Sou do tempo em que, em África, vivi
numa casa do Estado, num sólido bloco de três apartamentos corridos, entre o do
Sr. Rodrigues e o do sr. Sanches, ali na 5 de Outubro, nº 84, que fazia esquina
com a João-de-D eus. Tinha uma extensa varanda em redor, onde corríamos e
brincávamos, mas um dia fizeram muros a isolá-los e ainda me lembro da decepção,
perante os muros que nos confinaram. Quando, depois do curso, voltei a Lourenço
Marques, onde nasci, os meus pais tinham mudado de apartamento, perto da antiga
casa, mas na Luciano Cordeiro, um prédio novo, a fazer esquina com a mesma 5 de
Outubro, um edifício em cujo espaço anterior tinham vivido a Rita e a Domina, umas
goesas com quem tanto brinquei, além da Margarida, que vivia em casa própria,
do outro lado dessa mesma Luciano Cordeiro, uma família goesa também, mas de
casta superior. Estranhei aquele 5º andar, para onde se subia de elevador, e
que tinha elevador próprio para o lixo, largado dos baldes e sem protecção
plástica, que não existia ainda, o que provocava odores fortes de poluição. Mas os apartamentos, de renda acessível, eram
ainda resultado das políticas sociais habitacionais do tempo de Salazar, que
fizera construir casas para os seus funcionários.
Também me lembro do regresso para cá,
onde estranhei os bairros de lata, como tortulhos a crescer em terrenos
baldios, nas cidades, depois de ter estranhado a ocupação dolosa de casas e
palacetes por cá, em tempos de má memória, mas as políticas de habitação
foram-se fazendo, com a extinção dos bairros da lata e outras providências como
construção de edifícios de rendas aparentemente acessíveis. Mas no tempo de
Salazar o dinheiro era próprio nosso, ao passo que as políticas sociais por cá
se fazem com dinheiros de empréstimo. E é assim que lemos o quadro confrangedor
que traça Maria Manuel Rola, sobre a situação de “Ter pessoas a viver num hostel em camaratas, num contentor agrícola
ou em barracas de madeira durante meses ou anos deveria ser uma situação que
envergonha o Estado Português. Não obstante, essa é a resposta que este Governo
tem dado, ao arrepio do que foi aprovado na Lei de Bases da Habitação”. Em
tempo de confinamento é aterrador. Espera-se que o artigo daquela exerça algum
efeito sobre as decisões do governo a este respeito, mesmo com o débito em
crescendo. P’ra pior já basta assim.
FicaEmCasa
Ter pessoas a viver num hostel em
camaratas, num contentor agrícola ou em barracas de madeira durante meses ou
anos deveria ser uma situação que envergonha o Estado Português. Não obstante,
essa é a resposta que este Governo tem dado, ao arrepio do que foi aprovado na
Lei de Bases da Habitação.
MARIA MANUEL ROLA
PÚBLICO, 18 de Maio de 2020, 16:10
Se não é novidade que a habitação é garantia de saúde, torna-se
agora incontornável. Na
leitura dos relatórios do Estado de Emergência e suas renovações, percebe-se
que os principais focos de infecção em situação de confinamento advieram de
contextos concretos: estruturas residenciais para idosos,
alojamentos locais que albergam pessoas requerentes de asilo em Portugal,
imigrantes trabalhadores da agricultura intensiva no Alentejo e Algarve e comunidades
em situação de habitação indigna, nomeadamente barracas ou tendas. Nestas
comunidades “amontoadas” falta habitação digna e possibilidade de
distanciamento e confinamento nos dias que correm. Mas segundo a lei de bases
estas já eram situações de “insalubridade, sobrelotação” e em “risco de promiscuidade”, no resto dos dias.
Durante
estes últimos meses saíram dois relatórios que vieram reafirmar o que Leilani Farha tinha concluído já em 2016 quando
veio a Portugal enquanto
relatora da ONU para o direito à habitação: Portugal deixa de fora do acesso a uma
habitação digna dezenas de milhares de pessoas.
O Levantamento do IHRU feito em 2017 identificava quase 26.000 e
não contava com uma grande parte destas populações: quase 30% dos municípios
respondeu que não teria carências habitacionais.
Estas são pessoas que não se podem proteger do vírus. Ter pessoas a
viver num hostel em camaratas, num contentor agrícola ou em barracas de madeira durante meses ou anos
deveria ser uma situação que envergonha o Estado Português. Não obstante, essa é a resposta que
este Governo tem dado, ao arrepio do que foi aprovado na Lei de Bases da
Habitação e do que definem os Direitos Humanos mais básicos e as evidências de
saúde pública, e não parece existir inversão.
Se
não vejamos, numa famigerada Resolução do Conselho de Ministros, este Governo,
e ao arrepio do que os municípios de Odemira e Aljezur solicitaram, entendeu
permitir que a resposta inscrita neste documento fosse a de construir
um gueto para milhares de trabalhadores agrícolas durante 10 anos – aquilo que
define nessa decisão como período transitório. Já veio
dar o dito pelo não dito, mas o que decidiu na altura foi mesmo isto, e a
resolução continua em vigor.
Mais
recentemente, durante a pandemia, percebemos que, através do Ministério da
Administração Interna, entende que garantir habitação a requerentes de asilo
durante meses é alojá-los em camaratas de hostels em Lisboa, empurrando a
resposta que deveria ser directa para uma organização não-governamental. Neste caso, também o município de Lisboa
não foi tido nem achado, quer na vertente do apoio social, quer na vertente da
habitação, ou ainda do turismo e urbanismo. Recorrer
a uma resposta temporária e turística para residência concedida como resposta
do Estado Português é errado. De
facto, quer o pelouro do turismo lhes poderia ter dito que não se trata de
turismo; o da habitação que estas não são respostas habitacionais; e o dos
direitos sociais que é um atropelo à dignidade humana que o Estado deveria
velar.
Entretanto,
no último Relatório do Estado de Emergência pode ler-se que existem “alguns
hostels da cidade de Lisboa, onde residem inúmeros cidadãos estrangeiros” e que
as entidades do Estado entendem que “as condições de alojamento nas unidades
hoteleiras em questão, embora dignas, não se adequam ao necessário
distanciamento social exigido pelo combate à pandemia.” O
único problema aqui parece ser o raio do vírus. Não é.
O problema é a perspectiva omissa sobre o direito à habitação no
nosso país. É por
isso urgente que se envolva o Ministério da Habitação para que mobilize
edificado em grande escala para responder por um serviço nacional que garanta
um parque de habitação pública, integradora, digna e salubre. Mas
é também primordial que a regulamentação da lei do Alojamento Local saia da
gaveta e que este deixe de poder ser carne e peixe, conforme o que der mais
lucro. E
por fim, que a ASAE tenha instruções para definir estes espaços como o que têm
sido: arrendamento habitacional em que as pessoas não podem viver
em camaratas.
Passar ao lado da omissão
profunda nas condições de “refúgio” digno e de saúde pública é o maior erro da
nossa democracia e a nossa principal fragilidade social. A total liberalização
do uso da habitação de Cristas que este Governo não quis reverter só piorou.
Continuar a não dar centralidade a este direito é persistir no erro e acrescentar
crise à crise e doença à doença.
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