terça-feira, 19 de maio de 2020

Pois!


Sou do tempo em que, em África, vivi numa casa do Estado, num sólido bloco de três apartamentos corridos, entre o do Sr. Rodrigues e o do sr. Sanches, ali na 5 de Outubro, nº 84, que fazia esquina com a João-de-D eus. Tinha uma extensa varanda em redor, onde corríamos e brincávamos, mas um dia fizeram muros a isolá-los e ainda me lembro da decepção, perante os muros que nos confinaram. Quando, depois do curso, voltei a Lourenço Marques, onde nasci, os meus pais tinham mudado de apartamento, perto da antiga casa, mas na Luciano Cordeiro, um prédio novo, a fazer esquina com a mesma 5 de Outubro, um edifício em cujo espaço anterior tinham vivido a Rita e a Domina, umas goesas com quem tanto brinquei, além da Margarida, que vivia em casa própria, do outro lado dessa mesma Luciano Cordeiro, uma família goesa também, mas de casta superior. Estranhei aquele 5º andar, para onde se subia de elevador, e que tinha elevador próprio para o lixo, largado dos baldes e sem protecção plástica, que não existia ainda, o que provocava odores fortes de poluição. Mas os apartamentos, de renda acessível, eram ainda resultado das políticas sociais habitacionais do tempo de Salazar, que fizera construir casas para os seus funcionários.
Também me lembro do regresso para cá, onde estranhei os bairros de lata, como tortulhos a crescer em terrenos baldios, nas cidades, depois de ter estranhado a ocupação dolosa de casas e palacetes por cá, em tempos de má memória, mas as políticas de habitação foram-se fazendo, com a extinção dos bairros da lata e outras providências como construção de edifícios de rendas aparentemente acessíveis. Mas no tempo de Salazar o dinheiro era próprio nosso, ao passo que as políticas sociais por cá se fazem com dinheiros de empréstimo. E é assim que lemos o quadro confrangedor que traça Maria Manuel Rola, sobre a situação de “Ter pessoas a viver num hostel em camaratas, num contentor agrícola ou em barracas de madeira durante meses ou anos deveria ser uma situação que envergonha o Estado Português. Não obstante, essa é a resposta que este Governo tem dado, ao arrepio do que foi aprovado na Lei de Bases da Habitação”. Em tempo de confinamento é aterrador. Espera-se que o artigo daquela exerça algum efeito sobre as decisões do governo a este respeito, mesmo com o débito em crescendo. P’ra pior já basta assim.

FicaEmCasa
Ter pessoas a viver num hostel em camaratas, num contentor agrícola ou em barracas de madeira durante meses ou anos deveria ser uma situação que envergonha o Estado Português. Não obstante, essa é a resposta que este Governo tem dado, ao arrepio do que foi aprovado na Lei de Bases da Habitação.
MARIA MANUEL ROLA
PÚBLICO, 18 de Maio de 2020, 16:10
Se não é novidade que a habitação é garantia de saúde, torna-se agora incontornável. Na leitura dos relatórios do Estado de Emergência e suas renovações, percebe-se que os principais focos de infecção em situação de confinamento advieram de contextos concretos: estruturas residenciais para idosos, alojamentos locais que albergam pessoas requerentes de asilo em Portugal, imigrantes trabalhadores da agricultura intensiva no Alentejo e Algarve e comunidades em situação de habitação indigna, nomeadamente barracas ou tendas. Nestas comunidades “amontoadas” falta habitação digna e possibilidade de distanciamento e confinamento nos dias que correm. Mas segundo a lei de bases estas já eram situações de “insalubridade, sobrelotação” e em “risco de promiscuidade”, no resto dos dias.
Durante estes últimos meses saíram dois relatórios que vieram reafirmar o que Leilani Farha tinha concluído já em 2016 quando veio a Portugal enquanto relatora da ONU para o direito à habitação: Portugal deixa de fora do acesso a uma habitação digna dezenas de milhares de pessoas. O Levantamento do IHRU feito em 2017 identificava quase 26.000 e não contava com uma grande parte destas populações: quase 30% dos municípios respondeu que não teria carências habitacionais.
Estas são pessoas que não se podem proteger do vírus. Ter pessoas a viver num hostel em camaratas, num contentor agrícola ou em barracas de madeira durante meses ou anos deveria ser uma situação que envergonha o Estado Português. Não obstante, essa é a resposta que este Governo tem dado, ao arrepio do que foi aprovado na Lei de Bases da Habitação e do que definem os Direitos Humanos mais básicos e as evidências de saúde pública, e não parece existir inversão.
Se não vejamos, numa famigerada Resolução do Conselho de Ministros, este Governo, e ao arrepio do que os municípios de Odemira e Aljezur solicitaram, entendeu permitir que a resposta inscrita neste documento fosse a de construir um gueto para milhares de trabalhadores agrícolas durante 10 anos – aquilo que define nessa decisão como período transitório. Já veio dar o dito pelo não dito, mas o que decidiu na altura foi mesmo isto, e a resolução continua em vigor.
Mais recentemente, durante a pandemia, percebemos que, através do Ministério da Administração Interna, entende que garantir habitação a requerentes de asilo durante meses é alojá-los em camaratas de hostels em Lisboa, empurrando a resposta que deveria ser directa para uma organização não-governamental. Neste caso, também o município de Lisboa não foi tido nem achado, quer na vertente do apoio social, quer na vertente da habitação, ou ainda do turismo e urbanismo. Recorrer a uma resposta temporária e turística para residência concedida como resposta do Estado Português é errado. De facto, quer o pelouro do turismo lhes poderia ter dito que não se trata de turismo; o da habitação que estas não são respostas habitacionais; e o dos direitos sociais que é um atropelo à dignidade humana que o Estado deveria velar.
Entretanto, no último Relatório do Estado de Emergência pode ler-se que existem “alguns hostels da cidade de Lisboa, onde residem inúmeros cidadãos estrangeiros” e que as entidades do Estado entendem que “as condições de alojamento nas unidades hoteleiras em questão, embora dignas, não se adequam ao necessário distanciamento social exigido pelo combate à pandemia.” O único problema aqui parece ser o raio do vírus. Não é.
O problema é a perspectiva omissa sobre o direito à habitação no nosso país. É por isso urgente que se envolva o Ministério da Habitação para que mobilize edificado em grande escala para responder por um serviço nacional que garanta um parque de habitação pública, integradora, digna e salubre. Mas é também primordial que a regulamentação da lei do Alojamento Local saia da gaveta e que este deixe de poder ser carne e peixe, conforme o que der mais lucro. E por fim, que a ASAE tenha instruções para definir estes espaços como o que têm sido: arrendamento habitacional em que as pessoas não podem viver em camaratas.
Passar ao lado da omissão profunda nas condições de “refúgio” digno e de saúde pública é o maior erro da nossa democracia e a nossa principal fragilidade social. A total liberalização do uso da habitação de Cristas que este Governo não quis reverter só piorou. Continuar a não dar centralidade a este direito é persistir no erro e acrescentar crise à crise e doença à doença.
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