sábado, 23 de maio de 2020

Dois bons retratos da nossa praça


De Centeno e de Marcelo. O primeiro por Francisco Assis, o segundo por José Pacheco Pereira. Gente que sabe e que pondera, os que escrevem. Gente que age e passará, sem deixar rasto, os que actuam. Um prazer de leitura, até mesmo para leigos.
I - OPINIÃO:   O sacrifício de Centeno
Mário Centeno, economista bem preparado mas político de primeira viagem, sucumbiu ao seu próprio discurso. O funambulismo não está ao alcance de qualquer um.
FRANCISCO ASSIS
PÚBLICO, 16 de Maio de 2020,
Na semana em que o país iniciou tranquilamente o processo de desconfinamento, o mundo político ensombreceu-se numa floresta de equívocos e de contradições. É sinal de que estamos a regressar à normalidade. Nunca me comoveram as declarações proféticas daqueles seres dados a arrebatamentos místicos que antecipam em cada crise a miragem da chegada à terra prometida. O vírus despertou-lhes o narcisismo mas não lhes libertou a imaginação. Advogam mudanças radicais estranhamente coincidentes com as representações utópicas com que se inebriam desde que se conhecem. Não há pandemia que os transforme. Tudo deve ser objecto de profundas metamorfoses, à excepção dos próprios e dos seus delirantes devaneios.
Regressemos, assim, ao universo mais prosaico da nossa vida política. Comecemos pelo óbvio: Mário Centeno não foi uma peça menor na coreografia da denominada “geringonça”. Com o prestimoso contributo do próprio, devidamente encandeado pelas luzes de uma ribalta pública inacessível a um competente quadro do Gabinete de Estudos do Banco de Portugal, o economista doutorado em Harvard desempenhou o papel imprescindível de garante da seriedade de uma solução política de consistência e de probidade duvidosas. Centeno, o casto cultor do conservador princípio das “contas certas”, por contraposição às esfusiantes jovens do Bloco de Esquerda e às esfíngicas múmias do PCP, era apresentável na pérfida Europa e frequentável na pequena aldeia financeira portuguesa. O ministro das Finanças era o chaperon perfeito para os idílios perigosos entre o PS e as suas aparentemente impetuosas companhias da esquerda extremista.
Nesta combinação tudo parecia correr no melhor dos mundos. O chaperon desviava o olhar nos momentos mais conspícuos e os transes amorosos prosseguiam na propositada ignorância de observador tão desatento. Até a subtil Europa pareceu cair em tal engodo. Rendidos às palavras e aos números exibidos pelo apregoado mago das finanças português, elevaram-no a uma condição até então só alcançada por indefectíveis servidores da ortodoxia em que se declina o discurso económico-financeiro europeu. Nesse dia, o brilhante chaperon percebeu duas coisas: que poderia ambicionar a ter vida própria e que, no fundo, o seu posicionamento e o seu pensamento em quase nada destoavam das do seu criador político.
O sucesso da “geringonça” assentou, em grande parte, na prodigiosa imaginação especular dos seus criadores. Nisso, nem Orson Welles foi tão longe na célebre cena dos espelhos no final de A Dama de Xangai. No caso português, a realidade expandiu-se em múltiplos e contraditórios reflexos especulares. Num espelho observava-se o corte com a austeridade, num outro a resistência à irresponsabilidade das reivindicações salariais dos professores, noutro a brutal contracção do investimento público, noutro ainda a ruptura com as terríveis imposições europeias, num derradeiro espelho a plena concordância com o discurso em voga na União Europeia. Mário Centeno foi uma peça-chave neste processo que tem tanto do domínio da prestidigitação como do da realidade. Aliás, o sucesso deste processo resulta da astuta combinação destas duas dimensões. Não importa agora averiguar se daí resultaram vantagens ou inconvenientes para o país. Nunca nos entenderemos nesse plano.
Aqui chegados, e ainda mais no contexto de uma grave crise sanitária, nada parecia apontar para a eclosão de uma crise tendo por epicentro a figura de Mário Centeno. A vida, porém, reveste-se de contornos shakespearianos nas horas e nos lugares mais inesperados. Só isso explica os acontecimentos desta semana. É verdade que tudo o que envolve o requentado escândalo do BES tem o condão de incendiar as paixões humanas. Não é, de resto, caso para menos.
Na germânica Autoeuropa, as mais altas figuras do Estado deixaram claro que há temas que queimam e proximidades que contaminam. Centeno, ao que consta, ponderou demitir-se. Acabou por não o fazer. Esperemos que tal recuo não seja o resultado de um entendimento perverso. O futuro o dirá.
