sábado, 23 de maio de 2020

“Na doudice só consiste o siso”



Camões o dissera nas suas “Oitavas ao Desconcerto do Mundo”, já Sá de Miranda o contara na sua ´”Écloga Basto”, a respeito da “Chuva de Maio”, parafraseando o conhecido rifão “Maria vai com as outras”, já D. Francisco Manuel de Melo explorara os defeitos do mundo e da Corte em especial, nos seus “Apólogos Dialogais” entre outros “contos”, de Eça nem se fala, a respeito da nossa “falta de transparência”, ou sofismas de actuação, e Vieira, Senhores, e tantos, tantos…. A “corte” de hoje está na continuação de toda uma falta de educação que vem de trás, que nos desviou do recto caminho, das normas de civilidade, tudo o que Alberto Gonçalves e outros mais vêm pregando… e sempre aos peixes. Desta vez tratou-se da distribuição dos “subsídios” aos “media” por conta da pandemia, e das irregularidades nisso, por conta da hipocrisia. Textos de Alberto Gonçalves e de Alexandre Homem Cristo, ambos do OBSERVADOR:
I - As vozes do dono /premium
Todos os diários, semanários e estações de televisão são afinal da República, a República que os socialistas ocuparam perante a indiferença ou a conivência da boa parte da população.
ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 23 mai 2020, 00:013
Sobre os subsídios do governo aos “media”, José Manuel Fernandes disse duas coisas de que discordo parcialmente. Uma é que, em matéria do controlo do jornalismo, o dr. Costa distingue-se do “eng.” Sócrates por agir pela calada, ao contrário do estardalhaço praticado pelo seu antecessor no PS. A outra é que não foram divulgados os critérios de atribuição das verbas. Vamos por partes.
Em primeiro lugar, não vejo grande diferença na subtileza de ambos os caciques. Vejo diferença na eficácia. Falo por mim, e não, por exemplo, por Manuela Moura Guedes. Atravessei os anos “socráticos” a escrever num jornal e numa revista (de grupos distintos), disse o que me apeteceu D. Francisco Manuel de Melo nos seus Apólogos Dialogais”, especialmenteacerca da miséria moral do “animal feroz” e nunca, nunca, nunca, sofri o mais leve reparo dos meus directores. Suspeito, e é apenas uma suspeita, de que os meus directores sofriam reparos de certas instâncias, a que não ligavam. Nesse período, eu até recebia convites ocasionais dos canais televisivos, que recusava porque raramente trabalho de borla. Certo é que 13 ou 14 meses após o dr. Costa tomar conta disto e iniciar o processo de venezuelização, em curso hoje acelerado, fui corrido de ambas as publicações, ignoro se por pressão externa, se por sabujice interna. Os directores em causa, bastante mais amestrados, não eram evidentemente os mesmos, e sim serviçais que não caíram do céu. O “eng.” Sócrates berrava às vezes em vão; o dr. Costa, espécime similar, berra e é escutado.
Em segundo lugar, os critérios de atribuição dos subsídios são claros. Há oito dias, o indivíduo que preenche a secretaria de Estado do “audiovisual” ou lá o que é, declarou: “Não adianta estar a promover a leitura de jornais se não fizermos simultaneamente a promoção da literacia mediática, isto é, da capacidade de qualquer cidadão, seja de que idade for, poder descodificar, compreender e ler de maneira clara os sinais do seu tempo”. Vinda de quem vem, a conversa fiada é inequívoca: o governo iria patrocinar as televisões, as rádios, os jornais e as revistas que transmitem diligentemente a propaganda oficial. Sempre que alguém se acha no direito de estabelecer o padrão ideal de os demais “descodificarem, compreenderem e lerem”, está a falar, de maneira escancarada, de fiscalização, manipulação e censura. Os “sinais do tempo” não enganam.
