Com estes passeios em terras alheias, na
adolescência curiosa, que fortaleceram,
sem dúvida, o gosto pelas viagens hoje, frequentemente realizadas, a par das
leituras que mais as enriqueceram, no seu registo narrativo.
I - ANDA COMIGO –
7 - UMA BLUSA ÀS RISCAS
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 30.04.20
De
San Sebastian à
fronteira foram cerca de 25 quilómetros numa estrada simpática por
meio duma paisagem variada e com influência marítima. Lembro-me de termos que
esperar numa longa fila de carros e camiões mas a certa altura os pesados foram
para um lado e nós, os ligeiros, para outro. E tudo se aligeirou. Até porque a
fronteira ferroviária era do lado de lá da fila dos pesados e a confusão não
quis nada connosco.
Naquela
época, os comboios na Península tinham uma bitola mais larga que a do resto
europeu como forma de dificultar uma putativa invasão vinda do lado de lá dos
Pirinéus sob as ordens de algum tonto que não conhecesse a opinião de Napoleão.
E que opinião era essa? A de que ele próprio nunca arriscaria uma batalha cá
nestas paragens temendo algum vexame e por isso enviou sempre algum general que
o representasse. O general que se humilhasse, ele, Napoleão, que se safasse.
Portanto, ali, naquela fronteira, os passageiros dos comboios tinham que fazer
o transbordo e isso, à mistura com as formalidades aduaneiras, fazia um
burburinho muito grande. Mas a nossa «porta» era outra e passámos
tranquilamente.
Em
Hendaia houve um
hospital português. Não o vislumbrei.
Não, não foi que os franceses precisassem da nossa ajuda sanitária, foi uma
acção pontual de apoio ao Contingente Militar Português que se bateu na guerra
de 14-18. Da cidade, não me lembro de qualquer coisa que mereça citação ao
fim destes 59 anos. Queríamos chegar a Biarritz dali a 40 quilómetros por uma estrada
relativamente boa em que, pela primeira vez, vi uma faixa central para
ultrapassagens. Enquanto por ali andámos, não vimos dois teimosos a quererem
ultrapassar ao mesmo tempo mas em sentidos opostos. Durante muitos anos, o
meu pai assinou o AutoJournal que sistematicamente blasfemava contra esta
terceira faixa e publicava desenhos dramáticos de choques frontais um pouco por
toda a França. Devem ter sido muitas centenas de mortos enquanto aquela
imbecilidade persistiu. Mas chegámos sãos e salvos a Biarritz sem termos que
fazer qualquer pega de caras a um desembestado que viesse lá da frente.
Por
qualquer razão, não parámos em Saint Jean de Luz e, chagados a Biarritz,
passámos perto da praia à hora da enchente. Fiquei encantado com a descontracção
das pessoas. Nada do formalismo circunspecto ibérico, registei na memória um
grupo de três ou quatro veraneantes loiras de shorts quase «à cava» e com
toalhas ao ombro. Uma delas tinha uma blusa às riscas azuis e brancas. Se
eu hoje tenho 75 anos, ela deve ter quase 100 mas se ler estas linhas, fique
sabendo que há 59 anos aquela blusa e respectivo conteúdo chamaram a atenção
de quem passava num «pão de forma». E, por incrível que possa parecer, esta foi
a imagem que retive de Biarritz.
Bordéus, a cerca de 200 quilómetros, próxima
etapa. É óbvio que pernoitámos algures pois visitámos Bordéus pela
manhãzinha. E se da cidade – onde nunca mais voltei – me resta apenas uma vaga
ideia (nada que a Internet não resolva), há outra curiosidade que dá para
contar com prejuízo da extensão deste escrito.
O
meu avô materno era industrial de conservas no Algarve e em Marrocos pelo que
instalou um escritório em Bordéus e outro em Londres para fazerem a
comercialização das ditas conservas em França e Inglaterra, respectivamente.
Foi então que o meu avô decidiu acrescentar um «L» ao Sales original para
distinguir do «sales» francês (sujos) e do «sales» inglês (saldos). E assim
passámos a ser Salles em vez de Sales.
