Era o que se perguntava, ironicamente,
se mostrávamos aversão por uma doutrina que então se seguia na clandestinidade,
porque era proibida, e mais tarde, alegremente, em chufas, quando a
condenávamos abertamente, por cá: “Tu és
dos que acreditam que os comunistas comem criancinhas ao pequeno almoço?” A
mim fizeram-me uma vez essa pergunta, e respondi que sim, que era desses
crentes, mas não nos zangámos por isso, democratas ambos, em liberdade mental
dignificadora. Mas não sabia da missa a metade.
Esta história horrenda contada pelo
estudante Francisco Lopes Matias,
vem
comprovar essa verdade elementar - neste caso alimentar - que
ele descreve com conhecimento de causa, e que os que repudiavam a doutrina, no
seguidismo imposto pelo chefe da nação de então, (que conhecia a doutrina, tendo
escrito sobre ela), apenas o faziam no vago das referências, mas igualmente na
incompatibilidade com uma doutrina totalitarista que repugnava aos seus
preceitos morais. De facto, a história contada por Francisco Lopes Matias, apoiada em dados históricos precisos, além dos “Gulags”
que escritores russos denunciaram, vem provar essas verdades de crimes
cometidos conhecidos, e mais essa da pergunta anedótica sobre a alimentação
comunista ao primeiro almoço, que julgávamos exagero próprio das histórias
infantis de bruxos e bruxas que lêramos na infância, e que, afinal, se tratava de uma
história verdadeira.
Holodomor: história de um genocídio esquecido (ou escondido)
Este texto é sobre um genocídio mas
não sobre o Holocausto. Fala da grande fome da Ucrânia – conhecida por
Holodomor – um outro genocídio provocado por Stalin em 1932/33, mas
praticamente desconhecido
OBSERVADOR, 14 maio 2020
O século XX foi,
provavelmente, o período de tempo em que o ser humano foi mais maltratado e em
que se viu privado dos aspectos mais básicos da sua dignidade. Duas
guerras mundiais, centenas de confrontos locais, ditaduras de todas as espécies
e feitios, terrorismo, revoluções e genocídios fizeram com que a natureza
humana fosse confrontada com aquilo que de pior existe e contabilizaram um
total de mortes que, em conflitos, atingiu o triplo do resto da História. Nunca
houve, assim, um século que fizesse tantas vítimas.
Ora,
diz-se (e bem) que se o diabo tivesse rosto, seria o de Hitler. E para justificar uma afirmação tão categórica e
forte, costumamos dar como exemplo o Holocausto, que, das formas mais cruéis e desumanas, provocou,
em 12 anos (embora a “solução final” das câmaras de gás só tenha sido posta em
prática em 1942) cerca de seis milhões de mortos, executados devido à fé judaica que livremente
professavam ou que apenas herdavam.
Mas não, este texto não é sobre o Holocausto. É sobre a grande
fome da Ucrânia – mais conhecida por Holodomor – um
genocídio em massa provocado por Stalin entre 1932 e 1933, mas praticamente
desconhecido.
Para
explicar este massacre, importa perceber primeiro o contexto espácio-temporal
em que se insere. Mal chegou à liderança da União Soviética, em 1924,
Josef Stalin tomou um conjunto de medidas para garantir a total abolição da
propriedade privada, através da colectivização de todas as terras. Este modelo arrancou, em pleno, no ano de 1929,
quando Stalin decretou a entrega imediata de toda e qualquer
propriedade ao Estado Soviético. Este plano
definia que cada terra (kolkhozes se
formadas por uma cooperativa ou sovkhozes se administradas directamente pelo governo)
deveria obedecer a certas quotas mínimas de produção, entregando depois tudo
o que produzisse ao governo central da URSS, que distribuiria igualmente por
todos os cidadãos, independentemente da região proveniente.
Esta decisão não foi, naturalmente,
consensual, de modo que se veio a verificar, um pouco por todas as 15
repúblicas soviéticas, alguma resistência por parte dos proprietários rurais. O caso mais notório de oposição declarada a esta
medida do I Plano Quinquenal de Stalin foi a Ucrânia, extremamente rica em matérias-primas e fértil em
produtos agrícolas (trigo, beterraba, batata, por exemplo) e que seria, assim,
enormemente prejudicada por esta lei agrícola, visto que, produzindo muito, não
beneficiaria nada desta nova condição. Todavia, entre revoltas e
contestação, o plano começou, à força, a ser aplicado e as quotas agrícolas
exigidas à Ucrânia eram cada vez mais elevadas e desproporcionais, o que,
conjugado com alguma desorganização, resistência e más condições
meteorológicas, começou a causar alguma fome, que já se notava em 1931. Era
preciso passar fome para que se cumprissem as quotas, mas, mesmo assim, Moscovo
só recebeu 39% do valor utópico exigido à Ucrânia.
Perante a realidade ucraniana, Stalin decidiu
tomar medidas implacáveis. Considerou
que a responsabilidade pela produção baixa e insuficiente não era das metas
completamente irrealistas fixadas pelo sistema de quotas ou da desorganização
do sistema de colecta, mas antes daquilo que apelidou de “sabotagem dos
nacionalistas e contra-revolucionários” ucranianos, que queriam, acima de tudo
(na versão quase paranóica do ditador russo), ver o plano de Stalin fracassar.
