Um homem de fé no terror, apreciado por
muita gente ainda hoje. História bem lembrada e contada por Jaime Nogueira Pinto, nesta época
de moleza (ocidental) mas de indiscutível preocupação, um terrorista universal
sendo invisível e, por ora, incontornável, e a prometer continuidade na
invisibilidade virótica dos tempos vindoiros, o medo semeando, talvez, também,
uma solidariedade bem diversa do terrorismo de antanho … Mas nunca se sabe, que o diabo tece-as, em todos os tempos.
O pai de todos os totalitarismos: 150 anos de
Lenine/premium
Tinha como qualidades determinantes a
manha e a hipocrisia popular russa e uma costela de “despotismo oriental” de
Ivan, o Terrível, e de Pedro, o Grande, “os criadores do Estado pelo terror
despótico
JAIME NOGUEIRA
PINTO OBSERVADOR, 01 mai 2020
Nasceu
há 150 anos, no dia 22 de Abril.
Os pais eram conservadores liberais e partidários da monarquia. A mãe, Maria
Alexandrovna Blank, vinha de uma família de judeus ricos e cultos e tinha
sangue germânico e sueco. O pai, Ilya Ulyanov, subira os degraus da
hierarquia administrativa czarista, recebera uma alta condecoração do Estado e,
por inerência, a categoria de “nobre hereditário”. A velha
aristocracia russa estava em decadência e misturava-se com as novas classes
burguesas enriquecidas.
Vladimir Ilyich Ulyanov chegou à
política aos 17 anos com a morte do irmão mais velho, Alexandre, enforcado por
conspiração para assassinar o czar Alexandre III.
Era o contrário dos heróis
revolucionários imaginados pelo romance político do século XIX (de Victor Hugo, de Jules Valés ou de
Zola) e tinha pouco em comum com os activistas
radicais conhecidos – boémios, generosos, idealistas, como Herzen, ou
anarquistas, como Bakunine. Era um
homem de regras, ascético na vida privada e familiar, talvez com excepção do ménage
à trois, conhecido e consentido, que mantinha com a mulher, Nazdezha Krupskaya, e a
amante, Inessa Armand.
Estudou Direito na Universidade de
Kazan onde foi um excelente aluno.
Muito influenciado pela morte do irmão e pela leitura de Nikolay
Chernyshevsky, passara a interessar-se por
política e pelo activismo político. Chernyshevsky era um intelectual russo,
leitor de Belinsky e Herzen, e o seu livro Que Fazer? marcou de tal forma o jovem Vladimir Ilyich, que,
mais tarde, num momento crucial de luta político-ideológica, usaria como título
a “questão vital” do intelectual russo.
Aos
18 anos tornara-se um adepto fiel – embora crítico – do pensamento e da teoria
da História de Marx, co-autor,
com Engels, do Manifesto
Comunista. Aos 23, é
expulso da Universidade de Kazan por activismo revolucionário e muda-se para S.
Petersburgo onde continua, com algum sucesso, a actividade política radical.
É
preso, julgado, acusado de subversão e condenado a residência fixa na Sibéria. No degredo siberiano, ainda que sempre apoiado e
financiado pela mãe, aprofunda as leituras de História económica e História
militar, escreve, caça, pesca, joga xadrez. É também no exílio que casa com a
sua correligionária Nazdezha Krupskaya.
Em
1900, regressado do degredo e depois de ter publicado O Desenvolvimento
do Capitalismo na Rússia, resolve
partir para a Europa. Tem trinta anos. É por essa altura que lança o jornal Iskra,
(A Centelha) e que
escolhe o pseudónimo Lenine –
lembrando o rio Lana, que corre na Sibéria.
