De Centeno e de Marcelo. O primeiro por Francisco
Assis, o segundo por José Pacheco Pereira. Gente que
sabe e que pondera, os que escrevem. Gente que age e passará, sem deixar rasto, os que actuam. Um prazer de leitura, até mesmo para leigos.
I - OPINIÃO: O
sacrifício de Centeno
Mário Centeno, economista bem preparado mas político de
primeira viagem, sucumbiu ao seu próprio discurso. O funambulismo não está ao
alcance de qualquer um.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 16 de
Maio de 2020,
Na
semana em que o país iniciou tranquilamente o processo de desconfinamento, o
mundo político ensombreceu-se numa floresta de equívocos e de contradições. É
sinal de que estamos a regressar à normalidade. Nunca me
comoveram as declarações proféticas daqueles seres dados a arrebatamentos
místicos que antecipam em cada crise a miragem da chegada à terra prometida. O
vírus despertou-lhes o narcisismo mas não lhes libertou a imaginação. Advogam
mudanças radicais estranhamente coincidentes com as representações utópicas com
que se inebriam desde que se conhecem. Não há
pandemia que os transforme. Tudo deve ser objecto de profundas
metamorfoses, à excepção dos próprios e dos seus delirantes devaneios.
Regressemos,
assim, ao universo mais prosaico da nossa vida política. Comecemos pelo óbvio: Mário Centeno não foi uma peça menor na coreografia da
denominada “geringonça”. Com o
prestimoso contributo do próprio, devidamente encandeado pelas luzes de uma
ribalta pública inacessível a um competente quadro do Gabinete de Estudos do
Banco de Portugal, o economista doutorado em Harvard desempenhou o papel
imprescindível de garante da seriedade de uma solução política de consistência
e de probidade duvidosas. Centeno,
o casto cultor do conservador princípio das “contas certas”, por contraposição
às esfusiantes jovens do Bloco de Esquerda e às esfíngicas múmias do PCP, era
apresentável na pérfida Europa e frequentável na pequena aldeia financeira
portuguesa. O ministro das Finanças era o
chaperon perfeito para os idílios perigosos entre o PS e as suas aparentemente
impetuosas companhias da esquerda extremista.
Nesta
combinação tudo parecia correr no melhor dos mundos. O chaperon desviava o
olhar nos momentos mais conspícuos e os transes amorosos prosseguiam na propositada
ignorância de observador tão desatento. Até a subtil Europa
pareceu cair em tal engodo. Rendidos às
palavras e aos números exibidos pelo apregoado mago das finanças português, elevaram-no
a uma condição até então só alcançada por indefectíveis servidores da ortodoxia
em que se declina o discurso económico-financeiro europeu. Nesse dia, o
brilhante chaperon percebeu duas coisas: que poderia ambicionar a ter vida
própria e que, no fundo, o seu posicionamento e o seu pensamento em quase nada
destoavam das do seu criador político.
O sucesso da “geringonça” assentou,
em grande parte, na prodigiosa imaginação especular dos seus criadores. Nisso, nem Orson Welles foi tão longe na célebre
cena dos espelhos no final de A
Dama de Xangai. No caso português, a realidade expandiu-se
em múltiplos e contraditórios reflexos especulares. Num
espelho observava-se o corte com a austeridade, num outro a resistência à
irresponsabilidade das reivindicações salariais dos professores,
noutro a brutal contracção do investimento público, noutro ainda a ruptura com
as terríveis imposições europeias, num derradeiro espelho a plena concordância
com o discurso em voga na União Europeia. Mário
Centeno foi uma peça-chave neste processo
que tem tanto do domínio da prestidigitação como do da realidade. Aliás, o
sucesso deste processo resulta da astuta combinação destas duas dimensões. Não
importa agora averiguar se daí resultaram vantagens ou inconvenientes para o
país. Nunca nos entenderemos nesse plano.
Aqui
chegados, e ainda mais no contexto de uma grave crise sanitária, nada
parecia apontar para a eclosão de uma crise tendo por epicentro a figura de Mário Centeno.
A vida, porém, reveste-se de contornos shakespearianos
nas horas e nos lugares mais inesperados. Só isso explica os acontecimentos
desta semana. É verdade que tudo o que envolve o requentado escândalo do BES
tem o condão de incendiar as paixões humanas. Não é, de resto, caso para menos.
Na
germânica Autoeuropa, as mais
altas figuras do Estado deixaram claro que há temas que queimam e proximidades
que contaminam. Centeno, ao que consta, ponderou demitir-se. Acabou por não o
fazer. Esperemos que tal recuo não seja o resultado de um entendimento
perverso. O futuro o dirá.
