sábado, 16 de maio de 2020

“Les jeux sont faits”



Voltamos sempre à vaca fria do destino pindérico, com covid-19 ou sem ele. Helena Garrido explica com seriedade e preocupação moralista. Alberto Gonçalves não dá tréguas ao seu jeito retratista de tintas carregadas do seu desprezo. Infelizmente não se trata de caricatura, porque é exacto.
I - Vivemos em Estado de excepção? /premium
Vamos ser um dos últimos países a entregar em Bruxelas o Programa de Estabilidade. E sem previsões para a economia. O que justifica este atraso e esta falta de informação?
HELENA GARRIDO
OBSERVADOR; 11 MAI 2020
Temos de ter cuidado para que o medo não nos torne permissivos com o poder. Já basta aquilo que, com facilidade, algumas pessoas estão dispostas a permitir, em matéria de violação da sua privacidade. Não podemos sucumbir ao medo, sacrificando a liberdade e a obrigação de escrutínio do poder. Há regras que devem continuar a ser cumpridas, especialmente se é difícil encontrar razões para a aplicação de regimes excepcionais. Pequenos pormenores contam, porque o diabo está nos detalhes. E o Governo continua a ter obrigações de transparência e responsabilização.
Falamos na decisão do Governo de apresentar o Programa de Estabilidade sem previsões económicas, no mínimo que fosse para 2020, nem perspectivas para as contas públicas. E de colocar Portugal na lista dos últimos países a entregar o Programa de Estabilidade em Bruxelas: neste domingo, dia 10 de Maio, faltavam apenas três Estados-membros, um dos quais Portugal.
O Programa de Estabilidade 2020 foi entregue no Parlamento na quinta-feira dia 7 de Maio e será debatido dia 14 de Maio. Neste regime de excepção, não encontramos também a opinião do Conselho de Finanças Públicas sobre o Programa de Estabilidade, o que acontece de imediato sempre que há previsões como se pode ver aqui. O CFP, agora liderado por Nazaré da Costa Cabral, só mais tarde se pronuncia sobre o Programa em si.
O argumento do ministro das Finanças, que apresentou na entrevista que deu à RTP e que se pode ler igualmente no documento do Programa é que “prever a evolução da actividade da economia, neste contexto, significa prever a evolução da situação epidemiológica, o que é algo que continua envolto em grande incerteza”. E, “por este motivo o presente Programa de Estabilidade não avança uma previsão para o crescimento económico em 2020, nem especula sobre a evolução da actividade económica nos anos seguintes”.
Todos os países da União Europeia vivem a mesma situação de incerteza. Aguardemos, pois, para saber se todos vão seguir esta regra portuguesa, de apresentar um Programa de Estabilidade muito incompleto, usando como argumento os tempos incertos que estamos a viver. Uma primeira análise diz-nos que não será assim.
Se o Banco de Portugal, o BCE, o FMI e a Comissão Europeia tivessem seguido a mesma linha argumentativa do Governo, hoje não teríamos nenhuma previsão sobre a evolução da economia mundial, europeia e de Portugal. As instituições e os governos são especialmente necessários nestas situações de incerteza, em que é preciso reduzir o nevoeiro que temos à nossa volta. Nos dias claros e luminosos praticamente todos temos a mesma visibilidade e precisamos menos dos governos e das instituições para vermos por onde caminhamos.
O Governo, um qualquer governo, tem mais informação do que um qualquer cidadão. E tem especiais obrigações, em tempos tão incertos como aqueles em que vivemos, de partilhar esses dados para que empresários e famílias consigam ter menos custos com a crise. Não se percebe, por isso, o que leva o Ministério das Finanças a não partilhar esses dados.
Porque os tem. O ministro das Finanças, na entrevista que deu a Vítor Gonçalves na RTP refere alguns números. Estima que o confinamento tenha levado a uma quebra de 40% e que o PIB esteja com uma trajectória de queda de 6,5% este ano, num cenário em que não sejam tomadas medidas de recuperação. Porque não trabalhou o Ministério das Finanças estes cenários? Porque não o usou também para projectar os efeitos nas contas públicas?
É sem dúvida mais fácil fazer previsões e acertar nelas quando os dias são claros e se pode usar o veto de gaveta para impedir despesa pública, tal como aconteceu nos últimos anos. Com origem em 2014, o sector do turismo e um ambiente internacional favorável faziam avançar sem problemas a economia portuguesa. No Parlamento, o apoio do PCP e do BE permitiam que se fizessem orçamentos em que se prometia despesa que não se fazia e, assim, controlando a despesa pública dos que não têm uma voz que chegue aos ouvidos de todos.