Nicolas Berdiaev, o grande
pensador cristão ortodoxo, autor de As Origens e o Sentido do
Comunismo Russo, deixa-nos um
retrato essencial de Vladimir Ilyich Ulyanov. Para Berdiaev, Lenine, longe
de ser apenas um representante, ou mesmo um filho,
da Inteligentzia russa e de ter uma inteligência e uma erudição
notáveis (sendo que passara parte da vida detido ou no ócio do exílio, com
milhares de horas de biblioteca em Londres, Paris, Zurique), tinha
como qualidades determinantes a manha e a hipocrisia popular russa e uma
costela de “despotismo oriental” de Ivan, o Terrível, e de Pedro, o Grande, “os
criadores do Estado pelo terror despótico”.
Foi, do exílio, o líder incontestado
do movimento bolchevique, aproveitando as debilidades da autocracia russa, que,
a partir de 1905, seguia uma linha enviesada de abertura, brutalidade,
liberalização, reacção. Stolypin, o único homem que ensaiou, como primeiro-ministro,
uma reforma firme mas modernizante e atenta à realidade social, foi assassinado
por um anarquista – como por
vezes acontece aos que, seguindo uma recomendação de Hegel, se opõem à
revolução, tentando fazer a revolução por cima.
Nas permanentes lutas internas do
movimento socialista russo, Lenine acabou por emergir na linha da frente,
argumentando, intervindo, respondendo, vencendo. Não tinha, nessas batalhas
dialécticas, limites ou escrúpulos. Nem fazia prisioneiros.
Estando em Zurique e tendo tomado tarde conhecimento da Revolução de
Fevereiro, é ele quem vê chegada a hora do agora ou nunca. Vê para além da teoria marxista estabelecida e
dos estádios económico-sociais que a revolução é possível e que é preciso saber
agarrar a oportunidade histórica. E sabe que, para agarrar essa oportunidade, vale mais
conhecer bem Maquiavel e Clauzewitz do que Fourier, Marx ou Plekhanov,
ou os socialistas, os intelectuais ou os economicistas europeus.
Faz
uma aliança objectiva através do misterioso
“Parvus” com o governo alemão, que quer a
Rússia fora da guerra e que o usa como instrumento. E segue para
Petrogrado, no famoso comboio da Finlândia. Ali, os bolcheviques, sempre minoritários, sempre batendo-se em todas
as frentes – contra os socialistas revolucionários e contra os
contra-revolucionários de Kornilov –, não perdem tempo nem conhecem barreiras.
E
é Lenine quem
decide a estratégia política e comanda a execução táctica; e depois do indeciso
Kerensky se ter enganado sobre o inimigo principal, é também ele quem dá o golpe
de Outubro.
Golpe
genial, de instinto, de sorte. Mais tarde, o mestre Eisenstein realizará para a propaganda Outubro, a gloriosa
versão oficial; e o inglês John Reed escreverá os Dez dias que abalaram o
mundo. Lenine tem coisas de
Robespierre, e os bolcheviques, que são grandes admiradores dos
jacobinos, seguem os franceses radicais na ideia de que a violência e o terror
são armas absolutamente indispensáveis na revolução. Lenine
não dirige directamente os tchekistas de Djerzinsky mas deixa que o façam por
ele e não dá nunca um passo para os parar. Desde o massacre da
família imperial – com criados, médico, cães – até ao esmagamento dos desvios
“à esquerda” dos marinheiros de Kronstadt. E escreve dezenas de textos a
fundamentar e justificar a violência contra todos os “inimigos da classe”,
contra os quais devia fazer-se o que fosse necessário, incluindo assassiná-los
e às famílias.
A
esquerda gramsciana – e Gramsci tem artigos na época a defender Lenine e o seu sentido “anti-marxista” ou
pelo menos “transmarxista” no golpe de Outubro –, criou a ideia de um Lenine moderado, lúcido, equilibrado que, se durasse
mais uma década, teria tornado dispensável o terror, associado exclusivamente a
Estaline depois da morte de Kirov. O comunismo leninista seria “bom”, mas um
homem mau, intrinsecamente perverso, Estaline, esse sim um “déspota oriental”,
destruíra o belo sonho e o magnânimo edifício revolucionário.
