quarta-feira, 20 de maio de 2020

O anarquismo é que está a dar



Que põe em causa isso de “valores” como convenções primárias num mundo de relativismos a respeito de princípios que se julgavam básicos, na vulgar reflexão humana. E daí que uma deusa da Justiça deixe de fazer sentido, até mesmo nos tribunais, como se tem visto. Mas o Dr. Salles ainda é dos da velha guarda que acredita neles, nesses valores sobre que disserta. Daí esse nome destemido, de “A Bem da Nação” do seu blog. Assim fosse como ele explica.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 18.05.20
Enviaram-me há dias um vídeo em que um cavalheiro formal e pesaroso anunciava a morte de um seu amigo, o «bom-senso». Sem paciência para figuras de retórica nem para falsos rasgos humorísticos, desliguei.
Mas fiquei a pensar naquilo e quando procurei o vídeo, já não o encontrei. Resta a solução de pensar por mim próprio.
Na gíria, há uma certa tendência para associar - se não mesmo para confundir - «bom-senso», «senso-comum» e «bem comum» mas desde já faço notar que o «bom» pode não ser «comum» e, vice-versa, o «comum» pode não ser «bom».
Comecemos pelo Dicionário Priberam:
Bom-sensoEquilíbrio nas decisões ou nos julgamentos em cada situação que se apresenta;
Senso comumConjunto de opiniões ou ideias, que são geralmente aceites numa época e num local determinados.
Bastou, pois, o recurso ao dicionário para pormos o «senso-comum» fora de jogo – honi soit qui mal y pense – no que respeita à questão do vídeo.
Assim sendo, ficam em apreciação o «bom-senso» e o «bem comum», sempre na perspectiva social, substantiva, de «bom» (daí, o hífen) e de «bem», expressões não adjectivantes.
Estas expressões estão directamente vinculadas ao conceito positivo de «bem social», substantivo, por contraste com «mal social». Mais especificamente, a boa conduta social e à sua oposta, o mau comportamento.
Portanto, o que é a boa atitude social que tem por génese o bom senso?
É aquela que é conforme à harmonia social e se configura pelo altruísmo, pela humildade e pelo sentido do dever[i].
Mas se o pacifismo implícito na harmonia (a da concertação social) for posta em causa pelas doutrinas que têm como base de actuação a luta de classes, o que é bom para uns é mau para os outros e vice-versa. Ou seja, o «bom» transforma-se de substantivo em adjectivo e as características acima referidas transformam-se em egoísmo (vs. altruísmo), em arrogância (vs. humildade) e em irresponsabilidade (vs. sentido do dever), pedras estas que cada facção arremessa à outra.
Isto significa que a cada projecto político corresponde um conceito de bem comum e que a cada um destes corresponde um quadro específico de «bom-senso».
E em democracia pluripartidária é assim mesmo: periodicamente, o modelo de «bem comum» é referendado e ganha aquele a que corresponde a maioria de um certo «bom senso».
Ou seja, o «bom-senso» não morreu, ele apenas é diferente (eventualmente, muito diferente) do da opção do cavalheiro formal e pesaroso do vídeo que não vi na íntegra. Mas, adivinhando, sou capaz de lhe dar alguma da minha simpatia.
Maio de 2020
Henrique Salles da Fonseca
[i] - O que é que eu posso fazer por ti sem o prejudicar a ele, esse terceiro que até pode não estar identificado?
COMENTÁRIOS:
Anónimo 18.05.2020: A tua descrição, Henrique, encheu-me de curiosidade e levou-me a tentar pesquisar o obituário do Bom-Senso. Eureka! Encontrei. O senhor formal e pesaroso é o actor brasileiro (presumo que tenha sido ele a que tiveste acesso) Sílvio Matos. Terei acertado? O Bom-Senso a que ele alude é mais corriqueiro do que poderias ter pensado, encontramos mais no nosso dia-a-dia. Ele refere que o inicio da agonia do Bom-Senso se deveu a uma série de acontecimentos ocorridos no País Irmão, mas certamente também no outro País-Irmão e em muitos demais Países, da Família ou não. O que dizer quando os professores são agredidos pelos encarregados de educação, por repreenderem ou reprovarem, perdão, por “reterem “ os alunos? O que dizer quando os professores, ao exercerem cabalmente as suas funções e ao recusarem facilitar a vida aos alunos ou a repreendê-los por mau comportamento, são transferidos de escola, na decorrência das reclamações dos progenitores dos alunos? O que dizer, ainda segundo a nota obituária, quando as vítimas de criminosos ou de ladrões vêem postos em causa os seus direitos à legítima defesa? O que dizer quando uma senhora se queima, inadvertidamente, com café entornado de uma cafeteira eléctrica e o fabricante da dita se vê condenado a pagar uma indemnização à pretensa vítima? Ainda segundo o senhor formal e pesaroso, com o falecimento do Bom-Senso terão desaparecido também a Verdade, a Confiança, a Descrição, a Responsabilidade, bem como o Juízo, e permanecem, em contrapartida, quem saiba reivindicar os seus direitos actuais e adquiridos, quem se isente sempre de culpa e quem se ache permanentemente vítima da sociedade. Aqui, tenho a confessar, Henrique, que dificilmente acompanho, como verídica, esta catástrofe. Abraço. Carlos Traguelho
Adriano Miranda Lima 18.05: Interessante reflexão. O problema é que nem sempre o bom senso vence no escrutínio popular, mas também sempre se perguntará sobre o que é o bom senso. Para Trump e Bolsonaro, o bom senso manda pôr a economia à frente da protecção contra a pandemia, enquanto para outros a saúde é a maior riqueza.


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