Mário Centeno, economista bem preparado mas político de primeira viagem, sucumbiu ao seu próprio discurso. O funambulismo não está ao alcance de qualquer um. Foram inúmeras as vezes em que o ainda ministro das Finanças, extasiado pelos aplausos provenientes da bancada parlamentar e das estruturas intermédias do PS, se excedeu na tentativa de menorização da acção prosseguida pelo Governo de Pedro Passos Coelho. Nalguns momentos, Centeno deu mostras de ter chegado a acreditar na veracidade das suas próprias palavras. Foi sincero por uma vez, quando, em declarações prestadas, salvo erro, ao Finantial Times, reconheceu que a ruptura com o passado recente não era afinal tão profunda quanto se alardeava. Terá percebido agora os limites do seu próprio papel. Um ministro das Finanças só durante um espaço de tempo muito curto pode cultivar a extravagância da heteronomia, ser ao mesmo tempo o campeão das cativações e o herói do discurso anti-austeridade. Há um momento em que há necessidade de optar. Os 850 milhões relativos ao Novo Banco simbolizam a opção feita. Nessa ocasião, Centeno ficou irremediavelmente sozinho.
Na germânica Autoeuropa, as mais altas figuras do Estado deixaram claro que há temas que queimam e proximidades que contaminam. Marcelo excedeu-se na condenação de Centeno. Costa desconfinou-se excessivamente na apologia do Presidente da República. Centeno, ao que consta, ponderou demitir-se. Acabou por não o fazer. Esperemos que tal recuo não seja o resultado de um entendimento perverso. O futuro o dirá.
Uma coisa é verdade: o mundo não vai mudar tanto quanto o reclamam os pregadores das utopias terrestres, mas a vida política portuguesa está a mudar a cada dia que passa.
COMENTÁRIOS:
Jacob van der Sluis INICIANTE: Artigo irracional. Só espuma. 17.05.2020
Magritte EXPERIENTE:  Centeno, como o PS, estão entalados entre a retórica socialista e a matriz neoliberal com que governam: é por isso que precisam da esquerda em Portugal mas não descolam da ortodoxia europeia. Assis é também assim: morto e enterrado vai o "socialismo", e só já sobra o que o identifica como "Militante do PS". O seu ideário político está bem assente nas "contas responsáveis" e no ataque aos loucos do PCP e do BE. Os rombos provocados pelos sucessivos resgates à banca, os modelos ruinosos de PPP do seu PS e a divergência dentro da moeda única não o desviam do seu objectivo: um estado mínimo para os pobres e máximo para os ricos. Tudo bem temperado pelo mercado e sem entusiasmos por mais estado social: a origem de todos os totalitarismos. 16.05.2020
Jose MODERADOR: António Costa partiu derrubando António José Seguro, em casa, em jeito golpe palaciano, após este ter ganho as eleições autárquicas. Com essa purga anunciou o céu na terra p'rá década. Perdeu as eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015 que foram ganhas por Passos Coelho e Portas. Com minoria e o 2.° grupo parlamentar foi indigitado 1º. Ministro por Cavaco Silva que nunca se engana. Nessa noite de eleições não foram as vacas que voaram, foram os promissores autoproclamados donos do futuro como um tal Assis que se escafederam do mapa político. Daí até às eleições que se seguiram às autárquicas a expectativa foi imensa na caverna dos crentes como Passos Coelho e seu bando. Desapareceram todos do mapa político. Marcelo que em Outubro de 2017 ameaçou despedaçar tudo, rendeu-se a Costa. 16.05.2020
Jose MODERADOR: O germânico Patrão estrangeiro foi o anfitrião do golpe da mudança de regime. Ali nasceu o presidencialismo e ali se sacrificou a Constituição às mãos e no interesse pessoal, de quem a jurou cumprir e fazer cumprir. António Costa empossado plenipotenciário pelo Estado de Emergência decretado por Marcelo está esgrimindo golpes de poder absoluto em todas as direcções. Ali ficou a nova troika: O Patrão germânico, o Presidente e o Presidente dos Presidentes. Tudo a partir de uma derrota eleitoral. No meio disto tudo o prestidigitador é Centeno, acha Assis. 16.05.2020
jfaa07.873617 INICIANTE: Foi uma "trivela" modelo - "Seguro"… em "slow-motion" por agora. 16.05.2020
ana cristina MODERADOR: Gostei da imagem do jogo de espelhos e dos heterónimos. É exactamente isso. Só que, com um nome só, os heterónimos soam a pura aldrabice. 16.05.2020

II - OPINIÃO:  Cuidado com os segundos mandatos presidenciais
É uma estupidez da direita ser contra Marcelo e é uma estupidez da esquerda ser a favor. Saiam os chapéus de burro.
