domingo, 31 de maio de 2020

Uma no cravo



Outra na ferradura, como atitude aparentemente inesperada, embora sempre tenhamos reparado numa inconstância de pontos de vista em Pacheco Pereira, que um dos seus comentadores, Fernando Pires de Lima, neste caso, desmascara. Num país em que o fenómeno cultural sempre foi menosprezado – tirante os da marca, é claro – falar de brilho ou ocultação entre artistas e artífices é querer, talvez, com essas balelas anti-racistas seduzir a esquerda reinante, a que PP nunca deixou de pertencer por afinidade ou ilustração, embora tenha abandonado por conveniência.
OPINIÃO CORONAVÍRUS: Os ignorados e os invisíveis
Mesmo no meio das dificuldades, a crise não toca a todos. Não, toca mais a uns do que a outros. E nós ajudamos a que seja assim.
JOSÉ PACHECO PEREIRA   PÚBLICO, 30 de Maio de 2020
A pandemia, que poderia ter tido um efeito de revelação da realidade, acaba por não o ter, não por causa do excesso de visibilidade de alguns, mas pelo seu exacto contrário, a invisibilidade de outros. Porque, em Portugal, em que qualquer manifestação de preconceito rácico ou étnico é de imediato condenada, é-se indiferente aos preconceitos sociais. Na verdade, há muita comunicação dos segundos com os primeiros, algum do racismo é muito mais resultado da força dos preconceitos sociais do que de uma recusa da raça ou da etnicidade, mas isso não convém ao chapéu do anti-racismo. Os preconceitos sociais já cá estavam antes, e vão continuar depois. São uma marca de uma sociedade muito desigual, com uma forte inveja social, com muita pobreza e exclusão e com uma cultura cívica muito débil. Tudo isto se reflecte na força de um olhar social, que torna uns intocáveis e outros, alvo de comportamentos depreciativos, de desprezo, de ridículo ou, pura e simplesmente, de não-existência, são ignorados. A comunicação social, que acha que está acima destas coisas, está profundamente impregnada de preconceitos sociais, que vêm da sociedade e que não são sentidos como sendo preconceitos, mas como um pano de fundo inconsciente que faz valorizações e menorizações, sem se ter sequer consciência do que se está a fazer.
Não é preciso ir mais longe do que ver a forma como são tratados criminosos ou acusados de crimes de colarinho branco, com diferenças culturais e sociais sobre o modo como são apresentados, mesmo quando se enunciam os seus crimes. Ricardo Salgado nunca será tratado como Sócrates, Vara ou Lima, que têm em comum terem vindo “de baixo” e terem subido à custa da política e da corrupção. Aliás, esta é uma velha tradição de diferenciação social em que, por exemplo, o O Independente era exímio. Não tocava nos facilitadores que sabiam comer à mesa, e vestir-se à inglesa, mas atacava com desprezo social os políticos de “meia branca”, que vinham da província e que não tinham os pergaminhos daquilo a que o jornal chamava, de forma, aliás, errada e ignorante, a “velha riqueza”. Passemos adiante, para os dias da peste.
Os feirantes e itinerantes fizeram manifestações e houve algumas notícias sobre eles, mas nem de perto nem de longe com o mesmo tratamento e destaque que tiveram as manifestações da cultura e, acima de tudo, sem qualquer empatia. São ignorados, socialmente invisíveis, por isso mais mal tratados Os dias da pandemia mostraram, mais uma vez, a força dos preconceitos sociais no modo como duas comunidades atingidas pela crise económica são tratadas: a da cultura e a dos feirantes e itinerantes. Os artistas, trabalhadores da cultura, músicos, actores, “criativos”, etc., são um sector em que predomina o trabalho precário, e foram de imediato atingidos pelo confinamento e pelo encerramento dos espectáculos. Mas, sem contestar a dureza da crise, têm várias coisas a seu favor: uma é a grande visibilidade na comunicação social, um tratamento muito favorável (capas, variadas fotografias, artigos, etc., por exemplo só no PÚBLICO), que funciona como forma de pressão sobre o poder político, que tende a responder a quem tem mais voz mediática.
