sábado, 9 de maio de 2020

L’Aventure c’est l’aventure



Não, não tem a ver com o filme de Claude Lelouch, mas é o prazer que oferecem, de descontracção, graça e, afinal, encanto, pelas bastas referências, estes textos viageiros de Salles da Fonseca, que proporcionam esse prazer, que me lembrei do título de um filme de outrora, do tempo em que o riso saudável era ainda possível.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA   A BEM DA NAÇÃO, 08.05.20
Já referi numa crónica anterior que o nosso professor de equitação (cujo nome esqueci rapidamente) participou no Concurso Hípico Nacional Oficial realizado em Verden enquanto lá estávamos. É claro que fomos assistir, não à prova do dito professor, mas apenas à mais importante que era disputada em duas mãos, uma antes da hora do jantar e a outra depois do dito. No intervalo, um desfile de bandas militares tão ao gosto alemão cuja apresentação, já noite cerrada, concluiu com o Hino Nacional no que foi acompanhado por toda a assistência de pé e que enchia por completo as bancadas do estádio municipal. Não sei o que aconteceu aos cantantes mas eu fiquei com um apertado nó na garganta. Joseph Haydn tinha um certo jeito para a música. Creio que a emoção que encheu o estádio tinha também a ver com o facto de, na sequência da derrota alemã na II Guerra Mundial, aquela parte da Alemanha Federal estar sob ocupação militar inglesa e, daí, um certo exacerbamento diplomaticamente admissível do nacionalismo. Tudo sereno, os cavaleiros ingleses que montavam bem, eram tão aplaudidos como os alemães. E a presença inglesa sempre era de alguma utilidade perante os russos ali tão perto, do outro lado da fronteira inter-alemã.
Noutra ocasião, passámos por um Concurso Regional em que participavam sobretudo cavalos novos com cavaleiros velhos (experientes) e cavaleiros velhos com cavalos novos. Estávamos a falar em português entre nós e um par de cavalheiros perguntou-nos delicadamente que língua estávamos a falar. À nossa resposta, logo um deles exclamou – Ah! Eusébio und sardinien! ao que o outro acrescentou – Amália! Naquelas épocas, diziam os brincalhões, os maiores símbolos de Portugal eram o Eusébio, a Amália Rodrigues, o então Capitão Henrique Calado e o Cardeal Cerejeira. Joking, of course.
Duma vez, fomos à sede da Coudelaria de Holstein, a cerca de 160 quilómetros a Norte, já a caminho da Península da Jutlândia, onde vimos cavalos à moda antiga, cavalões com 1,70 m. ao garrote e volume que os fazia parecidos com vagões dos caminhos de ferro, de garupa horizontal, raça a que pertenciam vários cavalos do nosso Exército e que competiam no «gordo». Lembro-me do «Palpite» (montado pelo Tenente Coronel António Pereira de Almeida) e do «Rovuma» (espero que um leitor me ajude a lembrar quem era o seu cavaleiro).
Doutra vez, visitámos o Depósito de Garanhões do Estado em Warendorf, a 200 quilómetros a Sul da nossa Escola, onde residiam os padreadores de todas as raças cavalares que o Estado Alemão considerava relevantes. Foi aí que vi pela primeira vez um cavalo a pesar mais de uma tonelada. É claro que se tratava de uma raça destinada ao tiro, não à sela, aquilo a que muita gente associa ao francês Percheron.
Como se vê, passeámos muito e, a pretexto dos cavalos, ficámos com uma vasta ideia da Alemanha então acessível a um ocidental. E ainda a procissão mal tinha saído do adro
(continua)
Maio de 2020  Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Henrique Salles da Fonseca 08.05.2020:  Para saber qual o ranking actualizado das raças em competição, ver: https://cwbhorses.com/site/2019/10/14/ranking-de-criadores-e-studbooks/
Henrique Salles da Fonseca, 08.05.2020: O «Rovuma II» era montado pelo Coronel José Carlos Craveiro Lopes. Jorge Gaspar de Barros