Mário Centeno, economista bem preparado mas político de primeira
viagem, sucumbiu ao seu próprio discurso. O
funambulismo não está ao alcance de qualquer um. Foram inúmeras as vezes em que
o ainda ministro das Finanças, extasiado pelos aplausos provenientes da bancada
parlamentar e das estruturas intermédias do PS, se excedeu na tentativa de
menorização da acção prosseguida pelo Governo de Pedro Passos Coelho.
Nalguns momentos, Centeno deu mostras de ter chegado a acreditar na veracidade
das suas próprias palavras. Foi sincero por uma vez, quando, em declarações
prestadas, salvo erro, ao Finantial Times, reconheceu que a ruptura com o
passado recente não era afinal tão profunda quanto se alardeava. Terá percebido agora os limites do seu próprio
papel. Um ministro das Finanças só durante um espaço de tempo muito
curto pode cultivar a extravagância da heteronomia, ser ao
mesmo tempo o campeão das cativações e o herói do discurso anti-austeridade. Há um momento em que há necessidade de optar. Os 850 milhões relativos ao Novo Banco simbolizam a
opção feita. Nessa ocasião, Centeno ficou irremediavelmente sozinho.
Na germânica Autoeuropa, as mais altas figuras do Estado deixaram
claro que há temas que queimam e proximidades que contaminam. Marcelo excedeu-se na condenação de Centeno.
Costa desconfinou-se excessivamente na apologia do Presidente da República.
Centeno, ao que consta, ponderou demitir-se. Acabou por não o fazer. Esperemos
que tal recuo não seja o resultado de um entendimento perverso. O futuro o
dirá.
Uma coisa é verdade: o mundo não vai
mudar tanto quanto o reclamam os pregadores das utopias terrestres, mas a vida
política portuguesa está a mudar a cada dia que passa.
COMENTÁRIOS:
Magritte
EXPERIENTE: Centeno, como
o PS, estão entalados entre a retórica socialista e a matriz neoliberal com que
governam: é por isso que precisam da esquerda em Portugal mas não descolam
da ortodoxia europeia. Assis é também assim: morto e enterrado vai o "socialismo", e
só já sobra o que o identifica como "Militante do PS". O seu
ideário político está bem assente nas "contas responsáveis" e no
ataque aos loucos do PCP e do BE. Os rombos provocados pelos sucessivos
resgates à banca, os modelos ruinosos de PPP do seu PS e a divergência dentro
da moeda única não o desviam do seu objectivo: um estado mínimo para os pobres
e máximo para os ricos. Tudo bem temperado pelo mercado e sem entusiasmos por
mais estado social: a origem de todos os totalitarismos. 16.05.2020
Jose
MODERADOR: António
Costa partiu derrubando António José Seguro, em casa, em jeito golpe palaciano,
após este ter ganho as eleições autárquicas. Com essa purga anunciou o céu na
terra p'rá década. Perdeu as eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015 que
foram ganhas por Passos Coelho e Portas. Com minoria e o 2.° grupo parlamentar
foi indigitado 1º. Ministro por Cavaco Silva que nunca se engana. Nessa noite
de eleições não foram as vacas que voaram, foram os promissores autoproclamados
donos do futuro como um tal Assis que se escafederam do mapa político. Daí até
às eleições que se seguiram às autárquicas a expectativa foi imensa na caverna
dos crentes como Passos Coelho e seu bando. Desapareceram todos do mapa
político. Marcelo que em Outubro de 2017 ameaçou despedaçar tudo, rendeu-se a
Costa. 16.05.2020
Jose
MODERADOR: O
germânico Patrão estrangeiro foi o anfitrião do golpe da mudança de regime. Ali
nasceu o presidencialismo e ali se sacrificou a Constituição às mãos e no
interesse pessoal, de quem a jurou cumprir e fazer cumprir. António Costa
empossado plenipotenciário pelo Estado de Emergência decretado por Marcelo está
esgrimindo golpes de poder absoluto em todas as direcções. Ali ficou a nova
troika: O Patrão germânico, o Presidente e o Presidente dos Presidentes. Tudo a
partir de uma derrota eleitoral. No meio disto tudo o prestidigitador é Centeno,
acha Assis. 16.05.2020
jfaa07.873617 INICIANTE: Foi uma "trivela" modelo - "Seguro"…
em "slow-motion" por agora. 16.05.2020
ana
cristina MODERADOR: Gostei da imagem do jogo de espelhos e dos heterónimos.
É exactamente isso. Só que, com um nome só, os heterónimos soam a pura
aldrabice. 16.05.2020
II - OPINIÃO: Cuidado
com os segundos mandatos presidenciais
É uma estupidez da direita ser contra
Marcelo e é uma estupidez da esquerda ser a favor. Saiam os chapéus de burro.
