Ameaças à estabilidade da U E. O saber de Teresa de Sousa e Paulo Rangel e seus comentadores.
I-ANÁLISE: A “excepção” alemã
Ao pôr em causa uma decisão do
Tribunal Europeu de Justiça, o Tribunal Constitucional alemão está a pôr em causa
a própria ordem constitucional em que assenta a construção europeia.
TERESA DE SOUSA PÚBLICO,
17 de Maio de 2020
1.A
democracia alemã, construída depois da guerra, tem as suas
particularidades, todas elas resultado da sua história traumática na primeira
metade do século passado. A criação
da República Federal, em 1949, teve como preocupação fundamental impedir
qualquer risco de excessiva concentração de poder nas mãos de uma só
instituição ou de um só homem. O Estado foi, por isso, reconstruído numa
base federal, de forma a distribuir o poder por vários níveis de governo, com
relativa autonomia em muitas esferas de decisão. Os estatutos
do Bundesbank deram-lhe uma independência muito maior do que a
que usufruíam os seus congéneres europeus até à criação da União Económica e
Monetária (UEM). Os estatutos do Tribunal Constitucional de Karlsruhe garantem-lhe total
imunidade perante o poder político, através da chamada “cláusula eterna”,
segundo a qual as suas funções não podem ser alteradas. Num país que apenas alcançou
a soberania plena em 1990, na sequência da
unificação e da retirada simbólica das forças aliadas de Berlim, ao qual
estavam vedadas as habituais manifestações nacionais próprias das outras nações
europeias, a economia era o único domínio em que se sentia livre de exibir a
sua força e a sua excelência. O poderoso Deutsche Mark era, de algum modo, o símbolo do orgulho nacional da
Alemanha. Ao longo de décadas, até ao lançamento do euro,
em 1999, a moeda alemã funcionou como referência do sistema monetário europeu,
determinando a sorte de todas as outras.
2.Nunca foi fácil ajustar esta ordem constitucional e
política à crescente partilha de soberania própria da integração europeia, incluindo o quadro legal em que essa partilha assenta
desde o seu início. Não é a primeira vez que o Tribunal
de Karlsruhe levanta problemas ao funcionamento da
união monetária, incluindo a interpretação que o BCE faz dos seus estatutos. Foi
assim durante a crise das dívidas soberanas e da subsequente crise do euro.
Quando, em Junho de 2012, Mario Draghi se viu obrigado a recorrer a medidas “não
convencionais” para impedir a implosão da zona euro, perante as hesitações dos
governos europeus, essas medidas foram sempre votadas pelo sistema de bancos
centrais por “unanimidade menos um” — a frase irónica com que o então presidente do BCE
as anunciava, referindo-se ao voto contrário do Bundesbank. Já nessa
altura, a mais polémica foi
a decisão de compra maciça de títulos de dívida soberana pelo BCE, de modo a
injectar liquidez na economia e a conter a escalada das taxas de juro da dívida
nos países do Sul. A sua decisão, que não levantou objecções por
parte do Governo de Berlim, foi legitimada por um acórdão do Tribunal Europeu
de Justiça de 2018.
A chanceler não pode ignorar
as decisões dos juízes de Karlsruhe, mas também sabe quais seriam as suas
consequências para o euro e para a Europa se o Bundesbank se visse obrigado a
abandonar o programa do BCE. Seria uma catástrofe à qual provavelmente a
Europa, tal como a conhecemos, não sobreviveria
3.Para convencer os alemães a abandonar o Deutsche Mark, Helmut Kohl teve de lhes
oferecer em troca uma arquitectura da UEM decalcada das regras de funcionamento
da moeda alemã e do Bundesbank.