Acresce que é um sector fortemente subsidiado por Governos e autarquias, em que não há qualquer escrutínio, porque este é difícil para certas actividades criativas, mas também porque a pequenez do meio favorece o silenciamento das críticas por parte dos pares. Se apenas uma pequena parte das críticas que são feitas em privado, em conversas, fosse pública, ver-se-ia como é feito um julgamento muito duro das qualidades criativas e do valor de muitas “obras” e “artistas”, mesmo descontando a inveja do sucesso alheio, que também é muita. Acresce o facto de muitos serem jovens e, queira-se ou não, os jovens têm sempre uma vantagem e mais oportunidades do que as pessoas mais velhas. Mas a cultura é hoje um sector económico e mesmo industrial, e pode e deve ser tratado sem o mito da intangibilidade da criação, que é também uma expressão corporativa.
Em contraste, o sector dos feirantes e itinerantes, constituído, na maioria dos casos, por pessoas mais velhas e famílias inteiras, viu-se, de um dia para o outro, sem modo de vida. São os feirantes propriamente ditos, mas também os que fazem a vida com diversões de Verão, que transportam de terra em terra carrosséis, carrinhos de feira, circos, e vendedores itinerantes, todos dependendo de ajuntamentos e de “feiras”. Não é uma vida fácil e há nela muita pobreza.
Fizeram manifestações e houve algumas notícias sobre eles, mas nem de perto nem de longe com o mesmo tratamento e destaque que tiveram as manifestações da cultura e, acima de tudo, sem qualquer empatia. Muito são nómadas, alguns são ciganos, o que, numa sociedade sedentária, significa serem tratados como “feios, porcos e maus”, em contraste com o mundo glamoroso da cultura. O seu meio e os seus clientes, pela província fora, são também gente de poucas posses, que não compra a roupa em lojas finas, e que não come em restaurantes da moda, mas no meio de mesas de tábuas e bancos de madeira, ou ao lado das carrinhas, no meio do barulho e da poeira. Milhares de portugueses vivem assim a sua vida de trabalho, muito mais necessitados, com mais bocas para comer e menos visibilidade. São ignorados, socialmente invisíveis, por isso mais maltratados.
Poderia escrever o jornal inteiro com exemplos do papel dos preconceitos sociais na exclusão social. É por isso que, mesmo no meio das dificuldades, a crise não toca a todos. Não, toca mais a uns do que a outros. E nós ajudamos a que seja assim.    Historiador
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COMENTÁRIOS
Anjo Caído MODERADOR: Excelente análise. E o mea culpa final é bem oportuno já que o próprio Pacheco Pereira fala muitas vezes com demasiado desprezo sobre as massas que adoram futebol e ignoram as bonnae literae...  DNG. MODERADOR: Não é o melhor paralelismo para discutir o tema. Chega a ser infantil.
JoseDCosta INICIANTE:"Se calhar é por não terem sindicatos afectos à GCTP ou algo assim". Pois, se calhar é!
Jose INICIANTE: São menos de 1% as grandes empresas que operam em Portugal. Mais de 99% são micro, pequenas e médias empresas onde trabalha quase toda a força de trabalho. É nas empresas que está a chave de repartição da riqueza criada em Portugal ou vinda do estrangeiro. Os prejuízos da pandemia passam por esta chave de repartição. Tomemos 9 empresas que distribuíram dividendos em 2020, ano da pandemia. Altri distribui 61,5 milhões para accionistas (200% do total das remunerações pagas); Amorim 24,6 milhões para accionistas; CTT 16,5 milhões; EDP 694,7 milhões para accionistas (150% do total das remunerações pagas); GALP 580,5 milhões (250% do total das remunerações pagas); Jerónimo Martins 216,8 milhões para accionistas; NOS 143 milhões para accionistas; Navigator 200 milhões para accionistas; Pestana 8,5. 30.05.2020
Jose INICIANTE: O poder executivo do Estado na sua resposta à pandemia recorreu a Lay-Off simplificada várias vezes à vontade do Patrão, sem ouvir os sindicatos, como prevê a lei. Foi, portanto, a coberto da lei de excepção Estado de Emergência. Das mais de 99% de micro, pequenas e médias empresas tiveram acesso à Lay-Off 7,4%. Das grandes empresas tiveram acesso 54,1%. Com a Lay-Off o Estado paga 84% dos custos salariais. 1 exemplo: sem lay-off a empresa pagava 1237 €, paga com lay-off 200€. O trabalhado recebia 1000€, passou a receber 666,7 €. No conjunto 800 000 trabalhadores têm 33% do salário cortado. A desigualdade social agrava-se com a pandemia. A esta chave de produção e reprodução das desigualdades sociais, juntam-se as desigualdades bem enfatizadas por PP neste artigo muito esclarecedor.    Tiago Vasconcelos INICIANTE: A razão do tratamento diferenciado é simples: dando uns rebuçados aos media e ao sector cultural, ao mesmo tempo que não aplica cortes ao funcionalismo público, o governo conseguirá comprar o silêncio dos sectores mais vocais. Os menos vocais -- feirantes e milhares de outras profissões -- poderão ser ignorados com relativa segurança.
