terça-feira, 12 de maio de 2020

Episódios de uma vida rica



De aventura também, não destituída de temores, certamente, e de coragem em os ultrapassar. Mas o prazer é grande, de quem lê e sente, como concretizados, alguns factos da História que mais ou menos se conhecem, no abstracto de alguma leitura ou imagem…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 11.05.20
Unter den Linden, Ópera, Kurfürstendamm (ou apenas Kudamm), Porta de Brandenburgo… e aquilo tudo cheio de obras…
E de quem havia eu de me lembrar? De Herbert von Karajan que devia andar por ali, algures e de Gustav Steinbrecht dois tipos tão diferentes e, contudo, foi em Berlim que ambos se notabilizaram: um, como intérprete da música erudita; o outro, como autor consagrado de um método de equitação ainda hoje louvado apesar de menos seguido do que o desejável.
… e aquilo tudo cheio de obras…
- Deixem estar. Temos muito que ver deste lado, não vale a pena irmos a Pankow que é o Sector Soviético. Se os alemães de leste só pensam em vir para cá, que vamos nós lá fazer? Já vimos o suficiente ao longo da autoestrada.– assim falava o nosso Comandante. E não fomos.
Até que já estávamos cansados de voltas e mais voltas, já tínhamos uma ideia do que era Berlim ocidental, não nos importámos nada de rumar ao camping, armar a tenda e descansar um pouco debaixo daquelas árvores até que fossem horas de jantar. E assim foi. Até que foram horas de silêncio em todo o parque.
Seriam umas 4 da manhã quando fomos acordados por uma voz portuguesa junto do «pão de forma». Era um funcionário do nosso Consulado (se a memória não me atraiçoa muito) que andava à procura de portugueses nos campings da cidade para nos mandar embora imediatamente.
- Mas…?
- O Senhor desculpe, mas as perguntas deve-as fazer quando chegarem à Alemanha Federal. Por onde vieram?
- Por Braunschweig.
- Muito bem, é por lá que devem voltar e despachem-se para não perderem muito tempo na fila aqui à saída. Quanto mais rápidos, melhor.
Percebemos que a hora não era de perguntas mas sim de marcha.
Marchámos mesmo dali para fora. Chegámos à entrada do corredor com destino a Braunschweig e, contra as expectativas, o expediente foi rápido: não éramos alemães de leste em fuga, podíamos sair e quanto mais rápido, melhor.
No regresso, com o dia a nascer no retrovisor, a viagem pareceu mais rápida e quando chegámos à liberdade, perguntámos e ficámos a saber que poderíamos contar aos netos que tínhamos visto a construção do Muro de Berlim.
Nem Zaratustra falara com tanta sabedoria como o nosso Comandante quando decidira não irmos a Pankow.
Parámos o «pão de forma» à entrada de Braunschweig ainda à vista da «cortina de ferro», apeámo-nos, olhámos para trás, respirámos fundo, pensámos coisas horríveis contra o regime esclavagista e pisgámo-nos para longe da porta do Inferno Vermelho.
Como se chama a um pensamento votivo em que se formulam ideias medonhas? Não por certo uma oração.
Ainda faltavam 28 anos e 3 meses para que aquele Inferno se desmoronasse. Em vez de pensamentos horríveis contra os algozes, devíamos ter pedido pelas suas vítimas. Claramente, não é pela negativa que se salva a Humanidade.
(continua)
Maio de 2020
Henrique Salles da Fonseca

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 12.05.20
De Braunschweig a Frankfurt seriam cerca de 350 kms. O dia tinha começado muito cedo, não íamos salvar ninguém da forca e o nosso Comandante, sempre ao volante, merecia descansar. Ninguém se preocupou com a decisão de ficarmos um dia e uma noite no camping local, já na estrada para Hannover se a memória não me atraiçoa muito.
Descansados do stress anterior, lá fomos pelo mapa a baixo sem grande vontade de dar voltas e voltinhas turísticas pelas cidades por que íamos passando até que chegámos a Frankfurt pelo meio da tarde. Demos, aí sim, uma volta pela capital da finança para, como de costume, ficarmos com uma ideia geral e vá de procurar local de pernoita. Sem história.
No dia seguinte esperava-nos uma etapa de 280 quilómetros até Freiburg, já quase na fronteira com a Suíça mas, antes disso, uma volta genérica pelo centro de Karlsruhe – literalmente, «o descanso de Carlos».
Julgava eu que a etimologia do nome tivesse alguma coisa a ver com Carlos Magno e imaginava que ele ali fosse a banhos já que a cidade, entretanto, está integrada no Estado federado de Baden-Wurttemberg. Fantasia pura. A cidade foi fundada em 1715 e quando eu percebi que o nome também nada tinha a ver com Carlos V, tive que passar a lidar com o enigma das bandeirinhas espanholas nos eléctricos da cidade.
Vista a cidade-leque, seguimos caminho…´
Lembro-me perfeitamente de termos subido o Alto Reno pela sua margem direita vendo aqui e ali castelos ribeirinhos para a cobrança de taxas mas já não me lembro de onde a onde foi esse percurso lindíssimo. E não faltará quem diga que esses Senhores feudais só pensavam enriquecer à custa de quem passava mas eu lembro a Teologia Luterana que então era novidade mas que já pugnava pelo bem-comum. E havia que financiar tais acções dos ditos Senhores ao quererem dar bem-estar às populações que governavam.
De Freiburgo retive um centro verdadeiramente antigo em torno da catedral católica e lembro-me de uma envolvente urbana com edifícios de bela traça renascentista (?). Vai daí, não procurámos afanosamente a Universidade que não encontrámos. Mas diz-se que estava lá.
Passámos a fronteira quase sem darmos por ela.
Já na Suíça, Basel (Basileia, em português) esperava-nos a 70 quilómetros. E aí deu para recordar Nietzsche que durante anos ocupou uma cátedra na Universidade local sem sequer ser licenciado. Não, não foi por falsificações nem outras imposturas ao estilo das nossas conhecidas cá na «Santa terrinha», toda a gente sabia que ele não tinha concluído o curso em Bonn nem em Leipzig, mas a Universidade de Basel achou que ele era quem mais sabia do tema cuja cátedra queria preencher e por isso lha ofereceu. Mas há mais: o filósofo estivera na guerra franco-prussiana como maqueiro e fora contagiado por graves moléstias que os grandes «sábios» da época tratavam com clisteres de nitrato de prata. Claro está que ia morrendo da «cura» e ficou avariado da barriga para o resto da vida. Assim, para não correr o risco de novas mobilizações pelo Exército da belicosa Prússia, a Universidade sugeriu-lhe que renunciasse à nacionalidade alemã e disponibilizou-se para lhe tratar da obtenção da nacionalidade suíça. Tudo bem, deixou de ser alemão mas o processo burocrático embrulhou-se e nunca obteve a nova nacionalidade. Resultado: ficou apátrida até ao fim dos seus dias.
Não era tarde mas tínhamos tido um dia muito cheio de vistas pelo que pernoitámos num camping qualquer nas redondezas da cidade, já na estrada para Montreux, a 165 quilómetros.
(continua)
Maio de 2020
Henrique Salles da Fonseca
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