Eis
como, para mim, Bordéus se escreve com mais um «L».
E
hoje fico-me por aqui pois, à custa de banalidades, o texto já vai longo.
Amanhã há mais.
(continua)
Abril de 2020 Henrique Salles da
Fonseca
II - ANDA COMIGO –
8 - À VOL D’OISEAU
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 01.05.20
Saímos
de Bordéus como tínhamos
entrado, sem fanfarras nem cumprimentos do Maire. Uns rudes, aqueles tipos.
Tanto como os das cidades espanholas por que tínhamos passado. Conclusão: a
clandestinidade, afinal, não é coisa assim tão difícil como os «heróis do
contra» apregoam (qualquer que seja esse contra). Mas é claro que nós não
levávamos as Autoridades na peugada como os clandestinos levam e, daí, a
diferença entre as nossas vidas regalada e as deles, complicadas. Deixemo-los,
pois, apregoar o que quiserem desde que não nos incomodem muito.
Mas
deixemo-nos de revolucionarites e rumemos a Saumur, no vale do Loire.
Lembrou-me
o Google maps que se trata de 324 quilómetros pela estrada de Poitiers, a que então fizemos. Aliás, a actual auto-estrada
nem sequer existia.
Como
era do nosso costume, em Poitiers demos
uma volta pelo centro histórico com passagem obrigatória frente à catedral de
S. Pedro só para dizermos que lá tínhamos passado. Consta que ali
assentavam os pictões, povo contemporâneo dos famosos vizinhos Astérix e Obélix.
E dali seguimos para o Loire.
No
Liceu Francês de Lisboa havia grandes fotografias nas salas de aula mostrando
os castelos do Loire pelo que eu
já tinha uma ideia muito positiva sobre o que iria ver mas não esperava, mesmo
assim, de gostar tanto de ver tudo en passant. Vimos por fora todos aqueles
que nos foram «calhando na passada» (gíria equestre para o salto do obstáculo
para que não é necessário encurtar ou alargar a passada do galope) mas, antes disso,
estivemos em Saumur.
E porquê esta nossa fixação por esta cidade? Pois bem, não se esqueça o leitor
de que naquele «pão de forma» éramos cinco cavaleiros e Saumur era então a sede da Escola Militar de Equitação[i] (do Exército Francês, claro) alfobre
dos grandes mestres da equitação clássica e onde residia (e continua a residir)
o famoso Cadre Noir (conjunto de cavalos super-ensinados montados por
militares Mestres de Equitação fardados de negro e com galões doirados). Chegámos de improviso, sem anúncio, visitámos o
local mas os treinos tinham sido de manhã e nós já tínhamos almoçado. Lembro-me
de termos falado com um «chefão» muito magro e alto que nos mostrou as
cavalariças e os picadeiros (para se ser membro do Cadre Noir, dizem as más-línguas jocosas, tem que se ser
militar do Exército, tem que se ser alto e magro e, se se souber montar a
cavalo, tanto melhor). Naquela época ainda tínhamos no nosso Exército dois
militares que tinham obtido o grau de Mestres de Equitação em Saumur e possuíam
as famosas «esporas de oiro»: o mais tarde General Reymão Nogueira e o Coronel Fernando Paes. Ou seja, para nós, portugueses, aquela instituição
ainda tinha uma aura muito grande e nós os cinco achámos «o máximo» termos
visitado a Escola de Saumur.
Na
brevíssima visita à cidade, não foi referido que aquela tinha sido sede de uma
importante circunscrição administrativa até à Revolução Francesa – uma
Sénéchaussée – nem que durante a II Guerra Mundial a guarnição local opusera
grande resistência aos alemães e que por isso fora galardoada com a Medalha de
Mérito Nacional em 1945.
E,
dali, subimos o vale do Loire
rumo a Paris. Pernoitando
algures e sem vacas a ruminarem à nossa volta.
(continua)
Abril de 2020 Henrique
Salles da Fonseca
[i] - Actualmente, semi-civilizada, é a «Escola
Nacional de Equitação» e tem tutela conjunta do Exército e da Federação
Equestre Francesa
Tags: "viagens
na minha casa"
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