Para
Lenine, a
violência tchequista era uma expressão genuína e necessária da ditadura do
proletariado, já que “não havia maneira de libertar as massas senão suprimindo
os exploradores pela força”. E
apesar de, na teoria marxista pura, as classes em luta
serem só duas – a burguesia e o proletariado –, a odiada classe média, a “pequena burguesia”, devia ser também
suprimida de passagem, até porque, como não tinha existência teórica, convinha
que a realidade validasse a teoria.
Seria inútil dar aqui exemplos das
centenas de textos teóricos e históricos e de decisões práticas de comissários
soviéticos que ordenam acções e campanhas de terror contra grupos sociais
específicos – que vão da aristocracia aos milhões de camponeses que não
alinharam com os bolcheviques.
Trotsky foi particularmente eficaz em conseguir a colaboração
no terror dos quadros militares profissionais, usando as suas famílias como
reféns. Execuções sumárias, liquidações
por categorias sociais ou religiosas, formas de genocídio de grupos designados
como inimigos da Revolução, campos de concentração, a exaltação do
tchequista-chefe, Felix Dzerzhinsky, como grande herói do socialismo e
“guerreiro de aço do novo partido”, tudo isto foi concebido, autorizado,
executado por Lenine. Que não
seria um sádico nem um imbecil, mas que não hesitava nas maiores brutalidades
desde que a razão da História e do Partido o justificassem.
Perante
Lenine, a revolução, a guerra civil, a violenta conquista do poder na Rússia e
as tentativas frustradas de assalto ao Estado pelos comunistas na Hungria, na
Alemanha e na Itália, as classes conservadoras e as nascentes classes médias
europeias não tiveram dúvidas; e com medo que lhes sucedesse o mesmo que
sucedera aos russos, e dado o colapso do Estado Liberal, vão apoiar soluções
“fortes”. Primeiro em Itália, em Outubro de 1922, com Mussolini, um ex-socialista radical;
depois em pronunciamentos militares, como o do general Miguel Primo de Rivera e o 28
de Maio de 1926 em Portugal; e por fim,
em Janeiro de 1933, com a nomeação de Hitler para Chanceler de Reich por
Hindenburgo. Graças a Lenine,
instalava-se na Europa o ciclo dos totalitarismos e dos autoritarismos.
COMENTÁRIOS:
Jaime Fernandes: É curioso verificar que hoje em dia temos grandes ditadores no mundo consentidos
por muitos irresponsáveis políticos: XiPing, Vladimir Putin, Kim Erdogan,
Bashar-al-Assad, Valdiir, Nicolas Maduro, os líderes do Irão e do Iraque, Kim
Jong e uma Europa dividida com os ingleses novamente a olharem para o umbigo.
Assim gostaria de ter uma visão do Dr. Nogueira Pinto sobre para onde caminhamos
com uma crise profunda à porta, e com o petróleo a não valer nada... Uma guerra
poderá ajudar a subir as cotações do petróleo e a mobilizar uma nova industria
fora da China.
Joaquim Rodrigues: E a mãe de todos os totalitarismos é o HITLER.
Antes pelo contrário: Não sei se sabem, Lenine estava exilado em 1917 na Suíça, durante a 1ª
Guerra, e foram os suíços que decidiram facilitar o seu regresso à Rússia, que
combatia ao lado dos Aliados, para que ele fosse fomentar a Revolução, mesmo
que isso implicasse a vitória da Alemanha. Isto aconteceu em 9 de Abril, por iniciativa dos
socialistas suíços (só podia), que contactaram o embaixador alemão.
"Swiss socialist Robert Grimm approached the
German Ambassador to Switzerland to open negotiations, but it was Grimm’s
compatriot Fritz Platten, who brokered the final agreement to allow Lenin and
others exiles to travel by train through Germany to neutral Sweden. Platten was
also given official responsibility for the party and helped to draw up a
document to be signed by all the travellers, declaring among other things that
they accepted the risk of imprisonment for treason on their return to
Russia."
