Outra na ferradura, como atitude aparentemente
inesperada, embora sempre tenhamos reparado numa inconstância de pontos de
vista em Pacheco Pereira, que um dos
seus comentadores, Fernando Pires
de Lima, neste caso, desmascara. Num país em que o fenómeno cultural sempre foi
menosprezado – tirante os da marca, é claro – falar de brilho ou ocultação
entre artistas e artífices é querer, talvez, com essas balelas anti-racistas seduzir a esquerda reinante, a que
PP nunca deixou de pertencer por afinidade
ou ilustração, embora tenha abandonado por conveniência.
Mesmo no meio das dificuldades, a
crise não toca a todos. Não, toca mais a uns do que a outros. E nós ajudamos a
que seja assim.
JOSÉ PACHECO PEREIRA PÚBLICO,
30 de Maio de 2020
A pandemia, que poderia
ter tido um efeito de revelação da realidade, acaba por não o ter, não por
causa do excesso de visibilidade de alguns, mas pelo seu exacto contrário, a
invisibilidade de outros. Porque, em Portugal, em que qualquer manifestação
de preconceito rácico ou étnico é de imediato condenada, é-se indiferente aos
preconceitos sociais. Na verdade, há muita comunicação dos segundos com
os primeiros, algum do racismo é muito mais resultado da força dos preconceitos
sociais do que de uma recusa da raça ou da etnicidade, mas isso não convém ao
chapéu do anti-racismo. Os preconceitos sociais já cá estavam antes, e
vão continuar depois. São uma marca de uma sociedade muito desigual, com uma
forte inveja social, com muita pobreza e exclusão e com uma cultura cívica
muito débil. Tudo isto se reflecte na força de um olhar social, que
torna uns intocáveis e outros, alvo de comportamentos depreciativos, de
desprezo, de ridículo ou, pura e simplesmente, de não-existência, são
ignorados. A
comunicação social, que acha que está acima destas coisas, está profundamente
impregnada de preconceitos sociais, que vêm da sociedade e que não são sentidos
como sendo preconceitos, mas como um pano de fundo inconsciente que faz
valorizações e menorizações, sem se ter sequer consciência do que se está a
fazer.
Não
é preciso ir mais longe do que ver a forma como são tratados criminosos ou
acusados de crimes de colarinho branco, com diferenças culturais e sociais
sobre o modo como são apresentados, mesmo quando se enunciam os seus crimes. Ricardo
Salgado nunca será tratado como Sócrates, Vara ou Lima, que têm em comum terem
vindo “de baixo” e terem subido à custa da política e da corrupção. Aliás, esta é uma velha tradição de diferenciação
social em que, por exemplo, o O Independente era exímio. Não tocava nos
facilitadores que sabiam comer à mesa, e vestir-se à inglesa, mas atacava
com desprezo social os políticos de “meia branca”, que vinham da província e
que não tinham os pergaminhos daquilo a que o jornal chamava, de forma, aliás,
errada e ignorante, a “velha riqueza”. Passemos adiante, para os dias da
peste.
Os feirantes e itinerantes fizeram
manifestações e houve algumas notícias sobre eles, mas nem de perto nem de
longe com o mesmo tratamento e destaque que tiveram as manifestações da cultura
e, acima de tudo, sem qualquer empatia. São ignorados, socialmente invisíveis,
por isso mais mal tratados Os dias da
pandemia mostraram, mais uma vez, a força dos preconceitos sociais no modo como
duas comunidades atingidas pela crise económica são tratadas: a da cultura
e a dos feirantes
e itinerantes. Os artistas, trabalhadores da cultura, músicos,
actores, “criativos”, etc., são um sector em que predomina o trabalho precário,
e foram de imediato atingidos pelo confinamento e pelo encerramento dos
espectáculos. Mas, sem contestar a dureza da crise, têm várias coisas a seu
favor: uma é a grande visibilidade na comunicação social, um tratamento
muito favorável (capas, variadas fotografias, artigos, etc., por exemplo só no
PÚBLICO), que funciona como forma de pressão sobre o poder político, que tende
a responder a quem tem mais voz mediática.
Acresce
que é um sector fortemente subsidiado por Governos e autarquias, em que não
há qualquer escrutínio, porque este é difícil para certas actividades
criativas, mas também porque a pequenez do meio favorece o silenciamento das
críticas por parte dos pares. Se apenas uma pequena parte das críticas que são
feitas em privado, em conversas, fosse pública, ver-se-ia como é feito um julgamento
muito duro das qualidades criativas e do valor de muitas “obras” e “artistas”,
mesmo descontando a inveja do sucesso alheio, que também é muita. Acresce o
facto de muitos serem jovens e, queira-se ou não, os jovens têm sempre uma
vantagem e mais oportunidades do que as pessoas mais velhas.