Na carta que endereçou a Kaganovich, um
dos seus mais íntimos colaboradores, a 11 de Agosto de 1932, afirmava mesmo que
“a Ucrânia é hoje em dia o principal problema (…) É
preciso transformá-la numa fortaleza bolchevique, sem olhar a custos”. E Stalin
seguiu literalmente estas suas palavras.
Como
represália pelo fracasso no plano megalómano que ele mesmo ordenara, Stalin usou a fome para castigar o povo
ucraniano. Entre Setembro e Novembro de 1932,
bloqueou completamente o fornecimento de alimentos à população rural da Ucrânia
(mais de 75% do seu total). As colheitas mantinham-se e o trabalho permanecia
obrigatório, mas não havia mais redistribuição e os camponeses passaram a estar
proibidos de comprar alimento. A comida pura e simplesmente desapareceu.
Para garantir que ninguém fugia a este plano demoníaco, Stalin proibiu o êxodo
dos camponeses para a cidade, interditando também a sua circulação através da
rede de comboios. Tais servos da gleba, os camponeses ucranianos estavam
obrigados a permanecer nas suas terras, inevitavelmente condenados a morrer à
fome nas aldeias geladas da Ucrânia soviética. Qualquer roubo da mais pequena semente de trigo era
condenado, ao abrigo da famosa “lei das cinco espigas”, a dez anos num campo de
trabalho forçado (gulag) ou mesmo à pena capital,
normalmente executada no local. As
conexões com o mundo urbano foram cortadas e os jornalistas proibidos de
visitar o campo ucraniano. Aquele povo estava a morrer à fome, mesmo produzindo
mais do que nunca.
Em apenas um ano, morreram milhões de
ucranianos (as estimativas variam entre os 4 milhões de mortos e os 12 milhões,
que significavam, respectivamente, 12,5% e 37,5% da população total da Ucrânia)
da forma mais lenta e desumana, de fome. Famílias inteiras arrasadas, crianças
que nasceram sem vida, milhares de seres humanos deixados no chão ao abandono,
corpos que nada mais eram do que a pele colada ao osso. Tudo por capricho, vaidade e vingança de
Stalin, que, para mostrar que era o líder supremo e omnipotente da URSS,
ordenou um dos maiores massacres humanos de que há memória. Nunca num
tempo tão curto tanta gente foi morta por tão pouco. Este autêntico genocídio
do povo ucraniano foi baptizado de “Holodomor”, que
advém da expressão ucraniana “Морити голодом”, que significa “matar pela
fome” e foi executado enquanto em grande parte do Ociente se louvava o suposto “milagre económico
soviético”, como foi designado por Walter Duranty, conceituadíssimo jornalista do New York
Times e prémio Pulitzer, que era, no entanto, negacionista do Holodomor e colaborador próximo de Stalin.
Enquanto 40 milhões de pessoas
passavam fome e muitos deles acabavam mesmo por falecer, a URSS exportava trigo
como nunca antes se vira, chegando aos 5.170.000 de toneladas (grande parte
vinda da Ucrânia) vendidas ao estrangeiro. Fazia
assim transparecer para o exterior uma imagem de vitalidade e progresso
económico, enquanto a realidade interna era bem diferente. Em 1933, a produção
ucraniana representou cerca de 32% do total soviético, sendo, de longe, a província mais fértil, próspera e
rica de todo o território da URSS.
Contudo, embora continuassem a exportar, os kolkhozes ucranianos não recebiam sequer uma ínfima parte do alimento que
produziam. Mantinham-se, por ordem do governo, esfomeados e cada vez mais
frágeis.
Pelos motivos aparentemente mais
insignificantes, centenas, se não milhares de camponeses, foram expostos às
maiores torturas e condenados às penas mais horríveis. Numa carta ao próprio Stalin, o oficial
soviético Mikhail Cholokhov descreve a violência policial e do Exército
Vermelho contra o povo ucraniano (“E eis
alguns dos métodos empregados para obter essas 593 toneladas, das quais uma
parte estava enterrada… desde 1918! O método do frio… Os kolkhozianos
são despidos e postos ‘ao frio’, completamente nus, num celeiro. Muitas vezes, são bandos inteiros de kolkhozianos que
são postos ‘ao frio’. O método do calor, em que os pés e as barras das saias das kolkhozianas
são regados com gasolina e, em seguida, ateia-se fogo, que depois é apagado
para começar de novo… No kolkhoz
de Napolovski, um tal de Plotkin, ‘plenipotenciário’ do Comitê do Distrito,
forçava os kolkhozianos interrogados a deitarem-se sobre um forno em brasa,
depois ele os ‘esfriava’ trancando-os nus num celeiro… No kolkhoz de
Lebiajenski, os kolkhozianos eram alinhados ao longo de um muro, e uma execução
era simulada… Eu poderia multiplicar ao infinito esse tipo de exemplos. Não são
‘abusos’, mas o método usual de colecta do trigo…”). Stalin respondeu, cínico,
que “os lavradores não são nenhumas ovelhinhas inocentes”.
