajudou quanto pôde. Foi um susto quando se
descobriu que ele acha a sério que o PSD é social-democrata. Daí não
encontrar — como dizer? — “vantagem” alguma em que o seu partido seja o motor
de arranque do grande espaço que existe do PSD para a sua direita. Condição sem
a qual, como é óbvio, nada, mas absolutamente nada ,será feito, nem se mudará
de vida. Um erro para o qual não se encontra adjectivação à altura: até um
distraído percebe que é por aí, pelo PSD, que tudo deve, pode e tem de começar.
O distraído também percebe que a tal área que vai do centro ao extremo da
sua direita, apesar de estar hoje circunstancialmente doente, é bem maior do
que as esquerdas a costumam certificar. Etiquetando-a de pequena, irrelevante.,
minoritária, reaccionária, inculta. E “fascista”, claro, quando lhe ocorre — à
direita — alguma lucidez e diz que os nossos reis, às vezes, vão nus.
4Neste
estar de coisas, que pensaria o próprio Marcelo o bem-amado? E como olharia
para os desalentados que partilham a sua matriz política de origem? Resolvi
saber, procurei-o, apanhei-o num avião. Sugeri expor-lhe o que me parecia sério
e pertinente sobre a sua relação não privilegiada com esse espaço político. Era
só combinar passar pela sua casa de Cascais. “Não”: havia já entrevistas
marcadas, prometidas, combinadas. “Então em off,” insisti, “e depois se
escolheria o on”. Apenas queria perguntar-lhe “então o centro e a direita nisto
tudo?” Ou era possível continuar a sinalizar que o assunto nunca o preocuparia,
porque (por definição?) o seu voto estava garantidíssimo mesmo que resignado?
Havia um precedente que nada ajudava:
Marcelo já me mostrara que o tema o irritava. Há uns meses, ainda no mundo
ante-coronavírus, num dia em que eu voltara à questão, ouvira-lhe um quase
ríspido “sempre quero ver se eu não me candidatar e ficar tudo nas mãos da
esquerda, sim, sempre quero ver…” Sub-entendido: sempre quero ver como se
amanham esses queixosos!”
O
argumento era ocioso, não me comoveu.
Insisti
sobre a vantagem de um diálogo franco que desaguasse na explicação do
persistente fastio que lhe causava o seu eleitorado natural mas a resposta foi
desoladora “manda as perguntas por mail”. Apesar de uma agenda “de doidos” e “não sei quantas
horas de voo”, talvez ele arranjasse tempo. Alguma coisa me disse que
arranjaria: nunca, pesem as nossas pesadas discordâncias políticas, que não
pessoais, fiquei sem resposta (há que ser sério quando se fala de gente com
tão altas responsabilidades: nunca é a animosidade o que me move). A amizade é
antiga, trabalhámos muito juntos durante anos, vivemos os dois extraordinárias
coisas em conjunto, rimos do mesmo, temos fortes amizades em comum. Move-me,
isso sim, uma veemente discordância política. Julgo que impassável.
5Mandei
o mail pedido por Marcelo. Voaram de Lisboa para o Índico sete perguntas
consistentes e sempre bem-educadas. Dou um exemplo da boa educação: “com que
argumentos fortes deveria eu contrariar os que me manifestavam preocupações e
perplexidades face à sua actuação”; ou: “em que é que eu me enganara na
apreciação negativa que fazia da sua relação com o centro e a direita”
(cito de memória).
Dias
depois surgiu surpreendentemente (ou deveria dizer habilmente?) uma lista.
Interessante de resto. Dela constavam os gestos, iniciativas, vetos,
démarches, atitudes, deslocações, inaugurações, escrita de prefácios, etc. que
ilustrariam a sua atenção criteriosa aos valores e temas caros ao espaço
político supostamente mal tratado. Uma forma expedita de argumentar
através da sua agenda presidencial. A
lista era obviamente convincente — havia o cuidado com as questões éticas,
sociais, religiosas, culturais, civilizacionais. Tudo aquilo era
indiscutivelmente verdade. Mas…
6Apesar da lista e para além da lista foi-se criando um
pequeno fosso no país. Chame-se-lhe desilusão, corte ou rejeição, ele existe.
Real, mesmo que ainda pequeno, e por isso lhe neguem expressividade: concreto,
mesmo se negado por sondagens e afins. A reeleição fará com que Marcelo não
tenha que dar pelo fosso. Mas como o que tem de ser, tem muita força, ele irá
experimentar o que à cabeça o encherá sempre de temor e horror e que é afinal
ser menos amado, ou pouco amado, ou mal amado. Também não gostará de saber que
dos escombros do centro e da direita há-de começar a surgir, mesmo que
incipiente, desajeitado e inorgânico, um leque de sinais que uma vez aberto se
tornará subitamente transparente. Abrindo uma outra vontade política, para uma
outra história (e não, por favor, não estou a falar do “Chega”). Uma história nova e que, por isso mesmo,
dispensará Marcelo.
Comece ela quando começar, demore o
tempo que demorar, julgo-a irreversível mesmo que o ar do tempo em tudo hoje me
desminta. Sim uma história que por ser nova, dispensará Marcelo, com o qual não
quererá contar. Destoaria. Atrapalharia. Não perceberia.
Onde
quero chegar com isto? À tal lista. Quando ele a ler em voz alta nas
televisões, o seu conteúdo cairá bem. Contribuirá até para a reeleição, a lista
mostra serviço e boas intenções. Os já mencionados imprudentemente felizes —
são imensos – comover-se-ão e darão o braço a Ferro Rodrigues numa grande
unidade presidencial que dará direito à segunda selfie com o reeleito.
Mas vendo bem o que é que isto
interessa?
E Portugal? E nós? E o nosso futuro
colectivo? E a dissolução da sociedade gerada pelo militante relativismo, a
supremacia do pensamento único, a cultura vigente, a inquietante educação
ministrada hoje às gerações de amanhã? E nossa produtividade anã? E os
empresários e criadores de riqueza tão enxotados? E… outras coisas. É que
justamente me parece que há gente que hesita em achar que a Portugal tenha
valido a pena contar com Marcelo Rebelo de Sousa. Contar a sério. De forma a
fazer a diferença para melhor (e como ela (e como ela teria sido precisa!).
Apesar da lista.
COMENTÁRIO:
Alberto Pereira: Totalmente de
acordo. Este Marcelo é uma desilusão!
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