Mas a cultura é hoje um sector económico e mesmo industrial, e pode e deve ser
tratado sem o mito da intangibilidade da criação, que é também uma expressão
corporativa.
Em
contraste, o sector dos feirantes e itinerantes, constituído, na maioria dos
casos, por pessoas mais velhas e famílias inteiras, viu-se, de um dia para o
outro, sem modo de vida. São os feirantes propriamente ditos, mas também os que
fazem a vida com diversões de Verão, que transportam de terra em terra
carrosséis, carrinhos de feira, circos, e vendedores itinerantes, todos
dependendo de ajuntamentos e de “feiras”. Não é uma vida fácil e há nela muita
pobreza.
Fizeram
manifestações e houve algumas notícias sobre eles, mas nem de perto nem de
longe com o mesmo tratamento e destaque que tiveram as manifestações da cultura
e, acima de tudo, sem qualquer empatia. Muito
são nómadas, alguns são ciganos, o que, numa sociedade
sedentária, significa serem tratados como “feios, porcos e maus”, em contraste
com o mundo glamoroso da cultura. O seu meio e os seus clientes, pela
província fora, são também gente de poucas posses, que não compra a roupa em
lojas finas, e que não come em restaurantes da moda, mas no meio de mesas de
tábuas e bancos de madeira, ou ao lado das carrinhas, no meio do barulho e da
poeira. Milhares de portugueses vivem assim a sua vida de trabalho, muito
mais necessitados, com mais bocas para comer e menos visibilidade. São
ignorados, socialmente invisíveis, por isso mais maltratados.
Poderia escrever o jornal inteiro com
exemplos do papel dos preconceitos sociais na exclusão social. É por isso que,
mesmo no meio das dificuldades, a crise não toca a todos. Não, toca mais a uns
do que a outros. E nós ajudamos a que seja assim. Historiador
TÓPICOS
COMENTÁRIOS
Anjo Caído MODERADOR: Excelente análise. E o mea culpa final é
bem oportuno já que o próprio Pacheco Pereira fala muitas vezes com demasiado
desprezo sobre as massas que adoram futebol e ignoram as bonnae literae... DNG. MODERADOR: Não é o melhor paralelismo para discutir
o tema. Chega a ser infantil.
JoseDCosta INICIANTE:"Se calhar é por não terem
sindicatos afectos à GCTP ou algo assim". Pois, se calhar é!
Jose
INICIANTE: São menos de 1% as grandes empresas que operam em Portugal. Mais
de 99% são micro, pequenas e médias empresas onde trabalha quase toda a força
de trabalho. É nas empresas que está a chave de repartição da riqueza criada em
Portugal ou vinda do estrangeiro. Os prejuízos da pandemia passam por esta chave
de repartição. Tomemos 9 empresas que distribuíram dividendos em 2020, ano da
pandemia. Altri distribui 61,5 milhões para accionistas (200% do total das
remunerações pagas); Amorim 24,6 milhões para accionistas; CTT 16,5 milhões;
EDP 694,7 milhões para accionistas (150% do total das remunerações pagas); GALP
580,5 milhões (250% do total das remunerações pagas); Jerónimo Martins 216,8
milhões para accionistas; NOS 143 milhões para accionistas; Navigator 200
milhões para accionistas; Pestana 8,5. 30.05.2020
Jose
INICIANTE: O poder executivo do Estado na sua resposta à pandemia recorreu
a Lay-Off simplificada várias vezes à vontade do Patrão, sem ouvir os
sindicatos, como prevê a lei. Foi, portanto, a coberto da lei de excepção
Estado de Emergência. Das mais de 99% de micro, pequenas e médias empresas
tiveram acesso à Lay-Off 7,4%. Das grandes empresas tiveram acesso 54,1%. Com a
Lay-Off o Estado paga 84% dos custos salariais. 1 exemplo: sem lay-off a
empresa pagava 1237 €, paga com lay-off 200€. O trabalhado recebia 1000€,
passou a receber 666,7 €. No conjunto 800 000 trabalhadores têm 33% do salário
cortado. A desigualdade social agrava-se com a pandemia. A esta chave de
produção e reprodução das desigualdades sociais, juntam-se as desigualdades bem
enfatizadas por PP neste artigo muito esclarecedor. Tiago
Vasconcelos INICIANTE: A razão do tratamento diferenciado é
simples: dando uns rebuçados aos media e ao sector cultural, ao mesmo tempo que
não aplica cortes ao funcionalismo público, o governo conseguirá comprar o
silêncio dos sectores mais vocais. Os menos vocais -- feirantes e milhares de
outras profissões -- poderão ser ignorados com relativa segurança.
