quinta-feira, 28 de maio de 2020

Saberes, sabores



Mas, com moral ou não, o texto de João Miguel Tavares, serviu para nos fazer rir… amarelamente…
OPINIÃO
Três meses de pandemia em Portugal – o resumo
Convém que a civilização humana não fuja toda para cima de uma árvore quando ainda desconhece o verdadeiro perigo daquilo que a está a perseguir.
PÚBLICO, 28 de Maio de 2020
Usar máscara produz uma falsa sensação de segurança – é desaconselhado o uso de máscara. Usar máscara produz uma verdadeira sensação de segurança – é obrigatório o uso de máscara em espaços fechados e em transportes públicos. A taxa de letalidade da covid-19 é de 3,4%. A taxa de letalidade é de 0,7%. A taxa de letalidade é um mistério. O pico da pandemia vai ser em meados de Abril. O pico da pandemia vai ser em finais de Maio. O pico da pandemia já passou (foi em Março). As crianças são grandes transmissores do vírus e não podem aproximar-se dos avós. As crianças são fracos transmissores do vírus e podem abraçar os avós. Limpe todas as superfícies. A covid-19 pode não se transmitir através das superfícies. O papel das superfícies na transmissão do novo coronavírus é ainda desconhecido. Uma pessoa, depois de apanhar o vírus, fica imune. Depois de apanhar o vírus, uma pessoa não fica imune. Uma pessoa, depois de apanhar o vírus, fica um bocadinho imune. A vacina pode chegar daqui a cinco meses e bater recordes de rapidez. A vacina pode demorar ano e meioA vacina pode nunca chegar. Tentar alcançar a imunidade de grupo é uma loucura. A imunidade de grupo é a única solução. As pessoas podem sentar-se lado a lado num avião porque estão sempre a olhar para a frente. As pessoas não podem sentar-se lado a lado num cinema ou num teatro, talvez por estarem sempre a olhar para trás. Sentar num areal vazio é proibido a 3 de Maio. Sentar num areal razoavelmente cheio é permitido (e estimulado) a 23 de Maio. As creches reabrem, confiando que crianças entre seis meses e seis anos conseguem manter distâncias. As escolas não reabrem, porque miúdos entre os seis e os 16 anos não conseguem manter distâncias. Até 30 de Setembro, estão proibidos os festivais ou espectáculos de natureza análoga. Até 30 de Setembro, “se uma entidade promotora definir como iniciativa política, religiosa, social” um festival ou espectáculo de natureza análoga, então (esclarecimento da Presidência da República) “deixa de se aplicar a proibição”. Cuidado: vem aí uma segunda vaga no final do ano. É possível que a segunda vaga nunca chegue. Temos de nos preparar para a segunda vaga.
Tudo isto, que atrás ficou escrito, não é uma caricatura. Para cada uma daquelas frases consigo indicar um link, uma referência bibliográfica ou um decreto-lei. São afirmações proferidas nos últimos meses por instituições respeitáveis, difundidas em jornais sérios, oriundas de governos, de direcções-gerais, da Organização Mundial de Saúde ou de estudos científicos. E, por muito estranho que isto vos possa parecer, não as trago hoje aqui para dizer mal de políticos, de médicos ou de cientistas – trago-as com um único objectivo: mostrar o nível de incerteza que ainda rodeia a covid-19 e o tamanho pandémico da nossa ignorância.
Bem pode este vírus estar a ser estudado há meio ano por centenas de milhares de pessoas, em milhares de laboratórios, em duas centenas de países. No que diz respeito às questões fundamentais da doença – quanto mata e exactamente como se transmite – aquilo que se sabe é ainda brutalmente insuficiente. Daí ter decidido compilar esta listinha de afirmações divergentes ou simplesmente contraditórias, que podem sempre exibir a quem tem demasiadas certezas sobre o assunto. Moral da história: convém que a civilização humana não fuja toda para cima de uma árvore quando ainda desconhece o verdadeiro perigo daquilo que a está a perseguir.
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