Para além da total independência do BCE, a
Alemanha impôs nos seus estatutos o mesmo objectivo que regia o seu banco central:
o controlo da inflação. Esta obsessão também tem, como sabemos, uma
explicação com origem na trágica história alemã da primeira metade do século
passado. Nos anos de 1930, com a sua economia enfraquecida pelas indemnizações
de guerra e com os efeitos devastadores
do crash financeiro de 1929, a Alemanha viu-se confrontada com uma severa
recessão, com a subida em flecha do desemprego e uma taxa de inflação que tirou
qualquer valor à sua moeda. A crise acabou por abrir as portas à ascensão de
Hitler ao poder, em 1933. É esse trauma vivido durante a República de Weimar que
ainda hoje serve de argumento às exigências alemãs em relação à união monetária
europeia. Manter a inflação em redor dos 2% é o objectivo primordial do BCE, ao
qual todos os outros se devem subordinar. A FED ou o Banco de Inglaterra
fundamentam as suas decisões de política monetária no crescimento e emprego,
podendo reagir com maior vigor a situações de profunda recessão das respectivas
economias, como aliás estamos de novo a ver com a actual crise pandémica.
Vale
a pena recordar tudo isto — que nunca deixámos de saber — para tentar compreender as razões pelas quais os
juízes de Karlsruhe resolveram pôr em causa o Programa de Compras de Emergência
Pandémica (PEPP). Christine Lagarde viu-se confrontada
com o mesmo dilema de Draghi e teve de agir em
conformidade, fazendo o que fazem os bancos centrais perante uma crise:
garantir as condições da recuperação e estabilizar mercados em pânico.
4.Que a decisão do
Tribunal Constitucional alemão de 5 de Maio cria um clima de
incerteza nos mercados sobre a margem de manobra futura do BCE, ninguém tem
dúvidas. Mas a questão fundamental nem sequer é essa. Ao pôr em causa uma
decisão do Tribunal Europeu de Justiça (TEJ), o Tribunal Constitucional alemão está a pôr em
causa a própria ordem constitucional em que assenta a construção europeia.
Sendo a Europa uma organização de direito — isto é, assente
em leis iguais para todos os Estados-membros, que se sobrepõem às leis
nacionais nos domínios de competência da União (por exemplo, a UEM,
o Mercado Interno, a PAC, a Política Comercial ou a Política de Concorrência) —, apenas cabe ao
TEJ decidir sobre a
conformidade dessas leis com os tratados europeus. Se este
princípio em que assenta todo o edifício jurídico da integração pudesse ser
posto em causa por tribunais nacionais, a União ter-se-ia transformado numa
outra entidade, mais próxima de uma organização internacional clássica, mas não
seria o que é.
5.O acórdão do TC alemão levanta um enorme problema
político ao Governo de Angela Merkel. A chanceler não pode ignorar as decisões dos
juízes de Karlsruhe, mas também sabe quais seriam as suas consequências para o
euro e para a Europa se o Bundesbank se visse obrigado a abandonar o programa
do BCE. Seria uma catástrofe à qual
provavelmente a Europa, tal como a conhecemos, não sobreviveria. A
chanceler reagiu com prudência, dizendo diante do Bundestag que “o importante é agir de forma responsável e
inteligente para garantir que o euro continue a existir e vai continuar a
existir.” Como? Merkel
apontou timidamente o caminho: aprofundar a
integração política dos países da zona euro, citando aliás as palavras de Jaques Delors quando a UEM foi
lançada em 1991, com o Tratado de Maastricht. “Não podemos esquecer o que disse Jacques Delors
antes de o euro nascer: precisamos de uma
união política — apenas uma união
monetária não será suficiente.”
O
problema é que a Europa não evoluiu nesse sentido e hoje é a própria Alemanha
que não está disponível para levar a cabo as reformas necessárias para corrigir
os defeitos de origem da união monetária europeia — desde a ausência de um orçamento federal, até à emissão de
dívida conjunta. Por outras palavras, em Berlim a ideia de uma “Europa de
transferências” continua a ser
proibida.
Mais
uma vez, a Alemanha está no centro das decisões que podem ditar o futuro da
Europa. Também aqui
convém olhar um pouco para trás. Até 2005, os
governos alemães defenderam uma revisão dos tratados que levasse a uma união
política europeia assente num modelo federal, aliás semelhante ao da própria
República Federal. Quando, em 2005, a França e a Holanda chumbaram em referendo
uma Constituição europeia, esse caminho foi interrompido e a Alemanha começou a
mudar o rumo da sua política europeia. A crise financeira de 2008 acabou por
desencadear uma crise existencial que só a muito custo a União conseguiu
superar. A Alemanha reforçou enormemente o seu poder, mas continua ainda hoje
mergulhada numa crise de
indefinição sobre o seu lugar na Europa e no mundo.