JOSÉ PACHECO
PEREIRA
PÚBLICO, 23 de Maio de 2020
Eu
já vi este filme: quando Mário Soares se apresentou para um segundo mandato,
com a eleição assegurada por todas as sondagens, Cavaco Silva e a direcção do
PSD consideraram que não valia a pena fazer nada, a não ser juntar-se à
candidatura vencedora. As eleições presidenciais, com um candidato próprio
apoiado pelo PSD, seriam uma perturbação que se iria manifestar na governação
presente e futura. Cavaco
Silva era muito pragmático sobre isso e
entendia que não havia um preço por aí além em apoiar Soares. Enganou-se. Vejo na cabeça de Costa exactamente o mesmo raciocínio:
não vale a pena estar a criar problemas com uma
derrota numa candidatura presidencial própria contra Marcelo, quando as coisas
vão mais ou menos bem. Sublinho o “mais ou menos” para memória futura.
Conheço
bem o que se passou porque fui uma das pessoas que foram “enviadas” para a
candidatura de Soares, dado que o tinha apoiado na primeira eleição, em 1986,
quando o PSD apoiava Freitas, e porque tinha boas relações com Mário Soares.
Mas sabia que o idílio era de má-fé, por parte de Cavaco e de Soares, e que
o segundo mandato iria ser muito diferente do primeiro. E foi, terminando
em guerra aberta, com Soares a fazer tudo para radicalizar o PS contra o
Governo, vociferando contra a moleza do partido, a fazer umas “presidências
abertas” de propaganda antigovernamental, a ensaiar um congresso da
oposição e a usar todos os meios para bloquear a governação de Cavaco, tendo,
inclusive, tentado criar condições para dissolver a Assembleia com o pretexto
do “mau funcionamento das instituições”, nesse episódio tão mal contado dos
corredores da Assembleia.
Marcelo é muito mais autoritário do que
se pensa, e o segundo mandato, com apoio do PS, vai dar-lhe ainda mais
legitimidade, logo, poder. Faça-se a justiça de que Costa, melhor do que
ninguém, sabe disso. A seu tempo, vai-se arrepender
A repetição do cenário de
1991, nos dias de hoje, tem diferenças. Marcelo não é Soares, Costa não é
Cavaco, o PSD e o PS não são os mesmos, o CDS caminha para a inexistência, o
PCP está paralisado na sua crise, e o Bloco e o Chega cresceram nos extremos. A tribalização da política por via das redes
sociais introduziu todos os perigos e riscos de um populismo agressivo, que
está no Chega, mas vai muito mais longe. Está, essencialmente, na crescente
fragilidade do centro político, PSD e PS, cujos votos são cada vez menos, com a
fragmentação da representação política. E há uma nova radicalização da direita,
a cuja captura o PSD escapou com Rio, mas que deu origem a uma política
reactiva contra um inimigo imaginário, em grande parte porque Costa é muito
mais centrista do que de esquerda. Tudo diferenças, e as diferenças contam
contra a tentação de se achar que está tudo na mesma, porque a coreografia
política de 1991 se repete em 2020.
Mas
há também similitudes, a maior
das quais é que o segundo mandato de Marcelo vai ser muito diferente
do primeiro. Os beijos e abraços vão acabar, e não é por causa da
pandemia. O teatro da afectividade, que tem sido um instrumento fundamental do
primeiro mandato, não é tão genuíno como se diz, e foi uma
forma hábil de poder que conta com um aspecto da idiossincrasia de Marcelo, mas
só um aspecto. Há outros que continuam lá. Marcelo fez toda a
vida uma carreira de cínico lúdico, inócuo e pouco importante nas “gentes” dos
jornais e nos comentários. Se lhe
acrescentamos poder, não é a mesma coisa. Marcelo é muito mais autoritário do que se pensa, e o
segundo mandato, com apoio do PS, vai dar-lhe ainda mais legitimidade, logo,
poder. Faça-se a justiça de que Costa, melhor do que ninguém, sabe disso, mas,
como Cavaco em 1991, é um pragmático e, se pode evitar um problema hoje, não o
troca pelas dificuldades do futuro. A seu tempo, vai-se arrepender.
E
a direita, se não estivesse tão pavloviana a tratar Costa como se fosse um
ditador, a enganar-se sempre no seu radicalismo com o que se está a passar, não
compreendendo que as razões pelas quais está acantonada a ver o Chega crescer
não são resultado de nenhuma conspiração do PS, percebia que Marcelo é o
seu melhor candidato. Rio percebeu-o, e ele conhece muito bem Marcelo.
Percebeu que Marcelo está muito mais à direita do que à esquerda, e na
conjuntura de crise com que se vai viver nos próximos anos, os conflitos com o
Governo serão muito mais agudos, a usura do Governo é muito maior e o exercício
do poder do Presidente já não depende de considerações de cálculo eleitoral. Por
tudo isto, é uma estupidez da direita ser contra Marcelo e é uma estupidez da
esquerda ser a favor. Saiam os chapéus de burro.
Historiador
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ELEIÇÕES
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