Com a Revolução em Outubro de 1917, a Rússia
dividiu-se entre a Rússia Branca e a Rússia Vermelha, a guerra civil durou
algum tempo, e a Ucrânia aproveitou para assinar uma Paz separada com a
Alemanha em 3 de Março de 1918, enquanto a Rússia se dedicava a prosseguir a
"Revolução", com o assassinato do Czar e da sua família em 17 de
Julho, e Lenine prosseguia a organização do Estado Soviético (sobretudo através
da eliminação de dissidentes). Por pouco todos estes acontecimentos teriam
levado à vitória da Alemanha. E levaram à constituição daquele que foi
possivelmente o regime mais sangrento da História. Com a sua larga descendência
de regimes igualmente sangrentos. Até hoje. Tudo isto graças aos socialistas
suíços... A 1ª Guerra foi ganha graças sobretudo ao progresso tecnológico, e ao
efeito (mais psicológico do que real), da entrada dos EUA na guerra, em 6 de
Abril de 1917 (talvez isso tenha influenciado o envio de Lenine para a Rússia,
3 dias depois), embora os americanos só tenham chegado aos campos de batalha na
primavera de 1918... ao mesmo tempo que a gripe espanhola!!!
Liberal Não-Confinável > Antes pelo
contrário: Se não fosse Ulianov a liderar a "revolução" russa, seria outro
Lenine qualquer. Tanto a podridão política local como o marxismo bem entranhado
durante décadas num povo de ignorantes selvagens teriam levado a esse resultado.
Tiago Queirós: Por falar em Bakunine, é esta uma sentença que permanentemente me arrepia,
tão certeira foi na antecipação do terror desencadeado pela dita «Ditadura do
Proletariado» (e que sempre marcou a distinção fundamental entre Anarquistas e
Comunistas): 'If
you took the most ardent revolutionary, vested him in absolute power, within a
year he would be worse than the Tsar himself.'
Euro de Eos > Tiago Queirós: Em contrapartida gostam muito de atentados à bomba ou
de tiros, como na morte de D. Carlos.
Tiago Queirós > Euro de Eos: Certo, mas convém distinguir entre anarquistas de
inspiração revolucionária e o dito "anarquismo filosófico", propalado
por Tolstoi ou Thoreau, e que não acalentava quaisquer pretensões de cariz
violento ou, num sentido mais lato, contrário ao ideal derradeiro de "libertação"
ou "emancipação".
José Barros: Bom texto. Excelente enquadramento e invejável informação. Talvez, mas é preciso ter em conta que, por
exemplo, Hanna Arendt, em As Origens do Totalitarismo, elogia de alguma maneira
Lenine e considera que o totalitarismo comunista só começou com Estaline.
Depois, Fascismo e Comunismo, embora tenham sido ambos totalitarismo, não são
identificáveis senão nisso. As diferenças são imensas, a começar pela relação
com a propriedade e os diferentes programas políticos.
.......
Paulo Silva > Euro de Eos: Ainda não li, mas a obra mencionada é da década de 50.
Nessa época o estalinismo e a guerra-fria estavam no auge, e Estaline tinha as
costas largas até para alguns comunistas. Stéphane Courtois, editor de “O Livro
Negro do Comunismo”, escreveu a obra “Lenine,
L’Inventeur du Totalitarisme”, Paris, Perrin, 2017. PS: convém ter em conta que
Lenine só esteve 4 ou 5 anos no poder, e que o regime soviético beneficiou de
décadas de propaganda e de branqueamento. Muitos dos crimes do estalinismo só
ficaram conhecidos, (e não foram todos), porque Kruschov decidiu falar… A
partir daí Estaline passou a bode expiatório dos desmandos do socialismo real.
…….
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