Será esta nova crise, inesperada e
brutal como nenhuma outra desde a guerra, o momento para a Alemanha resgatar a
Europa? Angela Merkel terá ainda a força e a vontade política para o fazer?
Pode a Europa continuar a arrastar-se indefinidamente sem curar as feridas e as
divisões abertas pela crise anterior, que a actual corre o risco de agravar? Em
2012, Mario Draghi viu-se obrigado a tomar medidas “não convencionais”
para salvar o euro perante a paralisia dos governos europeus, desafiando-os a
saber o que queriam que Europa fosse daí a dez anos. A pergunta volta a ser
legítima e é ainda mais urgente. É essa a única virtude da polémica decisão dos
juízes de Karlsruhe: colocar o Governo alemão e os outros perante as suas
próprias responsabilidades. tp.ocilbup@asuos.ed.aseret
COMENTÁRIOS
JLourenço INICIANTE: Há uma nítida
agenda anti-europeísta em curso. E os verdadeiros beneficiários da morte da
UE, ao contrário do que julgam os nacionalistas, não seriam os Estados- nação,
seriam sim os EUA, a China e a Rússia, que poderiam assim impor mais facilmente
os seus interesses. Alguém acredita que regresso da soberania aos
Estados-membros se traduziria em aumento de poder negocial no comércio
internacional? Os europeus só têm a ganhar com uma UE mais integrada e mais
forte. Manuel Brito.205795 MODERADOR: Não podia estar
mais de acordo. Mas vá tentar convencer disso os euro-cépticos habituais deste
fórum. Ficaremos aliás todos à espera de ver o sucesso do Reino Unido neste
contexto.
Pankratov EXPERIENTE: Cara Teresa de
Sousa, embora nem sempre concorde consigo, os seus artigos são sempre bem
pensados, estruturados, baseados em factos e conhecimento, e mostrando todos os
lados da questão. Numa altura em que o jornalismo atravessa uma fase de
gritante falta de qualidade, está cá você (há mais, mas infelizmente poucos)
com quem aprender algo de novo. Parabéns e continue (e eu aqui para discordar
quando for o caso) JonasAlmeida MODERADOR: Cara TdS, desta
vez escreve ultra vires;-). A Alemanha está apenas a recordar aquilo que todos
devíamos ter aprendido nos tratados de Westphalia e que a ditadura eurocrata
precisa desesperadamente que esqueçamos. Essas lições serão agora recordadas
nos tribunais, em assinaturas do artigo 50, ou em última análise na rua. Da
UE acabou resta apenas a gangrena que terá de ser amputada, a bem ou a mal. Roberto34 INFLUENTE: Excelente como
sempre. Sem entrar nos detalhes jurídicos, a consequência positiva desta decisão
do TCA que foi inclusive referido na entrevista dos Juízos aos jornais Alemães,
é exactamente a abertura do debate e a necessidade de clarificar de uma vez por
todas a união política tão necessária na UE e de criar um verdadeiro Tribunal
Europeu Supremo que possa ter supremacia sobre os outros em matéria exclusiva
da União. Merkel tem aqui a oportunidade com a Presidência Alemã que começa
em Julho para avançar para uma união política. E a crise só reforça ainda mais
essa necessidade e mais integração Europeia. Os cidadãos Europeus pedem
Federalismo.
JDF EXPERIENTE: Estamos a ser
dramáticos. Ok que o tribunal alemão pode estar a tomar decisões ou posições,
mas e outras coisas que também não se cumprem para o bem do funcionamento de
toda a europa? Não querendo ser o ministro holandês, quando não se cumprem
metas orçamentais, e dívidas não se pagam, isto por acaso não contribui para o
mau funcionamento da Europa? Podemos não gostar, mas o dinheirinho é que manda
nisto, com devidas regras claro. Mas se não as cumprimos...de uma outra forma,
está a Alemanha a não cumprir regras importantes. Mas um não cumprimento
orçamental de um país acontece de certo modo, passivamente. A atitude do tribunal
alemão está a ser activa. Sair da U.E. já, é o que eu digo. Chega de discursos
meio esperançosos, para estarmos sempre em críticas que nada está bem. jcmimar INICIANTE: Espero que o
plano para sair da UE já seja muito bom e cheio de ideias e soluções originais.
