Tempo da “Caranguejola”. É como nos tratam, afinal. E como aceitamos estar. Alberto Gonçalves não o
aceita, certamente que repugnado da forma sorridentemente despótica com que se
manipulou o caso, e se continua, na atrocidade do ridículo em que a ignorância,
a mândria, a acomodação nos vai transformando, indiferentes ao futuro, como vegetais
que crescem na sujeição do tempo. Sá
Carneiro o descreveu, está-nos na alma. No sangue, algodão em rama do nosso bolor:
CARANGUEJOLA
Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho– que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo; (…)
Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho– que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo; (…)
Habituem-se: um retrato da “nova normalidade”/premium
A RTP, pelo menos, continua a
pendurar a “hashtag” #fiqueemcasa no cantinho do ecrã. O governo manda-nos sair
de casa. A DGS tem dias. O meu vizinho dorme na sala do condomínio. Obedeça a
todos.
ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 30 MAI 2020
António Costa.
Um
príncipe da política, um imperador da pandemia. Além da competência, do amor à
verdade e da empatia face ao cidadão comum, esta boa alma conduziu-nos pela
tormenta com a leveza de um anjo. Quem não se sentir agradecido, não merece ser
português. Quem se sentir, merece.
Álcool-gel.
Desinfecte
as mãos de 4 em 4 minutos. “As Mãos Sujas”, de Sartre, relata o drama de um
sujeito que não o fez e desatou a contaminar os vizinhos.
Austeridade.
Conforme
prometido, não haverá austeridade. No máximo, há fome, um capricho amaricado e
destinado a promover a dra. Jonet da “caridadezinha”.
Autoridades.
A
palavra inclui governantes, autarcas, técnicos, polícias e articulistas do
“Público”. Todos são excelentes, todos contribuíram para o milagre português,
que consiste em aumentar o número de infectados numa fase em que a Europa já
quase erradicou o bicho – o que deixa o bicho confundido. A miséria e a
humilhação são uma factura razoável por tão magnífico trabalho. Agradeça-lhes,
de mão no peito, sempre que os vir.
Casa.
A
RTP, pelo menos, continua a pendurar a “hashtag” #fiqueemcasa no cantinho do
ecrã. O governo manda-nos sair de casa. A DGS tem dias. O meu vizinho dorme na
sala do condomínio. Obedeça a todos.
Crianças.
Não
as tenha. Se já as teve, desenrasque-se.
Cultura.
Antigamente,
a cultura no sentido lato terminava nos habitantes da polinésia que davam
cabeçadas em rochedos com propósitos de acasalamento. Agora o conceito
alargou-se a qualquer desvairado que guinche umas cançonetas. Grave é que a
cultura sofre com a crise e nós sofremos com a cultura. Felizmente, o governo
vai ajudar a cultura, em nome dele e com o nosso dinheiro.
DGS.
Ao
longo de toda a epidemia, a DGS mostrou ser exactamente o que se esperava de
uma organização de burocratas instruídos nas fileiras do socialismo: um
espectáculo. Já a senhora que dá a cara e os palpites por aquilo é um
espectáculo dentro do espectáculo. O fundamental é respeitarmos as
recomendações que dali vêm, mesmo, ou sobretudo, se estas são absurdas,
prepotentes, divertidas ou contraditórias entre si. Em qualquer das hipóteses,
são sempre para o nosso bem.
Espectáculos.
Todos
proibidos excepto os protagonizados por comunistas ou, desculpem a redundância,
artistas cómicos.
Etiqueta respiratória.
A
“nova normalidade” implica novos conceitos, que dão aos que os utilizam sem se
rir a ideia de que estão a par dos tempos.
Jornalismo.
Ontem,
dia 29, o secretário de Estado da Saúde fez questão de agradecer “aos senhores
jornalistas pelo papel que têm desempenhado”. Não vale a pena comentar: o
papel que vão receber justifica o papel que desempenham.
Marcelo Rebelo de Sousa.
Passou
os primeiros tempos da epidemia a lavar calções em casa, passa os últimos a
passeá-los na rua. Pelo meio, disse umas coisas sobre a mola. Um senhor.
Máscaras.
Obrigatórias
em espaços fechados, à chave ou com o trinco. Também ficam impecáveis quando se
conduz sozinho ou se passeia nos cumes do Parque Natural do Montesinho. Davam
uma falsa sensação de segurança até começarem a dar uma verdadeira sensação de
segurança. O seu uso mostra obediência às regras e, de brinde, permite que
uma pessoa respire o seu próprio ar, e não o ar que anda por aí à solta sabe-se
lá em que condições.
Praias.
Um
pequeno grupo de estudiosos calculou a lotação ideal para cada praia nacional.
Um grupo maior de contribuintes paga o justo esforço dos estudiosos. O manual
da DGS, com meras 34 páginas, oferece ao banhista tudo o que este precisa saber
acerca dos comportamentos a adoptar. Basta respeitar semáforos, “sinalética”,
orientações de circulação, trigonometria do toalhão e, principalmente, obedecer
à directiva de não se deitar em cima de desconhecidos. Se o cidadão for
presidente da República, arranja um “esquema” e contorna os regulamentos com
facilidade. Se o cidadão for irresponsável, arranja um voo e vai espraiar-se em
lugares desprovidos de instruções.
Projecções.
Incontáveis gráficos foram criados por incontáveis
génios a descrever, por prestidigitação ou vidência, a evolução da epidemia. A
coisa só falhou enquanto os génios não perceberam que o segredo estava em
ajustar as previsões aos factos. A partir daí, não houve engano possível. É
fácil, por exemplo, saber quantos casos haverá no dia 5 desde que se faça a
previsão no dia 6.
Restaurantes.
Apenas
frequentáveis em conjunto por membros do mesmo agregado familiar, o que limita
o grupo de comensais a umas quatro pessoas – ou 57, se integrarem a “comunidade
cigana”. Leve comprovativos de parentesco e residência. E leve máscara,
claro, opcional no momento de enfiar a comida na boca.
Segunda vaga.
Inúmeros
especialistas, que disseram tudo e o seu contrário sobre a primeira vaga do
vírus, receiam particularmente a segunda. Eu confesso-me apreensivo com a
quinta, a sétima e a décima oitava. À cautela, fuja dos picos e das curvas
chatas e proteja-se até 2067.
SNS.
Graças
ao PS e ao dr. Arnaut, é o melhor serviço de saúde do mundo. Não fora a
escassez de material básico, a mais baixa “ratio” de unidades de cuidados
intensivos da Europa (incluindo Bulgária, Roménia e quiçá Albânia) e a necessidade
de matar poucos milhares de pacientes com outras doenças de modo a abrir alas
para a Covid, o SNS roçaria a perfeição. Certo é que, fora os sofredores
de maleitas oncológicas, cardiovasculares, respiratórias, hepáticas, renais e
etc., hoje não há ninguém que admita recorrer aos hospitais privados, de resto
a nacionalizar com urgência. Se se sentir mal, não vá ao “público”, mas louve-o
com o fervor de uma, ou duas, Catarina Martins.
Trump.
Uma
anedota de homem, que matou com as próprias mãos cem mil americanos. Permite
que a rapaziada das nossas televisões se convença de que faz jornalismo e
mordisca o poder. O poder de lá, obviamente.
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