A desgraça humana era total e a maldade chegou a níveis
indescritíveis. Sem qualquer
necessidade disso, um líder político ordenou a morte e a fome do seu próprio
povo. O pior do Homem veio ao de cima, não por maldade, mas
por sobrevivência. Tudo era motivo para conseguir um pão. Denunciava-se a
própria família, inventavam-se mentiras sobre os vizinhos, compactuava-se com
os piores crimes do Exército. Por uma fatia de pão. O Holodomor trouxe também
consigo a horrenda realidade do canibalismo. Cantavam tristes as crianças
ucranianas no Inverno de 1932-33: “Fome e frio estão nas nossas casas/ Nada que
comer, nenhum lugar para dormir/ E o nosso vizinho perdeu a sua razão e comeu
os seus filhos”.
Na verdade, milhares de famílias, com
um dos membros mortos pela fome, eram obrigadas, para não seguirem o mesmo
destino, a comê-lo. Numa
entrevista que deu na década de 1990, uma
vítima da grande fome ucraniana contou a sua duríssima experiência, quando
criança: “Um dia, a filha de uma vizinha da nossa aldeia desapareceu. Todos
fomos procurá-la, mas não estava em lado nenhum. Na mesma tarde, entrámos na
casa de uma camponesa e deparámo-nos com a criança procurada. A cabeça estava
em cima de uma mesa e o corpo a assar, para servir de alimento”.
Como esta, houve centenas de
histórias e quantidades incontáveis de crianças foram raptadas para servirem de
alimento. Uma das
alternativas encontradas ao trigo foi o pirojki, um patê feito com fígado humano. Mas a
maldade não fica por aqui. Também em condições muito difíceis, os agentes da
NKVD (polícia secreta do regime soviético) recebiam 200 gramas de pão por cada
corpo que encontrassem. Os corpos eram enterrados em valas comuns, muitas
vezes ainda vivos. A
propósito desta realidade, um ucraniano que viveu este terror descreve que “a
maioria morria lentamente, em casa (…) Os militares entravam nas casas e
perguntavam: “Onde estão os seus mortos?”. Uma vez, havia apenas uma mulher
moribunda deitada na cama. Eles disseram: “Vamos levá-la, ela vai morrer de
qualquer forma”. Ela implorava: “Não me enterrem, que eu ainda estou viva! Eu
quero viver!”. Os guardas insistiram: Para quê vir amanhã por ela? Vai morrer
de qualquer forma!”. Levaram-na e enterraram-na viva”.
Honestamente,
a única diferença entre a planície ucraniana nos anos de 1932 e 1933 e o
Inferno é que, em vez de chamas, ali havia quilómetros intermináveis de neve e
temperaturas na ordem dos 30°C negativos. Enquanto
as valas comuns se enchiam de corpos quase sem carne e completamente
desprovidos da sua dignidade, o trigo de que o povo ucraniano era privado
enchia os cofres da URSS, batendo os recordes de exportação para a Europa e
para o mundo ocidental. Muitos se
esforçaram para descredibilizar aqueles que, como Gareth Jones e Malcom
Muggeridge, denunciaram os horrores da fome ucraniana e só na década
de 1980 é que investigações sérias começaram a ser conduzidas
e relatórios produzidos.
Estas
vítimas não tiveram direito a funerais nem a lápides bonitas. Não tiveram
direito a ser reconhecidas pelos seus nomes, não tiveram direito a memoriais e
praticamente não são referidas nos livros de História. Mas estas vítimas são
como, vós, caríssimo leitor. São como eu, são como nós. Estas vítimas eram
milhões de seres humanos (mulheres, crianças e homens adultos), inocentes,
condenados a morrer da forma mais cruel e morosa, condenados a serem apagados
do mapa e da História. Em apenas um ano, milhões de ucranianos foram
exterminados, por puro sadismo e vingança de um líder e de um governo que devia
ter como única missão defendê-los e às suas vidas. Esquecer o Holodomor ou ficar-lhe
indiferente, tal como esquecer o Holocausto, é demitirmo-nos da nossa
humanidade, é aceitar que, em última instância, nada mais somos como raça e
como espécie do que instrumentos à mercê de alguns facínoras que se outorgam o
direito divino de definir o bem e o mal, quem vive e quem morre. E isto, nunca! Ser-se humano, livre e capaz de amar
verdadeiramente, é a maior graça que podemos ter e receber. Não a entreguemos
de mão beijada àqueles que apenas a querem aniquilar.
Este
texto é, assim, dedicado aos milhões incontáveis de mortos provocados por este
genocídio absolutamente impiedoso. A eles, todo o meu respeito e homenagem. E
se umas breves palavras de um jovem desconhecido nada podem fazer para evitar a
tragédia que aconteceu, têm, no entanto, o poder de lembrar o pior a que o
Homem pode chegar, nunca esquecendo que cabe a cada um de nós, cidadãos do
mundo e seres humanos, impedir que tal se repita.
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