A altura é, agora, até particularmente favorável. Um êxito garantido,
libertando povo da tirania de Bruxelas, relançando a economia a todo o gás, reforçando
a Segurança Social e o SNS, criando empregos para todos etc. carlitos 1972 INICIANTE: "relançando
a economia a todo gás" !!!! Falar não custa. O que custa é dizer como é
que se relança a economia a todo gás sem o mercado europeu. Palavras ocas,
muitas. Soluções, ZERO. Roberto34
INFLUENTE O
Jmcr estava a ser irónico. Obviamente que nenhum governante iria virar as
costas à Europa. Precisamos dela como de pão para a boca. JonasAlmeida MODERADOR: Concordo com JDF
e com jcmimar - "Espero que o plano para sair da UE já seja muito bom e
cheio de ideias e soluções originais. A altura é, agora, até particularmente
favorável". Isto é hoje favorável para todos excepto as máfias
financeiras. Até o mui europeísta The Economist tem este fim de semana um
editorial "On The Blink", que concede aquilo que só não vê quem não
quer - "the EU remains a conduit for spreading crises", como estamos
à beira de ver este ano ... Carlitos, qto à dependência da Alemanha do mercado
europeu devia saber que este está em contracção há mto ao ponto que só 2 dos
seus 5 maiores destinos de exportação estarem na UE (e o #1 não está). A
Alemanha não precisa da eurozona, o regresso ao marco e à autodeterminação é
sem dúvida uma possibilidade cada vez mais preferível. Roberto34 INFLUENTE: O Jonas gosta
mesmo de aldrabar os factos. A UE é o principal mercado da Alemanha e com a
crise da globalização que aí vem, mais ainda. E não, não está em contração. A
UE tem vindo a crescer continuamente. Não se entende porque insiste o Jonas em
mentiras e invenções Jonas você está tão obcecado com a sua agenda doentia e
ideológica que nem percebe quando alguém escreve uma ironia. E deixe lá de
sugerir artigos que nunca leu. Esse artigo do The Economists defende uma
Federação Europeia. Você gosta mesmo de aldrabar as outras notícias. E já agora
para que precisa de ter várias contas? A manipulação do Jonas é
tão grave que ele escolheu exatamente a parte da frase do artigo que lhe
interessa. Você devia ter vergonha. Para os outros leitores e comentadores esta
é a frase completa: "so long as the EU remains a conduit for spreading
crisis, the risk of collapse will be high". Como podem ver, transforma por
completo o sentido da frase. O facto da UE causar crises, é de agora, não é de
sempre. E o que o artigo to the Economist pede não é o seu fim, é reformas,
integração, a finalização da união monetária, emendas dos tratados, etc.
Ninguém no seu perfeito juízo pede o fim da UE ou do Euro. E o futuro de
Portugal é e permanecerá sempre na Europa. O tempo dos descobrimentos já lá vai
há 500 anos e não há nada para descobrir nem em África nem na Índia, nem nas
Américas. JonasAlmeida MODERADOR: Mete os pés pelas
mãos, "so long as the EU remains a conduit for spreading crisis"
significa que "the EU remains a conduit for spreading crisis". Toma
as pessoas por parvas.
Roberto34 INFLUENTE: Preocupe
se antes em deixar de censurar comentários Jonas. Que os outros preocupam se em
saber interpretar o que está escrito para não irem nas suas lengalengas da
desinformação. Você pensa que nos engana, mas não engana. O que você pretende
dizer com a escolha da expressão é que a UE sempre foi responsável por crises,
mas não é isso que diz a frase e muito menos o artigo. Você vive nos EUA e nem
Inglês sabe.