JOSÉ PACHECO PEREIRA
PÚBLICO, 23 de Maio de 2020
Eu já vi este filme: quando Mário Soares se apresentou para um segundo mandato, com a eleição assegurada por todas as sondagens, Cavaco Silva e a direcção do PSD consideraram que não valia a pena fazer nada, a não ser juntar-se à candidatura vencedora. As eleições presidenciais, com um candidato próprio apoiado pelo PSD, seriam uma perturbação que se iria manifestar na governação presente e futura. Cavaco Silva era muito pragmático sobre isso e entendia que não havia um preço por aí além em apoiar Soares. Enganou-se. Vejo na cabeça de Costa exactamente o mesmo raciocínio: não vale a pena estar a criar problemas com uma derrota numa candidatura presidencial própria contra Marcelo, quando as coisas vão mais ou menos bem. Sublinho o “mais ou menos” para memória futura.
Conheço bem o que se passou porque fui uma das pessoas que foram “enviadas” para a candidatura de Soares, dado que o tinha apoiado na primeira eleição, em 1986, quando o PSD apoiava Freitas, e porque tinha boas relações com Mário Soares. Mas sabia que o idílio era de má-fé, por parte de Cavaco e de Soares, e que o segundo mandato iria ser muito diferente do primeiro. E foi, terminando em guerra aberta, com Soares a fazer tudo para radicalizar o PS contra o Governo, vociferando contra a moleza do partido, a fazer umas “presidências abertas” de propaganda antigovernamental, a ensaiar um congresso da oposição e a usar todos os meios para bloquear a governação de Cavaco, tendo, inclusive, tentado criar condições para dissolver a Assembleia com o pretexto do “mau funcionamento das instituições”, nesse episódio tão mal contado dos corredores da Assembleia.
Marcelo é muito mais autoritário do que se pensa, e o segundo mandato, com apoio do PS, vai dar-lhe ainda mais legitimidade, logo, poder. Faça-se a justiça de que Costa, melhor do que ninguém, sabe disso. A seu tempo, vai-se arrepender
A repetição do cenário de 1991, nos dias de hoje, tem diferenças. Marcelo não é Soares, Costa não é Cavaco, o PSD e o PS não são os mesmos, o CDS caminha para a inexistência, o PCP está paralisado na sua crise, e o Bloco e o Chega cresceram nos extremos. A tribalização da política por via das redes sociais introduziu todos os perigos e riscos de um populismo agressivo, que está no Chega, mas vai muito mais longe. Está, essencialmente, na crescente fragilidade do centro político, PSD e PS, cujos votos são cada vez menos, com a fragmentação da representação política. E há uma nova radicalização da direita, a cuja captura o PSD escapou com Rio, mas que deu origem a uma política reactiva contra um inimigo imaginário, em grande parte porque Costa é muito mais centrista do que de esquerda. Tudo diferenças, e as diferenças contam contra a tentação de se achar que está tudo na mesma, porque a coreografia política de 1991 se repete em 2020.
Mas há também similitudes, a maior das quais é que o segundo mandato de Marcelo vai ser muito diferente do primeiro. Os beijos e abraços vão acabar, e não é por causa da pandemia. O teatro da afectividade, que tem sido um instrumento fundamental do primeiro mandato, não é tão genuíno como se diz, e foi uma forma hábil de poder que conta com um aspecto da idiossincrasia de Marcelo, mas só um aspecto. Há outros que continuam lá. Marcelo fez toda a vida uma carreira de cínico lúdico, inócuo e pouco importante nas “gentes” dos jornais e nos comentários. Se lhe acrescentamos poder, não é a mesma coisa. Marcelo é muito mais autoritário do que se pensa, e o segundo mandato, com apoio do PS, vai dar-lhe ainda mais legitimidade, logo, poder. Faça-se a justiça de que Costa, melhor do que ninguém, sabe disso, mas, como Cavaco em 1991, é um pragmático e, se pode evitar um problema hoje, não o troca pelas dificuldades do futuro. A seu tempo, vai-se arrepender.
E a direita, se não estivesse tão pavloviana a tratar Costa como se fosse um ditador, a enganar-se sempre no seu radicalismo com o que se está a passar, não compreendendo que as razões pelas quais está acantonada a ver o Chega crescer não são resultado de nenhuma conspiração do PS, percebia que Marcelo é o seu melhor candidato. Rio percebeu-o, e ele conhece muito bem Marcelo. Percebeu que Marcelo está muito mais à direita do que à esquerda, e na conjuntura de crise com que se vai viver nos próximos anos, os conflitos com o Governo serão muito mais agudos, a usura do Governo é muito maior e o exercício do poder do Presidente já não depende de considerações de cálculo eleitoral. Por tudo isto, é uma estupidez da direita ser contra Marcelo e é uma estupidez da esquerda ser a favor. Saiam os chapéus de burro.
Historiador

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