Aliás, se restassem dúvidas em volta dos tais “critérios”, estas dissiparam-se com a transcrição detalhada, no Diário da República, das verbas e dos destinatários. A quase totalidade do dinheiro brindou as empresas que detêm a SIC, a TVI e a CMTV, além da dona do falecido DN. O resto, salvo as migalhas finais, espalha-se pelo “Público”, pela “Bola”, pela “Renascença”, e pela “Visão” e “Caras”. Ou seja-se, a expensas da “literacia mediática”, e de facto do contribuinte, paga-se entretenimento, arraial, futebol e sobretudo a gentileza que os canais e os títulos acima dispensam ao dr. Costa e respectiva tropa. Recentemente, o director de informação da TVI justificou o cancelamento de um programa de investigação (“Ana Leal”) com a descoberta de que as audiências não querem críticas ao poder durante uma crise. No exacto momento em que a apresentaram aos 1,691 milhões, a Cofina correu com André Ventura. Não vale a pena lembrar as hagiografias da anedótica senhora da DGS produzidas por JN e DN. Não vale a pena referir a orientação editorial da SIC, que na “informação” (sic literal) culpa Trump por cada desgraça da Terra e nas variedades lava governantes no programa daquela senhora que grita. Não vale a pena mencionar o “Público”, ponto. E não vale a pena exigir dois neurónios: um basta para constatar que os subsídios pagam a lealdade – a anterior e a que aí vem.
O governo pretendia atirar 19 mil euros ao Observador (a comparar com os 300 e tal mil do “Público” e da “Bola”, ou os 400 mil da “Visão”). Fez bem, já que passou a este jornal um atestado de independência. O Observador (e o Eco, com 18 mil) recusou. Fez bem, já que garante que a independência é para continuar. O governo subiu a esmola para 90 mil euros. Fez bem, já que passeou as deficiências contabilísticas e de carácter que moram por ali. O Observador voltou a recusar. Fez bem, já que provou que a decência não depende do montante.
Descontado o avanço ditatorial que simboliza, no fundo o episódio é positivo. Até agora, uma pessoa via cinco minutos de um noticiário ou abria um jornal (exercícios hipotéticos) e contorcia-se de vergonha ao contemplar tamanha bajulação do poder. De agora em diante, uma pessoa compreende que a bajulação não é impressão sua, fruto do acaso, favores fortuitos ou mera imbecilidade: é o resultado de financiamento directo, com valores discriminados e proporcionais às vénias que se cometem. Está no Diário da República. Todos os diários, semanários e estações são afinal da República, a República que os socialistas ocuparam perante a indiferença ou a conivência da boa parte da população. A parte da população que sobra, e que quer aceder a jornalismo autêntico, por oposição a contorções subservientes a Costa, o Magnífico, sabe onde procurá-lo. Na verdade, já sabia. Mas agora é oficial.
COMENTÁRIOS
Antonio Sousa Branco: Renovei a assinatura Premium do Observador há dias, estando válida até Maio de 2021. Estou à espera de segunda-feira, para falar com o atendimento ao cliente para me dizerem como renovo até 2022. Na segunda-feira, vou, também, através de participação financeira, integrar a comunidade do jornal Eco. Como antigo jornalista de televisão, que deixei de ver, com excepção de noticiários estrangeiros, do Netflix e do HBO, continuo um "infodependente". Sei que não prestar vassalagem ao poder político, ou a qualquer outro (como dizemos na gíria jornalística não ser apenas pé de microfone), paga-se muito caro...mas o Observador e o Eco podem olhar para o espelho e não terem vergonha do que vêem.
José Paulo C Castro: Existe a vénia normal de respeito por um superior. Existe depois a vénia até aos joelhos, virado de costas para o dono, que representa toda uma nova relação de submissão a contrapartidas. Parece ser o caso. E, como dizia o outro, "em política, o que parece é."
Jorge Carvalho: Subsídios do governo aos “media” é o ordenado da oligarquia à censura.

II - Sem transparência, não deve haver financiamento/premium
O governo está a subsidiar a comunicação social através de critérios que não são transparentes e fórmulas de cálculo que só foram conhecidas por alguns. Se isto não for inédito, é pelo menos insólito.