Aónio Eliphis MODERADOR: Correctíssimo     Magritte EXPERIENTE: PP tem toda a razão. Este mesmo contraste poderia ser visto na diferença com que foram tratados os mercados municipais, alguns que albergam comerciantes com o perfil destes trabalhadores, e os centros de grande distribuição alimentar. Além destes casos há os das feiras, descuradas no planeamento que, com algumas instruções gerais, poderá ser adaptado pelas autarquias. Clássicos casos de filhos da mãe e filhos da p.... 30.05.2020
nelsonfari EXPERIENTE:  De facto, um abismo entre os elementos destes dois grupos. Numa crise fora do quadro das convulsões da macroeconomia, com uma causa com pouca frequência estatística mas que tudo se conjugava que aparecesse mais tarde ou mais cedo. O grupo urbano da cultura, com habilitações na área das humanidades, precarizados, muitos deles oriundos de famílias que se sacrificaram para os educarem, mas famílias estas sem poder de influência nas ofertas de lugares nas empresas da teia de poder do regime; os feirantes, oriundos de famílias pobres, mal acomodadas socialmente, muitos abandonando a escola precocemente, vendo no comércio organizado em feiras e mercados a sobrevivência. Interessante a hierarquia dos colarinhos brancos, mas o facto é que, com Salgado e Sócrates, de diferente pedigree, o dinheiro fugiu.
nelsonfari EXPERIENTE: E mesmo para os trabalhadores da cultura a escola, como pretenso elevador social, já teve melhores dias...Os invisíveis também andaram na escola, desistiram muito cedo e a feira e o mercado foram o destino instável...Os ignorados aprenderam na escola o sonho, a vida e a poesia, continuaram na escola de forma esperançosa e acabaram na precariedade, pois mais valia terem nascido em melhor berço. Foi isto que a professora Maria Rosa Colaço(1935-2004) viu ao longo da sua vida profissional e escreveu em "Outra Margem:"...vinham de longe, vinham sozinhos/lá da planície, lá da cidade/das casas pobres, dos bairros tristes/vinham p´rá escola: a novidade/e com uma estrela na mão direita/e os olhos grandes e voz macia/ali chegaram para aprender/o sonho a vida e a poesia". Mais práticos os jotas do centrão. 30.05.2020
tecosta.886754 INICIANTE: Obrigada Pacheco Pereira. Todos nós precisamos de vozes livres que, sem medo, com tesura e lisura, garantam que ninguém é invisível. Portugal é a nação que se perde com o fetiche da globalização pela batuta de uma elite mordomice. A uniformização dos gostos, das culturas e das vivências dos habitantes das diferentes províncias só conduz a uma maior desertificação territorial e à perda de identidade.
Espectro EXPERIENTE: Estes "Novos Miseráveis" é uma crónica, não de Vitor Hugo, não de um militante do BE ou do PCP, mas de um militante de mais de 30 anos do PSD (que serviu no PSD de Cavaco, Barroso, Marcelo, Ferreira Leite, Passos Coelho e agora Rio e com qualquer outro que se lhes siga!). Ele há cada paradoxo! E não é só em Abrantes que aparecem os fenómenos inexplicáveis! Também na Marmeleira! Lol 30.05.2020
rafael.guerra EXPERIENTE: A empatia e a inteligência não são exclusividades duma única cor política. Entre os mais corrosivos estão aqueles que têm o coração à esquerda mas a carteira à direita. 30.05.2020
Ceratioidei EXPERIENTE: Caro Espectro, os fenómenos acontecem no Entroncamento. Em Abrantes há tigeladas e palha, a arte pasteleira é um verdadeiro espanto, concordo que é um autêntico fenómeno, mas absolutamente explicável. Já na Marmeleira, a doçaria é outra, menos... elaborada. De Abrantes não é quem quer, é quem pode. :)   Espectro EXPERIENTE: Já vi que o Ceratiodei é de Abrantes e é bairrista. Mas tem razão, era Entroncamento. Mas o mais engraçado é que sempre que quero falar nos tais fenómenos hortícolas vou ter a Abrantes!   DCM EXPERIENTE: E nem sequer foi preciso Victor Hugo fazer parte do "clube " deles para sobre eles escrever um romance fenomenal,   Daniel A. Seabra INICIANTE: Mais uma boa análise de Pacheco Pereira com a qual concordo. Por isso raramente perco os seus textos aqui neste jornal. Pena é que o autor tenha também os seus preconceitos sociais. Exemplo disso é o que costuma dizer sobre futebol, bem como o seu discurso generalizador e redutor sobre os elementos das claques de futebol    joorge INICIANTE: Tudo o que o homem fala ou escreve sobre futebol é estupidez. Ponto final. Estupidez e muiiiiita dorzinha de cotovelo. Então o CR sem estudos é mais ouvido que eu? Plácido Domingo não se importa, mas o Pacheco, oh o inteligente Pacheco que apoiou veementemente o brilhante Silva, esse, não acha. É extraordinário. Até dá ternura.
