Que põe em causa isso de “valores” como
convenções primárias num mundo de relativismos a respeito de princípios que se
julgavam básicos, na vulgar reflexão humana. E daí que uma deusa da Justiça
deixe de fazer sentido, até mesmo nos tribunais, como se tem visto. Mas o Dr.
Salles ainda é dos da velha guarda que acredita neles, nesses valores sobre que
disserta. Daí esse nome destemido, de “A Bem da Nação” do seu
blog. Assim fosse como ele explica.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 18.05.20
Enviaram-me
há dias um vídeo em que um cavalheiro formal e pesaroso anunciava a morte de um
seu amigo, o «bom-senso». Sem paciência para figuras de retórica nem para
falsos rasgos humorísticos, desliguei.
Mas
fiquei a pensar naquilo e quando procurei o vídeo, já não o encontrei. Resta a
solução de pensar por mim próprio.
Na gíria, há uma certa tendência para
associar - se não mesmo para confundir - «bom-senso», «senso-comum» e «bem
comum» mas desde já faço notar que o «bom» pode não ser «comum» e, vice-versa,
o «comum» pode não ser «bom».
Comecemos
pelo Dicionário Priberam:
Bom-senso – Equilíbrio
nas decisões ou nos julgamentos em cada situação que se apresenta;
Senso comum – Conjunto
de opiniões ou ideias, que são geralmente aceites numa época e num local
determinados.
Bastou,
pois, o recurso ao dicionário para pormos o «senso-comum» fora de jogo – honi
soit qui mal y pense – no que respeita à questão do vídeo.
Assim
sendo, ficam em apreciação o «bom-senso» e o «bem comum», sempre na perspectiva
social, substantiva, de «bom» (daí, o hífen) e de «bem», expressões não
adjectivantes.
Estas
expressões estão directamente vinculadas ao conceito positivo de «bem social»,
substantivo, por contraste com «mal social». Mais especificamente, a boa
conduta social e à sua oposta, o mau comportamento.
Portanto,
o que é a boa atitude social que tem por génese o bom senso?
É aquela que é conforme à harmonia social e se configura pelo
altruísmo, pela humildade e pelo sentido do dever[i].
Mas
se o pacifismo implícito na harmonia (a da concertação social) for posta em
causa pelas doutrinas que têm como base de actuação a luta de classes, o que é
bom para uns é mau para os outros e vice-versa. Ou seja, o «bom» transforma-se de substantivo em adjectivo
e as características acima referidas transformam-se em egoísmo (vs. altruísmo),
em arrogância (vs. humildade) e em irresponsabilidade (vs. sentido do dever),
pedras estas que cada facção arremessa à outra.
Isto
significa que a cada projecto político corresponde um conceito de bem comum e
que a cada um destes corresponde um quadro específico de «bom-senso».
E
em democracia pluripartidária é assim mesmo: periodicamente, o modelo de «bem
comum» é referendado e ganha aquele a que corresponde a maioria de um certo
«bom senso».
Ou
seja, o «bom-senso» não morreu, ele apenas é diferente (eventualmente, muito
diferente) do da opção do cavalheiro formal e pesaroso do vídeo que não vi na
íntegra. Mas, adivinhando, sou capaz de lhe dar alguma da minha simpatia.
Maio
de 2020
Henrique
Salles da Fonseca
[i] - O que é que eu posso fazer por ti sem
o prejudicar a ele, esse terceiro que até pode não estar identificado?
COMENTÁRIOS:
Anónimo
18.05.2020: A tua
descrição, Henrique, encheu-me de curiosidade e levou-me a tentar pesquisar o
obituário do Bom-Senso. Eureka! Encontrei. O senhor formal e pesaroso é o actor
brasileiro (presumo que tenha sido ele a que tiveste acesso) Sílvio Matos.
Terei acertado? O Bom-Senso a que ele alude é mais corriqueiro do que poderias
ter pensado, encontramos mais no nosso dia-a-dia. Ele refere que o inicio da
agonia do Bom-Senso se deveu a uma série de acontecimentos ocorridos no País
Irmão, mas certamente também no outro País-Irmão e em muitos demais Países, da
Família ou não. O que dizer quando os professores são agredidos pelos
encarregados de educação, por repreenderem ou reprovarem, perdão, por “reterem
“ os alunos? O que dizer quando os professores, ao exercerem cabalmente as suas
funções e ao recusarem facilitar a vida aos alunos ou a repreendê-los por mau
comportamento, são transferidos de escola, na decorrência das reclamações dos
progenitores dos alunos? O que
dizer, ainda segundo a nota obituária, quando as vítimas de criminosos ou de
ladrões vêem postos em causa os seus direitos à legítima defesa? O que
dizer quando uma senhora se queima, inadvertidamente, com café entornado de uma
cafeteira eléctrica e o fabricante da dita se vê condenado a pagar uma indemnização
à pretensa vítima? Ainda
segundo o senhor formal e pesaroso, com o falecimento do Bom-Senso
terão desaparecido também a Verdade, a Confiança, a Descrição, a
Responsabilidade, bem como o Juízo, e permanecem,
em contrapartida, quem saiba reivindicar os seus direitos actuais e adquiridos,
quem se isente sempre de culpa e quem se ache permanentemente vítima da
sociedade. Aqui, tenho
a confessar, Henrique, que dificilmente acompanho, como verídica, esta
catástrofe. Abraço. Carlos
Traguelho
Adriano Miranda Lima 18.05:
Interessante reflexão. O problema é que nem sempre o bom senso vence no
escrutínio popular, mas também sempre se perguntará sobre o que é o bom senso.
Para Trump e Bolsonaro, o bom senso manda pôr a economia à frente da
protecção contra a pandemia, enquanto para outros a saúde é a maior riqueza.
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