II – OPINIÃO: O flautista de Hamelin no Tribunal
Constitucional alemão
Quantos
Estados-membros têm tantos pergaminhos democráticos e tantos pesos e
contrapesos como a União Europeia, com uma Rule of Law a toda a prova?
PAULO RANGEL PÚBLICO, 19 de Maio de 2020
1.O
flautista de Hamelin, depois de ter enfeitiçado e afogado milhares de ratos,
responsáveis pela peste bubónica, e como não lhe pagassem, retaliou, encantando
130 crianças. Logo exigiu o resgate, o dinheiro a que julgava ter direito. Em
2020, em plena pandemia, o
músico encantatório, munido da flauta, desceu da Baixa Saxónia até ao
Baden-Württemberg e assentou arraiais em Karslruhe. Na cidade-sede do Tribunal
Constitucional alemão fascinou sete juízes. Lendo o muito que por aí se
escreve, fica a sensação de que o som canoro da flauta chega até nós; e seduz e
encanta, atrai e recruta sequazes. Por fim, como no conto medieval, o
flautista reclamará o resgate. E não faltará gente, meio cativa meio
encandeada, a dizer: “é devido, é devido; que escorreito é o direito!”
2. Há pressupostos da sentença sobre o programa de compra de dívida pelo BCE
que não podem ser tidos por reais e incontestáveis. Diga-se, aliás, que os autores
da sentença estão cientes e conscientes de que não há consenso científico ou
dogmático em torno desses pressupostos e que, em grande medida, a aderência aos
mesmos é mais um acto de vontade do que uma típica inferência jurídica. Tanto é assim que nunca nenhuma decisão do tribunal de
Karlsruhe foi tão fortemente contestada na esfera pública alemã. As suas sentenças são normalmente
recebidas com uma auréola sagrada, não suscitando nunca debate público. A
discussão fica-se pelas paredes das faculdades de direito e pelo circuito dos
juristas; a sociedade, os actores públicos e, em particular, políticos são sempre
deferentes para com aquele julgador. Traumas que ficaram de Weimar e do
nacional-socialismo fizeram do Tribunal a garantia “absoluta” do tempo novo. Desta
feita, a sentença, apesar de aprovada por 7-1, está debaixo de fogo. Não apenas pelas suas
consequências, mas também pelos seus pressupostos. Infelizmente, entre nós, os
seus argumentos são repetidos por alguns com zelo, apego e flauteado
encantamento. Os muitos que contestam a decisão – não sem razões –
pensam mais nas consequências do que nos pressupostos. Estes são
desprezados e desvalorizados pela maioria. Mas merecem ser questionados e
contraditados, porque são fáceis, caducos e simplistas, quase no limite da
narrativa jurídica populista e nacionalista. Estão perto do ar do tempo,
mas longe da melhor ciência jurídica e política. Nada de novo debaixo do sol:
como lembrei na semana passada, as grandes mudanças políticas envolvem
sempre os tribunais. É que se a política visa primeiro a paz e depois a
justiça, o direito visa primeiro a justiça e depois a paz. Tangem-se.
3.A sentença arranca do pressuposto,
entre nós muito glosado, de que a UE não passa de uma “criatura” dos Estados-membros,
na inteira disposição destes, uma espécie de organização internacional
estabelecida e regida à maneira do direito internacional público clássico. No fundo, para quem assim pensa, a UE não tem
existência própria, autónoma e diferenciada: é um puro instrumento dos
Estados-membros. Esta descrição quase pueril não tem qualquer adesão à
realidade. A UE – hoje já praticamente ninguém o nega – é uma entidade
constitucional. Tem uma verdadeira constituição em sentido material,
parcialmente escrita, parcialmente
resultante do costume, da jurisprudência e, por certo, também do equilíbrio
político interestadual. Simplificando, e enfurecendo decerto os que lhe
recusam esse carácter jurídico, é uma constituição à “inglesa” (apesar
dos mecanismos agravados da sua revisão). Uma
constituição que está no entorno constitucional dos Estados respectivos, com a
qual têm de se articular e coordenar, num quadro a que já se chamou de
“interconstitucionalidade” (Lucas Pires). E que outros chamam, num conceito
talvez já não adequado, “transconstitucionalismo” (Marcelo Neves).
