De aventura também, não destituída de
temores, certamente, e de coragem em os ultrapassar. Mas o prazer é grande, de
quem lê e sente, como concretizados, alguns factos da História que mais ou
menos se conhecem, no abstracto de alguma leitura ou imagem…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 11.05.20
Unter
den Linden, Ópera, Kurfürstendamm (ou apenas Kudamm), Porta de Brandenburgo…
e aquilo tudo cheio de obras…
E
de quem havia eu de me lembrar? De Herbert von Karajan que devia andar por ali, algures e de Gustav
Steinbrecht – dois tipos tão diferentes e, contudo, foi em
Berlim que ambos se notabilizaram: um, como intérprete da música
erudita; o outro, como autor consagrado de um método de equitação ainda hoje
louvado apesar de menos seguido do que o desejável.
…
e aquilo tudo cheio de obras…
- Deixem
estar. Temos muito que ver deste lado, não vale a pena irmos a Pankow que é o Sector Soviético. Se os alemães de
leste só pensam em vir para cá, que vamos nós lá fazer? Já vimos o suficiente
ao longo da autoestrada.– assim falava o nosso Comandante. E não fomos.
Até
que já estávamos cansados de voltas e mais voltas, já tínhamos uma ideia do que
era Berlim ocidental, não nos
importámos nada de rumar ao camping, armar a tenda e descansar um pouco debaixo
daquelas árvores até que fossem horas de jantar. E assim foi. Até que foram
horas de silêncio em todo o parque.
Seriam
umas 4 da manhã quando fomos
acordados por uma voz portuguesa junto do «pão de forma». Era um
funcionário do nosso Consulado (se a memória não me atraiçoa muito) que andava
à procura de portugueses nos campings da cidade para nos mandar
embora imediatamente.
-
Mas…?
-
O Senhor desculpe, mas as perguntas deve-as fazer quando chegarem à Alemanha
Federal. Por onde vieram?
-
Por Braunschweig.
-
Muito bem, é por lá que devem voltar e despachem-se para não perderem muito
tempo na fila aqui à saída. Quanto mais rápidos, melhor.
Percebemos
que a hora não era de perguntas mas sim de marcha.
Marchámos
mesmo dali para fora. Chegámos à entrada do corredor com destino a Braunschweig
e, contra as expectativas, o expediente foi rápido: não éramos alemães de
leste em fuga, podíamos sair e quanto mais rápido, melhor.
No
regresso, com o dia a nascer no retrovisor, a viagem pareceu mais rápida e quando
chegámos à liberdade, perguntámos e ficámos a saber que poderíamos contar aos
netos que tínhamos visto a construção do Muro de Berlim.
Nem
Zaratustra falara com tanta sabedoria como o nosso Comandante quando decidira
não irmos a Pankow.
Parámos
o «pão de forma» à entrada de Braunschweig ainda à vista da «cortina de ferro»,
apeámo-nos, olhámos para trás, respirámos fundo, pensámos coisas horríveis
contra o regime esclavagista e pisgámo-nos para longe da porta do Inferno
Vermelho.
Como
se chama a um pensamento votivo em que se formulam ideias medonhas? Não por
certo uma oração.
Ainda
faltavam 28 anos e 3 meses para que aquele Inferno se desmoronasse. Em vez de pensamentos horríveis contra os algozes,
devíamos ter pedido pelas suas vítimas. Claramente, não é pela negativa que
se salva a Humanidade.
(continua)
Maio de 2020
Henrique Salles da
Fonseca
II -ANDA COMIGO
– 19
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 12.05.20
De
Braunschweig a Frankfurt seriam cerca de 350 kms. O dia tinha começado muito cedo, não íamos salvar
ninguém da forca e o nosso Comandante, sempre ao volante, merecia descansar.
Ninguém se preocupou com a decisão de ficarmos um dia e uma noite no camping local, já na
estrada para Hannover se a memória não me atraiçoa muito.
Descansados
do stress anterior, lá fomos pelo mapa a baixo sem grande vontade de dar voltas
e voltinhas turísticas pelas cidades por que íamos passando até que chegámos a Frankfurt
pelo meio da tarde. Demos, aí sim, uma
volta pela capital da finança
para, como de costume, ficarmos com uma ideia geral e vá de procurar local de
pernoita. Sem história.
No
dia seguinte esperava-nos uma etapa de 280 quilómetros até Freiburg, já quase na fronteira com a Suíça mas, antes
disso, uma volta genérica pelo centro de Karlsruhe – literalmente, «o descanso de Carlos».
Julgava
eu que a etimologia do nome tivesse alguma coisa a ver com Carlos Magno
e imaginava que ele ali fosse a banhos já que a cidade, entretanto, está
integrada no Estado federado de Baden-Wurttemberg. Fantasia pura. A
cidade foi fundada em 1715 e quando eu percebi que o nome também nada tinha a
ver com Carlos V, tive que passar a lidar com o enigma das bandeirinhas
espanholas nos eléctricos da cidade.
Vista
a cidade-leque, seguimos caminho…´
Lembro-me
perfeitamente de termos subido o Alto Reno
pela sua margem direita vendo aqui e ali castelos ribeirinhos para a
cobrança de taxas mas já não me lembro de onde a onde foi esse percurso lindíssimo.
E não faltará quem diga que esses Senhores feudais só pensavam enriquecer à
custa de quem passava mas eu lembro a Teologia Luterana que então era
novidade mas que já pugnava pelo bem-comum. E havia que financiar tais acções
dos ditos Senhores ao quererem dar bem-estar às populações que governavam.
De
Freiburgo retive um
centro verdadeiramente antigo em torno da catedral católica e lembro-me de uma
envolvente urbana com edifícios de bela traça renascentista (?). Vai daí, não procurámos afanosamente a Universidade
que não encontrámos. Mas diz-se que estava lá.
Passámos
a fronteira quase sem darmos por ela.
Já
na Suíça, Basel
(Basileia, em português) esperava-nos a 70
quilómetros. E aí deu para recordar Nietzsche que durante anos ocupou uma cátedra na Universidade
local sem sequer ser licenciado. Não,
não foi por falsificações nem outras imposturas ao estilo das nossas conhecidas
cá na «Santa terrinha», toda a gente sabia que ele não tinha concluído o
curso em Bonn nem em Leipzig, mas a Universidade de Basel achou que ele era quem mais sabia do tema cuja
cátedra queria preencher e por isso lha ofereceu. Mas há mais: o filósofo estivera na guerra
franco-prussiana como maqueiro e fora contagiado por graves moléstias que os
grandes «sábios» da época tratavam com clisteres de nitrato de prata. Claro
está que ia morrendo da «cura» e ficou avariado da barriga para o resto da vida.
Assim, para não correr o risco de novas mobilizações pelo Exército da belicosa
Prússia, a Universidade sugeriu-lhe que renunciasse à nacionalidade
alemã e disponibilizou-se para lhe tratar da obtenção da nacionalidade suíça.
Tudo bem, deixou de ser alemão mas o processo burocrático embrulhou-se e nunca
obteve a nova nacionalidade. Resultado: ficou apátrida até ao fim dos seus
dias.
Não
era tarde mas tínhamos tido um dia muito cheio de vistas pelo que pernoitámos
num camping qualquer nas redondezas da cidade, já na estrada para
Montreux, a 165
quilómetros.
(continua)
Maio
de 2020
Henrique Salles da Fonseca
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