II - ANDA COMIGO – 16 - O CAIS DAS ALMAS

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 09.05.20
Com tanta andança, o curso passou como um «augenblick»[i] e, mal demos por nós, já era hora de emalar a trouxa.
E aqui vamos nós…
De Verden rumámos a Norte para darmos uma volta por Hamburgo já que das vezes em que fôramos a Holstein e ali ao lado à procura do «leiteiro», tínhamos passado por lá como raposa por vinha vindimada. E nesta volta vi o mesmo que já tinha visto em Bremen: as ruínas da guerra que ainda vira dois anos antes, tinham desaparecido completamente e a cidade vibrava de energia como se nada tivesse acontecido tão pouco tempo antes. Sim, uma cidade da famosa «Liga Hanseática» que nas matrículas dos seus carros continuava a ostentar «HH» - «Hansastadt Hamburg» significando «cidade hanseática». O mesmo em relação a Bremen com as matrículas «HB»[ii]. E, na falta do famoso «Derby» que naquele ano já se realizara, limitámo-nos a passar no recinto que se situa no meio de um parque enorme no Langnese que é uma zona chique ao longo da margem direita do Elba que, apesar de todas as sarrafuscas, continua a passar por ali a caminho do Mar do Norte.
Retomando o caminho do Norte, o destino era no Mar Báltico, Kiel, a uma centena de quilómetros.
Fomos a casa do Capitão do Porto que era primo da cunhada da tia não sei de quem… Lembro-me de ter visto uns navios atracados na margem oposta do porto e lembro-me duma salada de batata que foi servida ao jantar e de que gostei muito - a ponto de me lembrar dela 59 anos depois de a ter comido. Não tive lata de me servir segunda vez mas vontade não faltou. Mais que isto, olhei para o Báltico ali mesmo à nossa frente, cinzento e encrespado e pensei na tragédia do «Wilhelm Gustloff», navio de cruzeiros alemão torpedeado já em 1945 por um submarino soviético durante a evacuação dos alemães residente em Königsberg na Prússia Oriental entretanto tomada pelo Exército Vermelho. Morreram mais de nove mil pessoas, tantas quantas assim não chegaram a Kiel[iii], precisamente àquele sítio onde eu estava naquele momento - o cais das almas.
E, a propósito de Königsberg, lá ao fundo longínquo deste mar, lembrei-me de dois que lá ficaram enterrados: Immanuel Kant e o nosso Marquês de Alorna, D. Pedro Almeida Portugal, que partira para França desgostoso por o Duque de Lafões, membro da Junta Governativa que funcionou entre a partida da Família Real para o Brasil e a primeira invasão francesa, não o ter deixado defender Olivença das tropas franco-espanholas e que, numa reviravolta, decidira aderir à causa napoleónica e acompanhar o Imperador na acção de sacudir as teias de aranha da velha realeza europeia. Mas a desmedida ambição de Bonaparte levou-o a «esticar a corda» e a ser batido pelo General Inverno russo. E assim foi que o nosso Marquês, arrastando-se na retirada, acabou em Königsberg. E lá está. E se Kant lá pode ficar porque em vida nunca de lá saiu, o nosso Marquês bem podia ser trasladado para Almeirim já que é tempo de fazermos as pazes com a História.
Arrumados os talheres nos pratos a dizer que chegáramos ao fim, dados os dedos de conversa protocolar para que não fosse «comida feita, companhia desfeita», foi a hora da despedida e dos agradecimentos.
Fomos pernoitar num qualquer camping que esqueci e no dia seguinte começaríamos nova grande aventura…
(continua)
Maio de 2020  Henrique Salles da Fonseca
[i] - literalmente, «piscar de olhos» significando «instante»
[ii] - O mesmo relativamente a Hannover que já não sou capaz de recordar como eram. Aguardo que um leitor me ajude – no modelo do pós-guerra, não as matrículas actuais.

MVWilhelm Gustloff, Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
O MVWilhelm Gustloff foi um navio de cruzeiro alemão, torpedeado em 30 de janeiro de 1945 pelo submarino soviético S-13, no Mar Báltico, durante a Operação Hannibal. Foi o o primeiro navio a ser construído com o propósito de servir como cruzeiro. No momento do naufrágio carregava a bordo o total de 10582 passageiros (passageiros e tripulação, total estimado), vitimando 9343 vidas (número estimado). Representa, até hoje, o maior desastre naval, resultante do naufrágio de uma única embarcação, de todos os tempos


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