Que
isto é assim quase todas as ordens constitucionais dos Estados-membros o
reconhecem. Porque será que as constituições alemã e portuguesa se referem
expressamente à UE enquanto tal? Será porque é um simples artefacto dos
Estados ou será porque consubstancia uma realidade político-constitucional
incontornável, uma realidade que eles não podem deixar de acolher? Não se
trata, obviamente, de um Estado federal nem de um super-Estado, mas cura-se de
uma entidade de natureza constitucional, que os Estados não podem ignorar e de
que não podem dispor (e, muito menos, isoladamente). Podem deixá-la? Sim, podem
– mas nem histórica nem politicamente isso belisca o carácter constitucional.
Podem dissolvê-la ou destruí-la? Sim, podem. Mas quantas federações – bem mais
integradas – se desfizeram já ou estiveram em risco de se desmembrar (a começar
pelos EUA)? A propósito, e que não sirva de exemplo, nos EUA, o
federalismo foi conservado à força. À força militar.
4. O outro pressuposto, velho e relho na discorrência do
Tribunal, é o de que a democracia só é possível no nível estadual. A
UE não é e não pode ser democrática. Vejamos órgão por órgão. O Conselho
Europeu, que é uma espécie de chefe de
Estado colegial em regime semipresidencial e que tem nas suas mãos o indirizzo politico
da UE, é composto pelos 27 chefes de executivo, todos democraticamente eleitos.
O poder legislativo e orçamental está na mão de dois órgãos: o Conselho, que representa os Estados, e o Parlamento, que representa os povos. O primeiro é formado pelos membros dos
governos nacionais, democraticamente legitimados. O segundo é eleito
directamente pelos povos europeus. O poder executivo cabe à Comissão: a
sua presidente é escolhida pelo Conselho Europeu e tem de ser aprovada pelo
Parlamento. Os comissários são indicados pelos governos legítimos e o colégio
tem de ser integralmente aprovado pelo PE. A Comissão está sujeita a
escrutínio parlamentar, aí incluída a moção de censura. Finalmente, cintilam
os tribunais independentes. Quantos Estados-membros têm tantos pergaminhos
democráticos e tantos pesos e contrapesos, com uma Rule of Law a toda a prova?
SIM e NÃO: SIM. José Cutileiro. É um dos meus heróis. A escrita, a ironia, o humor, os
Bilhetes de Colares e os In Memoriam. A cultura, a lucidez, o conhecimento da
natureza humana e dos desígnios dos povos
SIM. Merkel e Macron. A prioridade
que deram à Conferência sobre o Futuro da Europa no documento de ontem é
encorajadora. Pena que a presidência portuguesa a desvalorize tanto.
TÓPICOS: OPINIÃO
EUROPA ALEMANHA TRIBUNAL CONSTITUCIONAL BANCO CENTRAL EUROPEU TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UE COMISSÃO EUROPEIA
COMENTÁRIOS: Armando Heleno EXPERIENTE: Vindo de quem vem, com saber e vivência, dá-me uma
outra tranquilidade que não tinha conseguido enxergar em tantas crónicas que já
li sobre o assunto. Vão pois, os meus agradecimentos. O Sr Dr Rangel, sabe. António Cunha MODERADOR: Vai ser curioso assistir ao papel de Ursula von der
Leyen em toda esta questão. A 'cunha' (salvo seja, uma vez que a Alemanha não é
de cunhas) da Alemanha, na pessoa da nova Presidente será, curiosa e possivelmente,
o antidoto à decisão do TCA; uma espécie de jogo em casa. Vejamos se tem a
força maior - não somente nas palavras - de tomar nas mãos os desígnios que
possam trazer maiores benefícios à maioria dos países. Magritte EXPERIENTE: Não costumo concordar com Rangel, mas confesso que a
minha opinião se alinha com a sua. Embora não seja um europeísta convicto, como
ele, é fácil ver quão bizarra é a decisão do TCA.
Ele apelida-a de populista, eu diria que é estratégica/oportunista, mas
como não acompanho a opinião pública alemã, admito que ele esteja certo.
E depois do vírus, a corda bamba
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