Acerca da viscosidade no reino, de
mistura com cortes de cabeça. Uma excelente crónica de Paulo Tunhas. Nem a praia nos limpa, que a
viscosidade escorre até lá, impante e segura, e sem gatos que prestem...
Um gato pode olhar para um rei /premium
PS e PSD quase se confundem por
inteiro. Costa apoia Marcelo, Rio apoia Costa. Apoiam-se uns nos outros. Como
pode uma pessoa orientar-se assim? As más formas desorientam.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 21 mai 2020
No
dia 19, o Observador fez seis anos. No dia anterior, muito apropriadamente o
Dia Mundial dos Museus, tinha eu feito sessenta. Sempre gostei desta quase
coincidência de aniversários, embora por estes dias tenha muito mais confiança
no Observador do que em mim. O Observador, com os seus leitores, pode crescer:
a mim, só me resta envelhecer. Sessenta anos, meu Deus! Como toda a gente, e
apesar de uma abundância aterradora de provas empíricas, não acredito. Um
escritor que me impressionou muito na juventude dizia que é preciso acreditar
que sim, mas saber que não. Eu estou exactamente ao contrário: sei que sim, mas
não acredito. Se calhar não é exactamente o contrário. A ver.
Deve
ser por causa deste estado mental que a política portuguesa, com a qual, por
lamentável falta de imaginação própria para a coisa, mantenho uma relação
puramente reactiva, me parece, mesmo antes da crise do coronavírus, uma
entidade informe em que tudo se confunde. Para adoptar os termos de uma escola
de psicologia, não há boas formas que capturem a nossa atenção, formas
pregnantes. Não há distinção entre a figura e o fundo. Tudo aparece a boiar numa sopa turva. Aqui e ali
aparecem formas arcaicas, como André Ventura, que me preocupa muito menos do
que as causas que o produzem e que são justamente as múltiplas variações da
generalizada informidade. PS e PSD
quase se confundem por inteiro. Costa apoia Marcelo, Rio apoia Costa. Apoiam-se
uns nos outros. Como pode uma pessoa orientar-se assim? As más formas
desorientam. A orientação supõe oposições, supõe formas vivas, e não arcaicas,
que se distingam umas das outras. À falta disso, as eleições, por exemplo,
tornam-se uma realidade estranha, tanto as presidenciais como as legislativas.
Tudo é informe.
Informe e viscoso. Foi
Sartre quem, n’O Ser e o Nada, deu,
por assim dizer, ossatura teórica ao conceito de viscosidade, uma maneira de
ser do espírito que possui um perfeito análogo na experiência sensível. “Um aperto de mão é viscoso, um sorriso
é viscoso, um pensamento ou um sentimento podem ser viscosos.” O viscoso encontra-se, desde a sua origem, “contaminado
de psíquico”. “Esta
instabilidade imóvel do viscoso desencoraja a posse.” É a docilidade do viscoso, “a moleza
levada à sua extrema consequência”, como
uma ventosa, que nos possui. A “política dos afectos” é viscosa. A aderência do PSD ao
PS, sob a capa da civilidade, é viscosa.
O sorriso político de Costa é viscoso até mais não. A cena da “Auto-Europa” foi o espectáculo da viscosidade no seu máximo
esplendor. Tudo é viscoso, tudo “desencoraja a posse” de um projecto político que nos possa guiar com
algum sentido. No reino da viscosidade, que é também o reino
das más formas, não há lugar para a busca, sempre precária, do sentido da
sociedade. A viscosidade destrói todo e qualquer sentido.
Em
contrapartida, a
viscosidade favorece a corrupção e o compadrio e fornece o assento para uma
prepotência política tão mais eficaz quanto esmeradamente ocultada pela
comunicação social. Ontem, na Rádio
Observador, Miguel Pinheiro, a
propósito das declarações no Parlamento do ministro Pedro Nuno Santos a
respeito de José Miguel Júdice, José
Manuel Fernandes, que falava da perversidade e, como resultado, da
discriminação nos subsídios à comunicação social anunciados pelo governo, e, anteontem, Alberto Gonçalves, sobre a suspensão do programa de Ana
Leal pela TVI, deram três bons exemplos dessa
prepotência. Há
obviamente um padrão comum nestes três casos. O PS, cada vez mais
um partido-Estado, aproveita a informidade ambiente para ir, pouco a pouco,
anulando as limitações ao seu poder. Inclusive face àqueles que, no seu seio,
oferecem o perigo da dúvida sobre intenções e métodos.
Como
diz um provérbio inglês, que a Alice de Lewis Carroll, referindo-se ao Gato de
Cheshire, repete ao Rei de Copas, “um gato pode olhar para um rei”. Quer dizer: há certos privilégios que
os súbditos têm na presença dos governantes. “Então tem de ser removido”, disse decididamente o Rei; e dirigiu-se à Rainha, que
passava por ali na altura, “Minha querida! Gostava que fizesses remover este
gato!”. A Rainha tinha apenas uma maneira de resolver todas as dificuldades,
grandes ou pequenas. “Cortem-lhe a cabeça!”, disse, sem sequer olhar à sua volta.” Isto diz-vos
alguma coisa?
Ah,
é verdade: na história não conseguiram cortar a cabeça ao gato. O Gato de
Cheshire apareceu aos olhos de todos apenas com a sua cabeça e o seu quase
autónomo sorriso, o que provocou uma discussão metafísica entre o Rei, a Rainha
e o carrasco, o Valete
de Paus, sobre a possibilidade de cortar uma
cabeça que se encontrava separada do corpo. Viva o Gato de
Cheshire!
COMENTÁRIO:
Cisca Impllit: Parabéns e as Graças de Deus lhe dêem muita saúde. Em qualquer poesia ou prosa - um Gato é um Gato! Os GATOS das nossas vidas!
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