Não há milagres, em economia. Infelizmente. E mais cedo ou mais tarde, as razões do que nos pareceram “milagres” aparecem. Um exemplo. Estamos em meados da década de 80 do século XX, era Aníbal Cavaco Silva primeiro-ministro e Miguel Cadilhe ministro das Finanças, no governo minoritário que conduziu à maioria absoluta de 1987. A taxa de inflação cai de cerca de 20% em 1985 para 12% em 1986, ao mesmo tempo que diminui também o desemprego. Magia? Não. O preço do petróleo caiu para os 15 dólares o barril e a desvalorização do dólar permitiu que o custo, em escudos, diminuísse para metade. Quando o preço do petróleo voltou a subir, com o dólar, a inflação revelou-se muito mais difícil de baixar. E Miguel Cadilhe passou a ser sistematicamente questionado pelos jornalistas por essa nova resistência da taxa de inflação.
Também hoje não há milagres. O Governo vai dizer-nos que aquilo que enfrentamos hoje não é da sua responsabilidade. E tem razão. Vai recordar-nos que a economia estava a crescer, o desemprego a diminuir. É verdade. O que esquece de nos dizer é que a margem que ganhámos nestes últimos anos foi muito reduzida. Tão reduzida que pertencemos ao grupo de países onde as medidas para mitigar o efeito da crise são das mais modestas. Não estávamos preparados para estes tempos tão difíceis ou, usando a imagem que o ministro das Finanças, costumava utilizar, não estávamos ainda num porto de abrigo.
O que não podemos deixar é que estes tempos de excepção permitam ao Governo deixar de partilhar connosco as suas perspectivas para a economia. Como já se disse, é mais fácil acertar nas previsões quando o horizonte está limpo. Soube bem ao Governo ridicularizar as previsões dos outros por se enganarem, quando tinha mais informação. É pena que o ministro das Finanças não queira correr riscos e assumir as suas previsões para a economia portuguesa neste momento, arriscando errar. Teremos de esperar pelo Orçamento rectificativo neste Estado de excepção que o Governo escolheu seguir.
COMENTÁRIOS
manuel soares Martins: As considerações de H.G. são todas justíssimas e oportunas. Navegar com bom vento a favor é fácil ; dá para bravatas de ronaldos das finanças. Mas o vento mudou e agora que precisávamos é que os habilidosos se encolhem e se vê que não estão a altura da vaidade que ostentavam.
Carlos Almeida: Excelente análise, Drª Helena Garrido. Fico satisfeito que ainda existam jornalistas que nos esclarecem sobre a esclerosada situação económica  do país. 
II - Um vírus português /premium
O português médio padece da exacta irresponsabilidade das “elites” (desculpem) que o pastoreiam. O português médio não se recomenda, donde os portugueses que nele mandam serem tão pouco recomendáveis.
ALBERTO GONÇALVES, Colunista do Observador
OBSERVADOR, 16 mai 2020
O BE esquece-se ter votado o orçamento que financiava o Novo Banco e questiona o primeiro-ministro. O primeiro-ministro finge que não sabe do financiamento ao Novo Banco, mente ao parlamento e entala o ministro das Finanças. O ministro das Finanças estrebucha e com escassa subtileza chama mentiroso ao primeiro-ministro. O primeiro-ministro conspira um acordo e apoia a recandidatura do Presidente da República. O Presidente da República, por troca directa, exalta o primeiro-ministro e enxovalha o ministro das Finanças. O ministro das Finanças recebe um pedido de desculpas telefónico do Presidente da República. O líder da oposição (estou a brincar) obedece ao líder do governo e pede a demissão do ministro das Finanças. O ministro das Finanças, com o ar apalermado que Deus lhe deu, aceita tudo na condição de o projectarem para um posto inútil e bem remunerado. O povo aceita tudo sem condições e legitima em sondagens esta cáfila.
Não vou exceder-me nos comentários de semelhante indecência. O episódio do Novo Banco é apenas a enésima demonstração da falta de escrúpulos das “personalidades” em causa. Isto é gente sem vestígio de dignidade ou valor. Isto não é a sujidade intrínseca à política: é imundície pura, da que se encontra nas franjas baixas da humanidade. Isto aproxima-se do pior da humanidade, em matéria de descaramento e cinismo. E a verdadeira tragédia é não nos podermos queixar.