DCM EXPERIENTE: Força P.P. ,há muitos mais a precisar de uma voz que os prestigie e defenda . 30.05.2020
Caetano Brandão EXPERIENTE: Só acrescentar a PP, os trolhas e muitos operários deste país, que durante o confinamento foram claramente descriminados e ignorados pelo poder e media (claro...), e continuaram nas obras, nas fábricas como se de seres imunes ao vírus se tratasse... 30.05.2020
Ceratioidei EXPERIENTE: Subscrevo na íntegra. Sublinho: „ Os preconceitos sociais já cá estavam antes, e vão continuar depois. São uma marca de uma sociedade muito desigual, com uma forte inveja social, com muita pobreza e exclusão e com uma cultura cívica muito débil. “ Os feios, porcos e maus, quem são? Toda a gente sabe quem são. O snobismo é uma expressão de ignorância e falta de empatia. Só discordo do “nós ajudamos que seja assim“, apesar de muito contra vontade ser obrigada a dar razão ao JPP. Remar contra a maré significa frequentemente não sair do mesmo sítio, não recuando e deixar-se levar, embora não se avance, o esforço para manter a posição é extenuante. O covid19 evidencia as fragilidades do sistema. Quem vive do trabalho diário não tem corporação nem sindicato, se não trabalha não come. Simples. 30.05.2020
Fernando Pires de Lima INICIANTE: Os objectivos de Pacheco Pereira são claros: defender o papel repugnante que têm tido as administrações de instituições culturais como a Casa da Música e a Fundação de Serralves, esta última onde Pacheco Pereira tem assento. (Esqueceu-se da declaração de interesses.) Aí sim, poderíamos falar de colarinhos brancos e inimputabilidade. Também na cultura falamos de pessoas que estão, em muitos casos, a passar dificuldades de sobrevivência. Mas Pacheco Pereira está mais interessado em defender a sua inutilidade em Serralves, usando este discurso populista e realmente preconceituoso: os artistas (esqueceu-se dos técnicos, dos formadores, dos assistentes de sala, etc.) vestem-se melhor que os feirantes, por isso vão ao colo da imprensa? Seja sério e faça o seu papel em Serralves. 30.05.2020
Mario Coimbra EXPERIENTE: ????  Aónio Eliphis MODERADOR: Sendo eu liberal e anti-comunista devo dizer que Pacheco Pereira é dos poucos intelectuais de esquerda a quem reconheço mérito. Todavia o JPP apresenta as premissas mas não as conclusões. A elite reinante no país sempre foi a "esquerda-intelectual-humanista-caviar" que gosta dos pobres mas jamais de estar entre os pobres (tenho um colega de trabalho marcadamente de esquerda e votante fiel no BE, que diz sempre que só viaja em executiva para evitar maus cheiros). Essa elite - e não, não quero fazer como os populistas e dizer que "somos nós contra eles" - é formada em ciências humanas, é erudita, urbana, abastada, politicamente muito correta, e normalmente tem um desprezo visceral pelos pobres, embora, tal como fazem as beatas que vão à missa, façam um esforço cívico para não o demonstrar.   Aónio Eliphis MODERADOR: Milton Friedman sempre alertou que, tal como os beatos católicos, os intelectuais que se arrogam serem os maiores defensores dos pobres são por norma os que mais contribuem para a pobreza. Essa elite por norma despreza o mercado livre e o capitalismo, exactamente aquilo que alimenta o orçamento da grande maioria da população que não vive do estado ou de heranças, essa elite tem um desprezo por métricas ou por números e um desconhecimento completo do meio rural.

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