ALEXANDRE HOMEM CRISTO
OBSERVADOR, 21 mai 2020
Foi há dois dias que se publicaram em Diário da República os apoios do Estado à comunicação social, sob forma de antecipação de publicidade institucional. Sem transparência e sem alarido, para que não se levantassem ondas — a atribuição destes apoios não justificou uma conferência de imprensa da tutela, nem os seus critérios de atribuição foram devidamente explicitados ao público. E, assim, o governo decidiu alocar milhares ou milhões de euros em transferências para os grupos de comunicação social, de forma opaca e sem que o escrutínio possa realmente ser exercido, alterando até os valores após a publicação dos apoios. Repito, para quem não entende a gravidade: o governo está, na prática, a subsidiar a comunicação social através de critérios que não são transparentes e fórmulas de cálculo que só foram conhecidas por alguns (os que receberam mais). Se isto não for inédito entre democracias maduras, é pelo menos insólito.
É um erro enquadrar este tema nos valores ridículos que foram atribuídos ao jornal Observador e (bem) recusados pela sua administração. E é um erro porque o que está em causa é muito mais do que a situação específica de um ou outro órgão de comunicação social. Está em causa a transparência de uma decisão política sensível: não é admissível que o governo financie quem escrutina a sua actividade sem publicitar os critérios com clareza, sem adoptar o máximo rigor na sua aplicação e sem optar pela transparência na partilha da informação.
Comecemos por aí Está também em causa a própria credibilidade externa dos órgãos de comunicação social perante o seu público: aceitar tais apoios, distribuídos de forma opaca, é participar num processo que coloca injustamente sob suspeita a independência jornalística que deveria ser à prova de bala. E, por fim, está em causa a natureza destes apoios: o Estado está só a apoiar empresas em virtude da crise ou está a interferir no mercado da comunicação social?. Com esta solução, o governo interfere no mercado da comunicação social. E não tinha de ser assim, porque havia uma alternativa óbvia ao pagamento de publicidade (que, na prática, é um subsídio). Essa alternativa era um empréstimo com garantia do Estado, ao qual todos os órgãos de comunicação social pudessem recorrer — seria, nesse sentido, equitativo e cada um usaria em função das suas necessidades. Mas seria também uma forma de o Estado não interferir na concorrência, como fará, apoiando mais uns em detrimento de outros. Aliás, precisamente para evitar isso, a solução do empréstimo foi aplicada noutros países e, em Portugal, noutros sectores de actividade, pelo que nada teria de difícil na sua implementação. Então, por que razão não se seguiu esse caminho? Talvez porque implicaria manter uma saudável distância entre o poder político e os órgãos de comunicação social. Uma distância que ninguém aprecia. Nem o poder político que, pela sua natureza, ambiciona sempre controlar o escrutínio que a comunicação social lhe aplica. Nem os próprios grupos de comunicação, já que muitos deles vingaram à base de um acesso privilegiado ao poder.
Se o governo já tinha optado por este mau caminho, é lamentável que o tenha conseguido tornar ainda pior com tamanha opacidade no processo. A forma desastrada como geriu este dossier não tem ponta por onde se lhe pegue: não explicitou critérios, não mostrou as suas contas, não explicou porque recusou opções alternativas de apoio, não anunciou a decisão (deixou que a publicação em Diário da República o fizesse), enganou-se nas contas e corrigiu-as com ligeireza. Esquecer que não pode haver financiamento à comunicação social sem total transparência já não é um mero problema de incompetência, é a demonstração de que a tutela não tem noção de que a relação entre o poder político e o jornalismo vive da tensão e do escrutínio, e que não pode ser de aceitação acrítica.
Num país com maior tradição de liberdade e até mais amor próprio, seria de esperar que os grupos de comunicação social rejeitassem, em bloco, todo e qualquer apoio público até que o governo tornasse o processo de antecipação de publicidade transparente e escrutinável. Não seria apenas uma forma de limpar este assunto. Seria, sobretudo, uma forma de a comunicação social dizer a todos (em particular ao governo) que, mesmo em momentos difíceis, não pode ser cúmplice deste tipo de processos — tão opacos que mancham o seu prestígio e colocam sob suspeita a independência com que os jornalistas cumprem a sua missão. Mas estamos em Portugal e reina o silêncio. É uma pena que, por cá, não se perceba que, com a pandemia a permitir poderes excepcionais, a única resposta possível é um escrutínio excepcional.


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