Aónio Eliphis MODERADOR: Correctíssimo Magritte
EXPERIENTE: PP tem toda a razão. Este mesmo contraste poderia ser visto na
diferença com que foram tratados os mercados municipais, alguns que albergam
comerciantes com o perfil destes trabalhadores, e os centros de grande
distribuição alimentar. Além destes casos há os das feiras, descuradas no
planeamento que, com algumas instruções gerais, poderá ser adaptado pelas
autarquias. Clássicos casos de filhos da mãe e filhos da p.... 30.05.2020
nelsonfari
EXPERIENTE: De
facto, um abismo entre os elementos destes dois grupos. Numa crise fora do
quadro das convulsões da macroeconomia, com uma causa com pouca frequência
estatística mas que tudo se conjugava que aparecesse mais tarde ou mais cedo. O
grupo urbano da cultura, com habilitações na área das humanidades,
precarizados, muitos deles oriundos de famílias que se sacrificaram para os
educarem, mas famílias estas sem poder de influência nas ofertas de lugares nas
empresas da teia de poder do regime; os feirantes, oriundos de famílias pobres,
mal acomodadas socialmente, muitos abandonando a escola precocemente, vendo no
comércio organizado em feiras e mercados a sobrevivência. Interessante a
hierarquia dos colarinhos brancos, mas o facto é que, com Salgado e Sócrates,
de diferente pedigree, o dinheiro fugiu.
nelsonfari
EXPERIENTE: E mesmo para os trabalhadores da cultura a escola, como pretenso
elevador social, já teve melhores dias...Os invisíveis também andaram na
escola, desistiram muito cedo e a feira e o mercado foram o destino instável...Os
ignorados aprenderam na escola o sonho, a vida e a poesia, continuaram na
escola de forma esperançosa e acabaram na precariedade, pois mais valia terem
nascido em melhor berço. Foi isto que a professora Maria Rosa Colaço(1935-2004)
viu ao longo da sua vida profissional e escreveu em "Outra
Margem:"...vinham de longe, vinham sozinhos/lá da planície, lá da
cidade/das casas pobres, dos bairros tristes/vinham p´rá escola: a novidade/e
com uma estrela na mão direita/e os olhos grandes e voz macia/ali chegaram para
aprender/o sonho a vida e a poesia". Mais práticos os jotas do centrão. 30.05.2020
tecosta.886754
INICIANTE: Obrigada Pacheco Pereira. Todos nós precisamos de vozes livres
que, sem medo, com tesura e lisura, garantam que ninguém é invisível. Portugal
é a nação que se perde com o fetiche da globalização pela batuta de uma elite
mordomice. A uniformização dos gostos, das culturas e das vivências dos habitantes
das diferentes províncias só conduz a uma maior desertificação territorial e à
perda de identidade.
Espectro EXPERIENTE: Estes "Novos
Miseráveis" é uma crónica, não de Vitor Hugo, não de um militante do BE ou
do PCP, mas de um militante de mais de 30 anos do PSD (que serviu no PSD de
Cavaco, Barroso, Marcelo, Ferreira Leite, Passos Coelho e agora Rio e com
qualquer outro que se lhes siga!). Ele há cada paradoxo! E não é só em Abrantes
que aparecem os fenómenos inexplicáveis! Também na Marmeleira! Lol 30.05.2020
rafael.guerra
EXPERIENTE: A
empatia e a inteligência não são exclusividades duma única cor política. Entre
os mais corrosivos estão aqueles que têm o coração à esquerda mas a carteira à
direita. 30.05.2020
Ceratioidei
EXPERIENTE: Caro Espectro, os fenómenos acontecem no Entroncamento. Em
Abrantes há tigeladas e palha, a arte pasteleira é um verdadeiro espanto,
concordo que é um autêntico fenómeno, mas absolutamente explicável. Já na
Marmeleira, a doçaria é outra, menos... elaborada. De Abrantes não é quem quer,
é quem pode. :) Espectro
EXPERIENTE: Já vi que o Ceratiodei é de Abrantes e é bairrista. Mas tem
razão, era Entroncamento. Mas o mais engraçado é que sempre que quero falar nos
tais fenómenos hortícolas vou ter a Abrantes! DCM
EXPERIENTE: E nem sequer foi preciso Victor Hugo fazer parte do "clube
" deles para sobre eles escrever um romance fenomenal, Daniel A. Seabra INICIANTE: Mais uma boa análise de Pacheco Pereira
com a qual concordo. Por isso raramente perco os seus textos aqui neste jornal.