“Que fizeram os portugueses para merecer elites tão lastimáveis?” é uma pergunta que devia ser interdita – porque a resposta define uma natureza. E dói. Os portugueses limitam-se a existir, o resto vem por acréscimo: é, como se diz em língua de trapos, uma decorrência inevitável. Ao contrário dos portugueses, as elites não existem. Os Costas, os Centenos, os Marcelos, as Catarinas, os Rios e os Ferros que rebolam por aí, anafados e boçais, não seriam elitistas nem sequer no pátio de Alcatraz. São habilidosos com pouca habilidade e nenhuma virtude. São demagogos primários, capazes do que calha para safarem o próprio lombo. São, e eis a desgraça, iguaizinhos à maioria dos portugueses, dos quais se distinguem apenas pelos privilégios. E a maioria não lamenta os privilégios: inveja-os. O português médio não sente vergonha dos Costas, dos Centenos, dos Marcelos e tal. O português médio gostaria de ocupar o lugar deles. O português médio sonha “subir” até ao ponto em que pudesse viver despreocupadamente a explorar, a humilhar e a gozar os portugueses que ficariam para trás. O português médio padece da exacta irresponsabilidade das “elites” (desculpem) que o pastoreiam. O português médio não é levado a sério na medida em que não se leva a sério. O português médio não se recomenda, donde os portugueses que nele mandam serem tão pouco recomendáveis.
Se necessário fosse, e não era, a história da Covid exibiu a essência deste povo. Há qualquer coisa doentia em criaturas paralisadas pelo medo e pela propaganda. E que desejam impedir os outros de sair e trabalhar, excepto se os outros lhes asseguram a disponibilidade de supermercados, restaurantes, farmácias e etc. E que aspiram a permanecer enclausurados, na ilusão de que o emprego e o salário dependem de arranjo divino e não da reles economia. E que acatam sem uma dúvida as “recomendações” e os açaimos dessa trupe circense intitulada DGS. Há qualquer coisa doentia nessas criaturas, por acaso minhas conterrâneas. A infantilidade é o vírus português.
Em países civilizados, há protestos na rua contra a continuação da quarentena ou contra as regras posteriores a uma quarentena que já se percebeu excessiva e desastrosa. Na selva lusitana, boa parte dos nativos protesta na sala de estar contra o “desconfinamento” dito “prematuro”. Se os deixassem, e talvez deixem, ficariam por lá durante meses ou anos, a carregar no “pause” da Netflix para vir à janela condenar o vizinho que passeia, para cúmulo sem calções, cão ou máscara “social”. A máscara é “social”. O distanciamento (significa “distância”) é “social”. O isolamento é “social”. A novilíngua insiste no “social” para criar um simulacro de sociedade. O que temos aqui não é uma sociedade, mas uma rede de trapaças de que alguns beneficiam e a que quase todos querem pertencer. Uma multidão de zelotas em obediência cega a bandos de trapaceiros é uma farsa, não uma sociedade.
A farsa teria piada se não tivesse consequências. Tem. Aliás, já começaram e com uma violência proporcional à fragilidade das nações pelintras. As filas da fome são longas e crescerão bastante mais, infelizmente não à custa da população activa hoje inactiva por causa de um vírus a que é praticamente imune. Os que sofrem, e se candidatam à sopa dos pobres, não são os que ignoram o nexo entre a histeria e a submissão: são principalmente os que conhecem a relação entre a inércia e a penúria. Muitos desses não mereciam as “elites”, a cobiça das “elites”, as grotescas rábulas das “elites”, o “confinamento” infundado, a destruição dos negócios, o incremento das negociatas, as “etiquetas respiratórias” e humilhantes, a negação da austeridade, os anúncios da “retoma”, a “retoma” movida a “investimento” público, as mentiras, os roubos, a prepotência, o desprezo e a miséria. Os restantes, os que no sofá se abraçam à “hashtag” #fiquememcasa, merecem tudo. E aplaudem tudo.
COMENTÁRIOS:
JB Dias:
Verdade do início ao fim e já dificilmente explicado pela tradicional dissonância cognitiva ... a população que os idolatra divide-se entre os que vão recebendo benesses, ainda que em muitos casos migalhas, e os que vivem numa constante relação de amor-ódio entre o ídolo e a inveja deste. A maioria é meramente infantil, inculta e amorfa, sempre carente de ordens e penas e limitações, que por um lado lhes dão algum sal a vidinhas sem vida e por outro lhes permitem a sensação de ligação ao poder, que admiram, ao apontarem dedos acusadores aos prevaricadores e ao denunciarem os vizinhos. Não foi por acaso que a podridão da monarquia constitucional durou décadas, não foi por acaso que a bandalheira da 1 República durou mais de 15 anos, nem foi por acaso que o Estado Novo por aí andou quase 50 ... não é por acaso que já são 46 os anos do Estado a que isto chegou! A populaça não gostando do que vê opta por só ver aquilo de que gosta.
Dani Silva: Muito bom, como já nos habituou!
Alberto Sousa: Desta vez muito mais que ironia!... Verdades, puras e duras. Até dói... Carrega e dá-lhes com força AG. Que nunca te faltem os pontos nos i's...
Maria Carreira: Brilhante! Os seus textos são, para mim, uma lufada de ar fresco. Pela minha parte, espero que continue. Infelizmente, parece que o "tuga" gosta é de inspirar mofo e patchouli que é ao que cheira o país! E rebolar em lama (como certos animais triunfantes !!) Não iremos sair disto!

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