… qui finit bien, no relativo dos
acontecimentos…:
Do Blog “A Mãe é que sabe”, extraio um texto que a Ana
Margarida, minha neta, ali colocou, e
que, como de costume, contém um pensamento claro e crítico, nessa realidade por
que passou, em tempos de uma estranha vivência – a que hoje nos assiste, no
isolamento de uma reclusão imposta, impeditiva de contactos e ruinosa da
economia – mas esta última questão não transtorna tanto a Ana, que sempre soube
gerir as suas oportunidades de vida, juntamente com o seu companheiro de
sempre, estudioso e empreendedor, o Luís, ambos, de resto, bem protegidos pelas
respectivas avós dos seus três filhos. O certo é que a Ana teve dois gémeos,
para juntar ao Pedrinho, que em breve fará quatro anos. Dois gémeos, já “é obra”,
mas em tempo de Covid-19, nem fazemos bem ideia. O certo é que a família –
excepto as avós – ainda não conhece o Manuel e o João, a não ser por
fotografia, e vai admirando essas figurinhas que parecem já – pela linda fotografia
posta no blog – figurar neste mundo de hoje com o mesmo estar nele, decidido,
que o Pedrito, seu irmão, já parecia manifestar ao nascer.
Eis o texto da
Ana, escrito com a harmonia reflexiva e a sensibilidade que a distinguem, com o
suave sentido de humor de sempre:
Quando soube que estava grávida
de gémeos, soube que vinha aí um grande desafio. Não acreditei quando o médico
me disse, achei que estava na brincadeira, fartei-me de rir com o seu sentido
de humor e, depois, de chorar. Lá estavam eles, cada um na sua bolsa, a
partilhar a mesma placenta. Porquê? Um daqueles milagres da genética, um óvulo
e um espermatozóide que se dividiram em dois. Fiquei a saber que abundam casos
destes na minha família. Eu é que não sabia. Também não sabia que, meses mais
tarde, o desafio iria subir de nível. Ia ter gémeos no meio de uma pandemia.
Vim para casa de quarentena no
dia 19 de Março, com um caso suspeito na escola do meu filho. Já estava grávida
de 33 semanas e, na altura, não sabia bem as implicações que este vírus ia ter
no parto. Ao longo dos dias, fui assistindo às notícias que davam conta de mães
infectadas que eram isoladas dos bebés à nascença, de leite materno
desperdiçado, de pais excluídos do momento do parto e de induções
desnecessárias. E num contexto de tanta morte, de tanta solidão na morte, de
caixões que se acumulam, de funerais sem pessoas, lá estava eu do lado oposto,
a gerar duas vidas e, no entanto, profundamente angustiada.
Há uma enorme romantização da
gravidez e do parto, que faz com que nos sintamos um pouco ridículas por nos
sentirmos assim. Quando os tiveres nos teus braços, vais ver que fica tudo bem,
diziam-me. Mas é um momento extremamente violento, duro e decisivo para a vida
dos nossos filhos. E às vezes os bebés não vêm para os nossos braços. E às
vezes não fica tudo bem. E quando não fica tudo bem, não há profissional de
saúde, por mais profissional e humano, que substitua aqueles que amamos.
Foram muitas as vezes em que me
pus a pensar em duas variáveis opostas desta pandemia: isolamento e relações
sociais. As segundas têm sido constantemente espezinhadas pelo primeiro e
encontrar o equilíbrio acaba por ser uma missão impossível. Privilegiar
questões emocionais parece estar fora de questão e, no entanto, elas não ficam
em stand by. Vão crescendo, na solidão.
Falei com o meu médico, em quem
confio muito, e percebi perfeitamente as decisões. A culpa – se é que interessa
– não é dos hospitais. Infelizmente, na maioria dos hospitais públicos, não há
condições para garantir acompanhantes em segurança. Devia haver. Devia haver um
esforço do governo para possibilitar a criação de condições. Mas não há.
Felizmente, a questão da separação mãe bebé quando a mãe testa positivo para
Covid-19, no caso deste hospital de Lisboa, fica à decisão (informada) da mãe.
Com isto, quero dizer-vos,
grávidas desta pandemia, sintam-se no direito de estar revoltadas, tristes,
angustiadas. Ou felizes por não terem que levar com os beijinhos repenicados
das vossas quarenta tias afastadas nos vossos bebés desta vez. Ou defraudadas,
por terem criado uma expectativa que não se vai concretizar. Ou ansiosas na
esperança de que isto mude. Não deixem que ninguém vos revire os olhos e vos
diga que no tempo da Maria Cachucha não havia cá pais (nem epidurais!) e que as
coisas aconteciam na mesma. Sintam-se como sentirem, um abraço apertado para
vocês, cheio de solidariedade e força. Não sei se vai ficar tudo bem, mas uma
coisa é certa: dos nossos sentimentos sabemos nós.
Mas queria partilhar também que
nem tudo é negativo. Algumas coisas correram melhor neste meu parto e acredito
que se deva à pandemia. Aqui vão elas. Sem romantizações.
Os profissionais de saúde fizeram
os impossíveis para não sentir a falta do pai.
Nunca esperei mais de uns
segundos depois de tocar à campainha. Deram-me epidural assim que cheguei à
sala de partos e eu dormi. Quando me senti nervosa, no momento antes da
expulsão, ficou uma enfermeira comigo. Também ela tinha tido um filho há pouco
tempo, fartámo-nos de conversar.
Fiquei num quarto sozinha.
Imagino que, para minimizarem os
contactos, estejam a privilegiar esta modalidade. Claro que não será sempre
possível, mas no meu caso tinha quarto e casa de banho só para mim.
Dormi muito (se é que muito e
dormir podem ser utilizados juntos num contexto de dois recém-nascidos)
Não ter visitas tem este lado.
Sempre que não estava a comer ou a alimentar as minhas crias, estava a dormir.
Saí do hospital em 36 horas.
Foi parto normal, pelo que este é
o tempo de internamento. Saí feliz, com o meu marido e o meu filho à porta, à
espera para conhecerem o João e o Manuel. Foi uma emoção, as auxiliares tiraram
fotos, uma animação!
Li há tempos uma notícia de um
senhor de cento e poucos anos que tinha sobrevivido à Covid-19 em Itália. Tinha
nascido em plena gripe Espanhola. E desejei que esta fosse uma história
longínqua para os nossos filhos contarem aos seus netos daqui a uma eternidade.
Tive que ser um bocadinho romântica.
NOTA DO BLOG
A Margarida
tem 34 anos e é mãe de três rapazes. Trabalhou 10 anos em comunicação, mas
em 2019 tomou a decisão de deixar o seu emprego e dedicar-se à música. Voltou a
estudar, a cantar e começou a dar aulas de música a crianças. Engravidou de
gémeos no meio destas mudanças todas, mas confia que vai tudo correr bem.
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