Pena é que o autor tenha também os seus preconceitos sociais. Exemplo disso é o
que costuma dizer sobre futebol, bem como o seu discurso generalizador e
redutor sobre os elementos das claques de futebol joorge INICIANTE: Tudo o que o homem fala ou
escreve sobre futebol é estupidez. Ponto final. Estupidez e muiiiiita dorzinha
de cotovelo. Então o CR sem estudos é mais ouvido que eu? Plácido Domingo não
se importa, mas o Pacheco, oh o inteligente Pacheco que apoiou veementemente o
brilhante Silva, esse, não acha. É extraordinário. Até dá ternura.
DCM EXPERIENTE: Força P.P. ,há muitos mais a precisar de
uma voz que os prestigie e defenda . 30.05.2020
Caetano
Brandão EXPERIENTE: Só acrescentar a PP, os trolhas e muitos
operários deste país, que durante o confinamento foram claramente descriminados
e ignorados pelo poder e media (claro...), e continuaram nas obras, nas fábricas
como se de seres imunes ao vírus se tratasse... 30.05.2020
Ceratioidei EXPERIENTE: Subscrevo na íntegra. Sublinho: „ Os
preconceitos sociais já cá estavam antes, e vão continuar depois. São uma marca
de uma sociedade muito desigual, com uma forte inveja social, com muita pobreza
e exclusão e com uma cultura cívica muito débil. “ Os feios, porcos e maus,
quem são? Toda a gente sabe quem são. O snobismo é uma expressão de ignorância
e falta de empatia. Só discordo do “nós ajudamos que seja assim“, apesar de
muito contra vontade ser obrigada a dar razão ao JPP. Remar contra a maré
significa frequentemente não sair do mesmo sítio, não recuando e deixar-se
levar, embora não se avance, o esforço para manter a posição é extenuante. O
covid19 evidencia as fragilidades do sistema. Quem vive do trabalho diário não
tem corporação nem sindicato, se não trabalha não come. Simples. 30.05.2020
Fernando Pires de Lima INICIANTE: Os objectivos de Pacheco Pereira são
claros: defender o papel repugnante que têm tido as administrações de
instituições culturais como a Casa da Música e a Fundação de Serralves, esta
última onde Pacheco Pereira tem assento. (Esqueceu-se da declaração de
interesses.) Aí sim, poderíamos falar de colarinhos brancos e inimputabilidade.
Também na cultura falamos de pessoas que estão, em muitos casos, a passar
dificuldades de sobrevivência. Mas Pacheco Pereira está mais interessado em
defender a sua inutilidade em Serralves, usando este discurso populista e
realmente preconceituoso: os artistas (esqueceu-se dos técnicos, dos
formadores, dos assistentes de sala, etc.) vestem-se melhor que os feirantes,
por isso vão ao colo da imprensa? Seja sério e faça o seu papel em Serralves. 30.05.2020
Mario Coimbra EXPERIENTE: ???? Aónio Eliphis MODERADOR: Sendo eu liberal e anti-comunista devo
dizer que Pacheco Pereira é dos poucos intelectuais de esquerda a quem
reconheço mérito. Todavia o JPP apresenta as premissas mas não as conclusões. A
elite reinante no país sempre foi a
"esquerda-intelectual-humanista-caviar" que gosta dos pobres mas
jamais de estar entre os pobres (tenho um colega de trabalho marcadamente de
esquerda e votante fiel no BE, que diz sempre que só viaja em executiva para
evitar maus cheiros). Essa elite - e não, não quero fazer como os populistas e
dizer que "somos nós contra eles" - é formada em ciências humanas, é
erudita, urbana, abastada, politicamente muito correta, e normalmente tem um
desprezo visceral pelos pobres, embora, tal como fazem as beatas que vão à
missa, façam um esforço cívico para não o demonstrar. Aónio
Eliphis MODERADOR: Milton Friedman sempre alertou que, tal
como os beatos católicos, os intelectuais que se arrogam serem os maiores
defensores dos pobres são por norma os que mais contribuem para a pobreza. Essa
elite por norma despreza o mercado livre e o capitalismo, exactamente aquilo
que alimenta o orçamento da grande maioria da população que não vive do estado
ou de heranças, essa elite tem um desprezo por métricas ou por números e um
desconhecimento completo do meio rural.
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