Nem sei o que
mais admirar, se o rigor dos dados numa viagem que marcou, sem dúvida, o
espírito dos viajantes jovens na altura, entre os quais se distingue o seu
relator insaciável, se o esforço hercúleo desses jovens e o seu condutor, em
dias seguidos de deslocações, no incómodo de trepidações e de “confinamento”
forçado num “pão de forma”, por fiel que fosse.
I - ANDA COMIGO – 22
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 15.05.20
Antes
de iniciarmos o percurso do Sol, um breve resumo geográfico do que fizemos até
aqui:
São Martinho do Porto, o ponto
mais ocidental desta viagem;
Kiel, o ponto mais setentrional;
Berlim, o ponto mais oriental;
Turim, o ponto mais meridional.
Sem
contar com as voltas e voltinhas do vai p’ra lá e vem p’ra cá, o Google Maps diz-nos
que, com as estradas actuais (menos quilómetros do que as que percorremos ainda
sem as autoestradas de hoje) a quilometragem foi assim:
Martinho do Porto – Mealhada -
Vilar Formoso = 320
quilómetros
Vilar Formoso – Hendaye = 610 quilómetros
Hendaye – Saumur – Paris = 850 quilómetros
Paris – Bruxelas – Amesterdão –
Alkmaar – Zurich – Bremen – Verden = 960
quilómetros
Verden – Hamburgo – Kiel = 210 quilómetros
Kiel - Hamburgo – Hannover –
Berlim = 540 quilómetros
Berlim – Braunschweig – Frankfurt
– Karlsruhe – Freiburg = 840
quilómetros
Freiburg – Basel – Montreux –
Grande São Bernardo = 340
quilómetros
Grande São Bernardo - Aosta –
Turim = 170 quilómetros
Turim – Ivrea = 50 quilómetros
Total
até aqui = 4890 quilómetros
No
percurso entre Basel e Montreux,
o Google insistiu na passagem por Berne
mas eu não me lembro de ter por lá passado. Ou fomos por uma estrada anterior à
actual autoestrada ou simplesmente fui eu que passei pelas brasas.
A
partir de Ivrea, o regresso
pausado.
Por
montes e vales, continuemos…
Maio de 2020
Henrique Salles da Fonseca
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II - ANDA COMIGO –
23
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO,15.05.20
Um
último olhar pelo pátio do castelo, um aceno a quem ficava e aí vamos nós na rota
do Sol…
A
subida do Vale d’Aosta de Ivrea
ao Grande São Bernardo seriam 120
quilómetros. Voltámos a passar por Aosta propriamente dita, pelos castelos
de apoio aos peregrinos e não tardou muito que a estrada começasse a subir
e a temperatura a dar sinais de que os Alpes não são brincadeira nenhuma.
E assim foi que o fidelíssimo «pão de forma» nos pôs na fronteira lá em cima,
no Grande São Bernardo. Dali a Montreux
seriam os tais 80 quilómetros que já
percorrêramos em sentido inverso. Lá chegados, em vez de seguirmos em frente,
cortaríamos à esquerda para percorrermos a margem sul do lago Léman até Genève.
Foi
nesta etapa muito turística de cerca de 80 quilómetros e rendilhada entre a
Suíça e França que tive pela primeira vez a noção exacta do que é a convivência
banal entre as populações que, mais ou menos por acaso, pertencem a um ou outro
país. Fronteiras simbólicas, só íamos tendo uma ideia algo incerta sobre
se estávamos em França ou na Suíça pelas fardas azuis dos guardas franceses ou
cinzentas dos suíços. E, mesmo assim, estávamos a entrar ou a sair de que país?
E, contudo, muitos anos mais tarde, numa festa num castelo medieval situado
nessa mesma margem sul do Léman, um francês de Annemasse, católico de grande
militância, apontou para a outra margem e referiu «aqueles
protestantes»… Pois é, tempos houve menos laicos em que os
cristãos se matavam por esse tipo de diferenças e Genève foi o berço do
calvinismo. Mas os tempos amainaram e hoje há uma carreira de autocarros
urbanos que começa na Praça de Cornavin, em Genève e acaba em Annemasse, em
França. No entanto, aquele francês – aparentemente, um tipo normal –
ainda vivia de algum modo acossado entre os italianos da Casa de Saboia que por
ali tinha reinado e os calvinistas da outra margem.
Mas
estas foram coisas que vim a saber muito mais tarde. Naquele dia íamos a
caminho de acontecimentos hípicos que não esqueci.
Depois
de marcarmos território com a tenda no camping mais apropriado às nossas
conveniências geográficas, fomos a um concurso hípico em que participavam
militares suíços cujos cavalos estavam à sua guarda individual e que
obrigatoriamente tinham que exibir em certos eventos para demonstrarem o bom estado
físico dos animais como também do respectivo maneio e operacionalidade.
Vimos bons exemplos e vimos outros exemplos. Para
além do mais, tratava-se de importante evento social pois alguns dos militares
eram Oficiais de patentes relativamente altas e os civis que participavam eram
membros dos vários clubes hípicos daquela região e também os havia franceses.
E foi nesse evento que, pela primeira vez, se apresentou no
estrangeiro o nosso professor de equitação, o Mestre Nuno Oliveira que viria a ficar conhecido como o maior
cavaleiro artístico do séc. XX. Mais
particularmente, o Mestre apresentaria um cavalo da criação e propriedade do
nosso Comandante, o «Euclides».
Como nós adivinhávamos que aconteceria, quando a
exibição começou, o tempo parou e deixou de se ouvir uma mosca como se
estivéssemos a assistir a um acto religioso. Não, nada tinha de religião, era
arte pura de equitação sublime e de música clássica portuguesa. Sentiu-se pudor
em retomar as provas hípicas e aquele foi o momento estaminal do Mestre Nuno a
nível mundial. Muitos anos mais tarde, viria a morrer em Perth, na Austrália,
num curso que lá tinha ido ministrar.
O
jantar de gala – nós não tínhamos vestimentas apropriadas mas o anfitrião, o
nosso grande amigo Auguste Baumeister (apesar do nome, era francês) «exigiu» a
nossa presença – foi servido em regime volante nos salões e jardins da
mansão sobre o Léman e a anfitriã, ajaezada ao estilo das grandes écuyères,
apresentou o «Mastoso Stornella» às rédeas longas. Mas a Senhora não tinha
nascido para aquilo e, apesar de no outro lado do recinto, nos bastidores
formados pelos arbustos, o Abel Carvalho (funcionário do Mestre Nuno) acenar
com cenouras e torrões de açúcar, o cavalo esteve-se nas tintas para esses
engodos e virou-se para trás ficando cara a cara com a Senhora Baumeister.
E nessa altura, a música, supostamente doce e suave, foi posta aos berros e nós
iniciámos uma ovação que disfarçou o fiasco equestre da Madame. Mas o jantar
foi um sucesso, toda a gente gostou imenso e o Senhor Baumeister foi um amigo
de Portugal até ao fim dos seus dias.
No
dia seguinte demos mais umas voltas, fomos a Lausanne mais não sei onde, visitámos o campeão brasileiro
Nelson Pessoa que então vivia por lá e fomos a um centro hípico assistir a uma
lição dada por um grande Mestre suíço cujo nome me passou. E quando lá
entrámos, vimos 5 ou 6 alunos cujos cavalos estavam todos de rédea alemã.
Perante o nosso espanto, o professor logo disse que estava a ensinar os
alunos de como usar aquela martingala que ainda hoje considero perniciosa.
Muito bem, continuo a pensar que a rédea alemã só deve ser usada por quem a
sabe usar mas quem a sabe usar não precisa dela para nada.
E
assim foi que nos fizemos companheiros do Ródano à saída de Genève…
(continua)
Maio de 2020
Henrique Salles da Fonseca
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